X Domingo Tempo Comum :: Homilia de Dom Virgílio Antunes

X DOMINGO DO TEMPO COMUM B
Figueiró dos Vinhos, 2024.06.09

Caríssimos irmãos e irmãs!

A memória dos acontecimentos trágicos de junho de 2017 não pode apagar-se dentro de cada pessoa que viu o fogo avançar sobre os bens, sobre as casas e sobre as pessoas. Os anos passam, os acontecimentos ficam cada vez mais distantes no tempo, mas o coração continua apertado, sobretudo pela falta das pessoas – familiares, amigos, vizinhos. Embora não possamos cancelar o passado, sabemos que não podemos ficar reféns dele e que a vida continua - como tantas vezes dizemos uns aos outros, à falta de melhores palavras.

Neste dia, queremos todos, pessoalmente e enquanto povo português, ser uma presença de fraternidade, de solidariedade e de esperança uns para os outros, mas especialmente para os irmãos e irmãs que continuam a sentir as marcas dolorosas da catástrofe que se abateu sobre esta região, pois sabemos que a presença amiga vale mais do que mil palavras.

Agradecemos esta iniciativa de convocar a sociedade portuguesa a voltar-se para estas terras e para estas gentes, procurando assim, por meio de gestos carregados de significado humano e cristão, ajudá-las a dar mais um passo no sentido de um futuro feliz. Continuamos a rezar pelo eterno descanso dos que partiram e pedimos a Deus o dom da consolação para os que continuam a peregrinar entre nós.

Neste dia, acolhemos a oportuna palavra do Apóstolo Paulo que, em circunstâncias igualmente adversas, dolorosas e difíceis, procurou confortar homens e mulheres do seu tempo, dizendo-lhes: “Não desanimamos. Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia”.

De facto, não há nada no mundo que possa justificar o desânimo e muito menos o desespero, porque mesmo nas situações limite, é sempre possível abrir portas de esperança, verdadeira obra de Deus, que sempre conta com a cooperação humana.

Viemos aqui precisamente para que Deus abra em nós portas de esperança e estamos disponíveis para testemunhar uns aos outros essa graça abundante, que há de multiplicar-se e alargar-se a todos, tal como sugeria Paulo na Segunda Leitura. De facto, uma pessoa, uma comunidade ou a humanidade em geral entram em falência e ruína, quando desistem de viver a esperança e de construir a esperança. No desejo que todos temos de dar um contributo válido para a edificação da comunidade humana, precisamos de perguntar-nos se o nosso pensamento e a nossa ação promovem efetivamente a vida e a esperança de todos, a começar pelos mais excluídos e pobres da sociedade.

As celebrações do Dia de Portugal nestas terras profundamente provadas pela história recente, fazem ecoar aos ouvidos de toda a comunidade o grito de Deus, preocupado com a situação de cada um dos seus filhos e traduzido pelo livro bíblico do Génesis na pergunta: “onde estás?” Justo ou pecador, são ou doente, rico ou pobre, nascido na terra ou estrangeiro... estás no coração de Deus como um filho ou uma filha, eternamente amados.

Ao grito de Deus tem de juntar-se o nosso grito de cidadãos, de homens e mulheres, com perspetivas diversas e responsabilidades diferentes, mas unidos na solicitude pelo bem e pela dignidade de todos: onde estás, meu irmão, minha irmã, onde estás, tu, que tens um rosto e uma identidade, tu que tens uma história, uma cultura, uma religião, porventura diferente da minha?

A narração do Evangelho segundo S. Lucas apresentava-nos hoje Jesus a chegar a casa com os seus discípulos e seguido por uma multidão, que perturbava a vida dos próprios discípulos e a vida dos familiares.

Jesus manifesta total disponibilidade para acolher e acompanhar aquelas pessoas, necessitadas de compreensão e de amor. Procura mostrar-lhes que a sua obra é obra de Deus, de tal modo que tem poder sobre todo o mal que aflige aquele povo e que é portador da esperança que procuram no meio dos seus desalentos, fragilidades e pecados. Se muitos acolhem o seu ensino e os seus gestos de bondade, outros mantêm-se obstinados nos seus desânimos e recusam-se a receber as oportunidades de graça que chegam por meio do Espírito Santo.

O dom de Deus é para todos, não exclui ninguém. Mesmo nas situações humanas mais críticas, figuradas na narração do livro do Génesis, mesmo quando se usa indevidamente a liberdade e se transgridem as linhas vermelhas pondo em causa o bem pessoal e o bem do próximo, Deus abre as portas da esperança. O protoevangelho da salvação, que anuncia a vitória da descendência da mulher que vence o mal, é o anúncio de Jesus Cristo, a fonte da esperança aberta para todos.

O final do texto do Evangelho que escutámos, retoma o tema da família de Jesus: no princípio, era uma família incomodada pela multidão que afluía em busca do encontro com Jesus, à procura de uma palavra de consolação e de um gesto de cura e de perdão; no final, encontramos um alargamento inesperado dos laços familiares e humanos, quando Jesus, “olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse: «Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe»”.

Ali, Jesus pronuncia a máxima fundamental da fraternidade universal, que excede os laços da carne e do sangue e nos abre a toda a humanidade. Esta fraternidade, que inclui e exprime o amor enquanto obra de Deus e realização da vontade de Deus, continuará a ser o caminho da humanidade, que havemos de anunciar.

Embora tenha sido proclamada e anunciada de muitos modos ao longo da história, a fraternidade universal ganhou nova expressão na voz do Papa Francisco, quando escreveu a Encíclica Fratelli tutti, documento verdadeiramente evangélico e programático para o nosso tempo. Nele, segue a inspiração de S. Francisco de Assis, que fala de um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço, que declara feliz quem ama o outro quando está perto ou quando está longe, e explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas (cf. Fratelli tutti, 1).

Neste lugar, marcado pelos acontecimentos de 2017, quando procuramos a solidariedade com estas gentes, sentimos os fortes apelos da fraternidade universal, como porta de esperança para todos.

Este país que somos e que celebra a sua existência histórica como uma realidade feliz, precisa de firmar este pacto de fidelidade para com a fraternidade, a porta do amor e da esperança que não exclui ninguém.

Pedimos a Jesus que continue a acolher todos os que acorrem a Ele na expetativa de um encontro transformador e pedimos-lhe que nos fortaleça para acolhermos os outros como irmãos. Queremos, com Ele, ser construtores de amizade e de paz social. Queremos, com Jesus, ser porta de esperança.

Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra

 

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