Porque é maio :: Carlos Neves

Porque é maio

Tenho esta mania de respirar o tempo. O do calendário. Maio, no caso.

Estes montes cobertos de amarelos, lilases, roxos, vermelhos e tantos verdes que quase nos deixam entontecidos. Estes montes que cheiram a urze, a esteva, a alecrim, a rosmaninho. E os outros, que enchem os jardins das casas, a rosas, a madressilvas, a glicínias. Este trinar incontido da passarada nos alvores da manhã, e a minha pena imensa de ser tão analfabeto nos domínios da ornitologia, que mal consigo distinguir o melro. E o zumbido das abelhas nas flores. E as borboletas.

Nos campos, tudo se faz promessa: o trigo, o centeio, o milho, o arroz. Mais adiantados os primeiros, a pedirem festa, homenagem, num simples ramo de flores silvestres e uma espiga, que a quinta-feira da ascensão – teimosamente popular, que já não litúrgica – não deixa esquecer. Mais tardios os segundos, entre a semente lançada à terra e os pequenos rebentos. Sempre por perto, os bandos de cegonhas e de garças ou o solitário milhafre tiram a barriga de magrezas.

Nas tradições, maio pede flores: as maias nas portas; as cruzes nos fontanários; o ramo da espiga, agora nos Lares e Centros de Dia.

As estradas e caminhos de maio enchem-se de viandantes, muitos deles peregrinos, muitos outros romeiros, a maioria simples caminhantes. Fátima puxa pela correnteza dos peregrinos que, de Coimbra para sul, em dias próximos da peregrinação aniversária, seguem numa linha ininterrupta. Mas também as romarias, a da Senhora da Estrela, ali nas fronteiras de Pombal, Ansião e Soure; a da Senhora da Piedade, na lousã; a do Espírito Santo, em Dornes; a de Nossa Senhora das Necessidades, no alto do Colcurinho. Não foram elas que criaram maio, foi maio que as criou. Maio desentorpece-nos. Pede festa, companheirismo, longes, ao menos um passeio dominical pelos muitos e belos trilhos criados pelas autarquias.

Os sentidos avivam-se. Sabe bem esta mundanidade, que não é mundanismo ético ou social, mas fragilidade e frágua, gratuidade e graça inscritas na criação. Mês de trovoadas e estios, maio ri-se das pessoas que se levam demasiado a sério. Cola-nos ao barro de que somos feitos. Ao barro em que transportamos os maiores tesouros da nossa vida, as pessoas que amamos, as memórias que guardámos, as crenças que nos puxam para a diante. Pecado e santidade, coragem e cobardia, egoísmo e solidariedade, traição e fidelidade. Numa história bíblica feita à medida de maio, alguém semeou joio num campo de trigo e o dono da seara recusou-se a mondá-lo, não se fosse perder o trigo por causa do joio. Não há fronteiras entre bons e maus; e, já agora, entre sexos, raças, crenças, pessoas, ou pessoa dentro de si. Há apenas corações de barro a serem cuidados. 

Maio é o mês do Trabalhador, da Mãe, de Maria, da Biodiversidade. Do cuidado criativo, da ternura, do embalo de um colo, do amor incondicionalmente gratuito, da vida. Maio é profeta de gratuidade na praça cada vez mais claustrofobiante de um mundo que impõe sobre tudo e todos a lei da moeda, que explora desalmadamente os mais frágeis telefonando-lhes todos os dias para casa a vender-lhes produtos de que eles não precisam, ou de que precisam, mas a preços exorbitantes, que reduz a felicidade a vénias, a sociabilidade a cetins, a arte a efémero. Em que até a inteligência é dita …artificial, como se isso fosse virtude dos tempos e não sua pobre expressão.

Goffman talvez chamasse a maio “os bastidores”. Mas estaria errado: quando se trata do coração humano, maio é o palco inteiro. Porque não é o profeta que interessa; não é maio que vale. Maio é apenas parábola. Vale o homem, a mulher, a pessoa, um povo que viva de pão, de ternura e de esperança. Todos os três, para todos e cada um, alimentando-se mutuamente e gerando novos futuros sempre em aberto. Pão, ternura e esperança. 

Carlos Neves




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