Entrevista ao Correio da Manhã 24 Dezembro 2020

D. Virgílio Antunes, bispo de Coimbra e vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, é o convidado do Correio da Manhã neste Natal.

Correio da Manhã - Prefere que o tratemos por bispo de Coimbra ou por conde de Arganil?

D. Virgílio Antunes – Sou apenas bispo de Coimbra. Felizmente, o Concílio Vaticano II acabou com todos os títulos nobiliárquicos que existiam por toda a Europa. Eram coisas de outros tempos e modo algum.

A nossa vida foi interrompida por esta pandemia. É legítimo dizer-se que se trata de um castigo de Deus?

De modo algum. Embora na Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento, haja passagens que, interpretadas à letra, possam levar-nos a pensar nisso, num Deus castigador, a verdade é que, como retiramos do Novo Testamento, Deus é amor, Deus trata-nos bem, quer-nos felizes e quer salvar-nos, fazendo-nos responsáveis, como é evidente.

Mas reconhece que é difícil manter a fé neste cenário?

É interessante que todos os cenários trazem formas felizes de acolher a fé e todos os cenários complicam o processo de acreditar. Eu conheço pessoas que, diante de uma desgraça, encontraram a fé e outras pessoas que, perante a desgraça, disseram ‘já não sei mais em que acreditar’. O fenómeno da fé vai para além das circunstâncias que vivemos e dos problemas ou das alegrias que temos na vida. Mesmo agora na pandemia, há pessoas que se têm aproximado da fé e também algumas da Igreja, o que nem sempre coincide, e eu tenho tido contacto com várias. Conheci até situações que me deixaram algo estupefacto.

Diz-se que esta pandemia é democrática e que afeta da mesma maneira todas as pessoas, mas sabe-se que não é bem assim. Como sempre, quem mais sofre são os mais velhos, os mais pobres e os mais desprotegidos. Não é legítimo que se pergunte onde está Deus?

Em todas as grandes desgraças, os mais pobres, os mais desprotegidos, os mais vulneráveis, são sempre os que mais sofrem. Isto sucede porque essas pessoas não têm os meios de proteção dos restantes. Agora, isto não é Deus a castigar, se não Deus castigaria sempre mais os mais fracos, o que não faria qualquer sentido.

Considera que Deus ainda não nos abandonou?

Não nos abandonou e a certeza da fé cristã é a de que Deus não nos abandonará, em circunstância alguma. Seria negar aquilo que é o centro da nossa fé, que é a paixão, a morte e a ressurreição de Cristo, o sinal maior de que Ele nunca nos abandonará.

A Igreja tem estado atenta a essa questão de que são os mais pobres e desprotegidos que mais sofrem com a pandemia?

Sou suspeito, mas posso dizer-lhe que a Igreja tem consciência de que tem de estar e deve estar ao lado dos que mais precisam. Se está ou não, é uma avaliação que deixo para outros fazerem. E todos sabemos é que há uma série de instituições da Igreja, como a Cáritas, que só aqui em Coimbra ajuda mais de 20 mil pessoas, ou as Conferências Vicentinas, os centros paroquiais ou as misericórdias, que fazem um trabalho enorme no apoio aos mais necessitados. É claro que há sempre mais a fazer… há sempre mais a fazer. Se algum dia a Igreja perder essa dimensão essencial da atenção aos pobres, então estará a falhar redondamente naquilo que é a sua identidade e missão.

Tem verificado o aumento das dificuldades?

Claramente. As dificuldades têm aumentado imenso. Não era costume, por exemplo, receber emails de pessoas a pedir ajuda, como fiquei sem trabalho ou cortaram-me a água ou a luz, ou mesmo, estamos na miséria. Não era costume receber diretamente mensagens deste tipo e agora recebo-as. E, depois, no contacto com as instituições, apercebemo-nos realmente da dimensão dos problemas causados pela pandemia às pessoas e às famílias. Sobretudo a perda do posto de trabalho, que tem sido a questão mais dramática.

É nestas alturas que mais se nota a falta que fazem essas instituições caritativas da Igreja…

Elas fazem sempre falta. A justiça nas relações sociais é a questão fundamental, mas a justiça inclui a dimensão da caridade. Uma vez que não existe um Mundo perfeito ou sociedades perfeitas, apesar de todo o progresso alcançado, a justiça só se consegue através da caridade. É um erro tremendo pensar-se que a Igreja só serve para aquela caridadezinha assistencialista. A Igreja tem a missão de anunciar e pregar a justiça, em todas as dimensões. Como não é possível resolver todos os problemas, como diz o Papa Bento XVI na encíclica ‘Deos Caritas est’, haverá sempre necessidade da caridade nesse sentido mais próximo, mas sem se esquecer a dimensão fundamental, que é a justiça.

Esta situação também veio criar dificuldades económicas à própria Igreja?

A Igreja, nesse aspeto, tem de partilhar as mesmas dificuldades que sentem todas as outras instituições. Eu penso que é um erro fixarmo-nos muito na sobrevivência de uma ou outra instituição, quando o importante é mesmo a sobrevivência das pessoas e das famílias. As pessoas é que têm de ser o centro das atenções. As instituições sofrem, mas isso resolve-se.

Mesmo que se encontre uma cura e chegue a vacinação, as coisas, do ponto de vista social e económico, ainda vão piorar. A Igreja tem algum plano de ajuda social?

Todas as instituições da Igreja estão empenhadas na ajuda às pessoas e às famílias nestes tempos muito complexos. A Igreja não tem, nem pode ter, um programa concreto de assistência social, mas incentiva todas as pessoas e instituições católicas a serem inexcedíveis na ajuda aos que mais necessitam. Pretendemos que não falte a ninguém o mínimo que permite a dignidade humana.

Espera que haja um apoio suplementar do Estado às IPSS, devido à pandemia?

Penso que o que se pretende é que sejam cumpridos os acordos já protocolados. Após o problema do aumento do salário mínimo, que não foi acompanhado nas comparticipações, o Estado acabou por corrigir essa situação e, nos últimos tempos, as coisas têm decorrido com normalidade. Dificuldades existem, como é evidente, mas as instituições bem alicerçadas vão, com toda a certeza, superar a crise. O grande problema reside nas instituições que se dedicam apenas a uma valência, nomeadamente, à infância, uma vez que, com a queda da natalidade, as dificuldades são inevitáveis. O que verificamos, em muitos casos, é a fusão de instituições, de maneira a que ganhem dimensão e possam, pelo volume, sobreviver. Às vezes pergunta-se se a Igreja deve continuar com estas instituições. Eu penso que deve, enquanto forem úteis às pessoas, uma vez que a Igreja encara esta vertente como um serviço, e enquanto não houver quem faça mais e melhor.

A Igreja em Portugal somou, nos últimos anos, algumas derrotas políticas, como os casos do aborto ou da eutanásia. Há um divórcio entre a classe dirigente e a Igreja?

A Igreja não contabiliza derrotas ou vitórias. Tem uma identidade e uma mensagem e cumpre-lhe apenas anunciar com toda a clareza e convicção qual é a sua opinião sobre os assuntos. É evidente que a sociedade tem evoluído de formas muito díspares e mesmo na Igreja não pode pensar-se hoje como se pensava nos séculos passados. No entanto, há questões de princípio em que a Igreja é intransigente, sem se preocupar com qualquer contabilidade de vitórias ou derrotas ou até com agendas em curso, venham elas de onde vieram.

A Igreja tem sabido fazer passar a sua mensagem?

Nós temos concluído que, sendo a mensagem forte, tem sido muitas vezes comunicada de forma muito fraca e, como tal, perde impacto. Agora, nós não podemos, a pretexto de tornar o assunto mais vendável, prescindir dessa mensagem. Fazer cedências faria com que, em pouco tempo, deixássemos de saber o que somos e qual é a nossa identidade. Agora, o modo de apresentar a nossa mensagem, tanto internamente como para o exterior, tem, como é evidente, deficiências e até falta de profissionalismo.

Sobretudo na comunicação com os jovens…

Estamos a dar passos que darão bons frutos no futuro, a esse nível, que têm a ver com a opção de fazermos dos jovens protagonistas da vida da Igreja. Nos encontros que tenho realizado com jovens da diocese, um pequeno grupo presencial e os restantes online, verifico um interesse muito grande, por parte dos jovens, quando eles sentem que estão a ser protagonistas e não apenas destinatários.

A pedofilia foi o problema mais grave da Igreja nos últimos anos. Concorda?

É uma evidência que o problema mais grave e vergonhoso da Igreja, nos últimos anos, tem sido a questão dos abusos sexuais. Não há dúvida absolutamente nenhuma, para mim, que essa é a marca, a mácula, o drama, aquilo que se quiser dizer, maior. Pode ter havido outras coisas, mas nada de comparável.

O combate tem sido eficaz, em sua opinião?

Eu penso que tem sido muito forte, às vezes quase violento, e o Papa nunca deu sinais de abrandar o ritmo. Antes pelo contrário. Nós nunca tínhamos tido, na Igreja, a convicção de que era necessário lutar contra esta questão e, como tal, não possuíamos meios nem orientações que permitissem enfrentar esse problema. Basta pensar nas comissões de prevenção e combate ao abuso de menores, que foram agora criadas em todas as dioceses, e que dizem bem da forma empenhada e certeira como se está a prevenir e a enfrentar essa questão que a todos nos envergonha. Penso que, a esse nível, estamos no bom caminho.

Como é que um bispo explica aos seus fiéis casos como o do cardeal Beciu, que foi forçado a abandonar por alegado envolvimento em negócios pouco claros?

Os fiéis sabem muito bem o que é a condição humana. Não se espera que um cardeal, um bispo, um padre, ou até um cristão, tenha determinado tipo de comportamentos. Não se espera e não deve acontecer. Mas a verdade é que o sacramento da ordem ou a nomeação como cardeal não faz da pessoa um anjo. Na verdade, continua a ser pessoa e à condição humana está inerente esse género de fraquezas que, muitas vezes, nem conseguimos entender.

Receia que o afastamento dos fiéis das igrejas, fruto da pandemia, possa fazer com que eles não regressem?

A prática dominical tem sofrido com as circunstâncias. O que eu acho que vai acontecer é que as pessoas, gradualmente, vão retomar os seus ritmos normais, na sua vida quotidiana e na prática religiosa. Haverá uns a demorar mais do que outros, mas eu penso que não vai cavar-se aqui nenhum fosso. Esperamos que os medos sejam substituídos pela confiança. Um dos aspetos interessantes desta pandemia, para nós Igreja, foi o que ela permitiu de discernimento interior, em que as pessoas perguntaram se são ou não católicas, se a prática religiosa é ou não importante para elas. E há muita gente ansiosa para voltar a ir à missa, a frequentar a igreja. Digo-lhe também que os que voltarem fazem-no por opção ainda mais consciente e aqueles que iam à missa de forma mecânica ou por tradição, esses deixarão de o fazer.

O Natal vai ser diferente. Mas Cristo nasce na mesma?

Como é evidente. Nasce com toda a certeza. O Natal será diferente nas dimensões mais sociais, nos encontros das famílias, mas na vertente da fé, será o mesmo. Agora, tudo isto faz parte do Natal e a família é uma grande riqueza, pelo que é natural que este ano as festas sejam um pouco mais tristes.

O Pai Natal vai sofrer mais?

O Pai Natal não é concorrente. Trata-se de um elemento publicitário adotado pelas pessoas como muitos outros, mas que não tem a ver com a mensagem estruturante de vida e salvação da Igreja. São coisas diversas.

A Igreja vê o Pai Natal como um concorrente?

Não, não o vemos como concorrente. Aliás, a sua origem até é cristã, uma vez que vem do Santa Claus, a adaptação alemã de um arcebispo da zona da atual Turquia, S. Nicolau, que no século V ganhou fama de santidade por ajudar as pessoas pobres e fazer ofertas, sobretudo por alturas do Natal. Depois, foi adotado, por assim dizer, como símbolo comercial. Mas como há pouco disse, a mensagem é radicalmente diferente, por isso, não pode, de maneira alguma, ser visto como um concorrente. Nós falamos do nascimento de Cristo e deste ato de amor de Deus para salvação do Mundo, muito para além de qualquer mensagem publicitária.

Vamos falar de Coimbra. Como está o processo de canonização da Irmã Lúcia?

Em primeiro lugar gostava de dizer que é para a diocese de Coimbra um privilégio ter tido como residente a Irmã Lúcia e ter organizado o seu processo de canonização. Foi um trabalho muito longo, de grande exigência, uma vez que ela contactou com muita gente e escreveu muito, sobretudo cartas. O processo está em Roma, a ser analisado pelos oficiais da Congregação para as Causas dos Santos, e decorre a organização da chamada ‘positio’, que é, na verdade, um livro que, digamos, resume o processo. Por cá, continuam a chegar os relatos de graças, muitos, graças a Deus, de onde esperamos que possa sair um milagre, embora hoje seja extremamente difícil definir um milagre, uma vez que tem de se tratar de uma cura duradoura e inexplicável à luz da ciência.

Admite, D. Virgílio, que a heroicidade das virtudes venha a ser declarada no início do ano que vem?

Não lhe sei dizer. Gostava que isso acontecesse, mas não tenho elementos que me permitam falar de prazos. Ainda por cima, houve recentemente alterações na liderança da Congregação para as Causas dos Santos… não sei. O meu desejo, assim como o dos cristãos e de muita gente de fora de Portugal, porque a Irmã Lúcia tem, na verdade, uma dimensão universal, é de que sim, de que tal ocorra em breve.

Gostava que me fizesse um retrato da sua diocese.

É uma diocese com as mesmas dificuldades e alegrias de todas as outras. Mas tem algumas particularidades. A que mais estupefação me causou, quando cá cheguei, foi o lugar que os leigos têm na organização da Igreja. Nesse aspeto, penso que diverge muito do que se passa nas restantes dioceses. Isto porque tivemos a graça de ter como bispo D. João Alves, que era um homem muito à frente do seu tempo e que percebeu a importância das inovações saídas do Concílio Vaticano II. Ele começou a chamar os leigos para lugares estruturantes, da diocese e das paróquias, logo nos anos 70 do século passado, o que fez com que, nesse particular, Coimbra se tenha destacado.

Pedimos-lhe, para terminar, que deixe uma mensagem de Natal, não apenas para os seus diocesanos, mas para todos os que nos leem.

Quero começar por dizer que, não apenas o bispo de Coimbra, mas a Igreja em Portugal, está com todos os portugueses e espera que todos, independentemente da sua condição atual, tenham um santo Natal. Espera por isso que ninguém se sinta sozinho, na medida em que o Natal é o símbolo do nascimento de Cristo, da chegada de Deus ao meio dos homens, para mostrar, precisamente, que Ele não abandona ninguém. Bom Natal para todos.

Está previsto algum programa relativo aos 750 anos do nascimento da rainha Santa Isabel (4 de janeiro)?

Devido à pandemia, não é fácil fazer programas e realizar comemorações. Mas a Confraria da Rainha Santa tem em curso a celebração dessa efeméride. Mas não deixamos de celebrar as efemérides importantes. Repare que estamos a realizar o jubileu dos Mártires de Marrocos, que há 700 anos passaram por cá e, quando foram pedir esmola ao Mosteiro de Santa Cruz, revolucionaram o espírito do estudante Fernando de Bulhões, que se tornou, como sabemos, Santo António.

Secundino Cunha e
Paulo João Santos

Correio da Manhã
24 Dezembro de 2020

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