FESTA DE SANTO AGOSTINHO - 2020
PADROEIRO DA DIOCESE DE COIMBRA
IGREJA DE SANTA CRUZ
Leituras: 1ª: Sab 7, 7-10.15-16; 2ª: 1 Jo 4, 7-16; Ev.: Mt, 23, 8-12
Caríssimos irmãos e irmãs!
A figura de Santo Agostinho e a sua Regra adotada neste Mosteiro de Santa Cruz tiveram um papel muito relevante na renovação da Igreja Diocesana de Coimbra ao longo dos séculos. Por isso, vimos hoje dar graças a Deus na festa do nosso padroeiro, vimos pedir a sua intercessão para a nossa Diocese e vimos procurar nova inspiração e entusiasmo para a renovação tão desejada e urgente.
A figura de Santo Agostinho, marcada por um percurso pessoal profundamente humano e profundamente transformado pela graça de Deus, oferece-nos alguns caminhos de renovação pessoal e eclesial que precisamos de acolher, na fidelidade ao padroeiro que nos foi dado.
A sede de Deus é uma constante na humanidade e ele sentiu-a de modo fortíssimo no meio das sua experiência de vida recheada de muitas sedes, que procurou saciar em variadas fontes. As águas passageiras que refrescam no momento e logo a seguir causam uma secura maior, não podiam satisfazer o seu desejo de mais, de melhor, de perene e de infinito. Precisou de mergulhar nos profundos abismos para compreender a importância de subir ao alto do monte para poder contemplar com olhos novos a beleza sempre antiga e sempre nova do Deus Santíssima Trindade.
Esta sede de Deus continua a ser uma constante em nós e na humanidade. São muitos os sinais de insatisfação com o que vivemos e as marcas do desejo de eternidade. A confiança desmedida posta nas capacidades humanas e nas suas possibilidades de edificar um mundo justo e bom para todos são frequentemente abaladas pelos acontecimentos. A própria situação de insegurança e medo causada pela pandemia atual fizeram-nos cair no fundo do abismo e estamos com muita dificuldade de, enquanto pessoas, comunidades e humanidade em geral, nos erguermos e readquirirmos a esperança necessária à vida.
A sede de Deus em Santo Agostinho teve muitas manifestações e diversos nomes como acontece ainda connosco, mas foi sempre desejo de infinito, busca de paz interior, necessidade de amor, busca de sentido para a vida. Ele encontrou tudo isso em Deus, no mesmo Deus em que o encontraremos nós próprios, mesmo em tempos considerados por muitos como tempos de ausência de Deus.
A busca da sabedoria é igualmente uma realidade bem vincada no coração e na mente humana. Conhecer mais, saber mais para viver melhor é algo que nos carateriza enquanto seres dotados de inteligência e vontade, capazes de nos construirmos como pessoas livres e responsáveis, aptos para edificarmos uma sociedade aberta a todos.
Santo Agostinho foi um buscador da sabedoria de Deus no seu percurso interior e na sua formação académica de elevado valor. Debateu-se com a grandeza e com os limites dos caminhos percorridos, quase à maneira de Salomão e das suas conclusões referidas no Livro da Sabedoria. Só se sentiu a progredir no caminho da sabedoria quando renunciou a muita coisa que inicialmente lhe parecia preencher todos os requisitos para ser feliz.
Já Salomão, segundo o dizer da Primeira Leitura, enquanto pôs a sua confiança nas riquezas que tinha ou desejava, via instalar-se em si o vazio; mas quando amou a sabedoria mais do que o ouro e a prata, mais do que a saúde e a beleza, sentiu que estava nas mãos de Deus, com a totalidade de si mesmo: as palavras, a inteligência e a habilidade, ou seja, a capacidade de dizer ou comunicar, a capacidade de pensar ou discernir e a força para fazer ou realizar.
Quando felizmente fazemos tantos avanços no conhecimento, na ciência, na tecnologia e na razão, que, no entanto, nos deixam insatisfeitos, eleva-se de novo entre nós a figura de Santo Agostinho como testemunha do verdadeiro progresso humano alicerçado na sabedoria de Deus. Nela, que está antes, durante e depois de todos os nossos caminhos humanos, encontramos a força maior para a edificação da humanidade justa e feliz que tanto desejamos.
Santo Agostinho foi um apaixonado do amor de Deus desde o momento em que descobriu que Deus é amor e que quem permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele, como concluía a Segunda Leitura, tirada da Primeira Epístola de S. João.
O amor sintetiza, por um lado, a realidade de Deus e, por outro, a vocação humana, que é ser amor e viver no amor. Essa vocação está de tal modo inscrita em nós que constitui o nosso maior desejo e a nossa verdadeira paixão de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus, como aprendemos logo no Livro do Génesis e em toda a história da revelação.
Como referia a Segunda Leitura, nós conhecemos o amor de Deus e a nossa vocação ao amor por meio de Jesus Cristo, que morreu por nós, e com o auxílio do dom do Espírito Santo que nos foi concedido e é Espírito de amor. O amor humano é manifestação do amor divino e o amor divino gera em nós a possibilidade de caminharmos num amor cada vez mais perfeito e mais santo.
Santo Agostinho não foi mais o mesmo a partir do momento em que descobriu o Deus amor, pois pôde refazer plenamente os caminhos dos sucedâneos de amor em que passou parte da sua vida. Quando se tornou um apaixonado do amor de Deus, tornou-se também um apaixonado do amor ao próximo e passou a cumprir de modo diferente o mandamento da Escritura: amai-vos uns aos outros.
Em tempos de grande confusão e até de deturpação do verdadeiro sentido do amor acolhido, partilhado e vivido, Santo Agostinho eleva-se como testemunha da necessidade de purificação do amor, na certeza de que o amor vem de Deus, porque Deus é amor.
O grande desafio, que deu lugar a um novo modo de ser e de agir a Santo Agostinho foi a sua conversão. Esta teve momentos fortes de autêntica luz acolhida e assumida, quando Ele passou de uma atitude de arrogância a uma atitude de humildade, correspondendo ao ensino de Jesus escutado no Evangelho, há pouco proclamado: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”.
A sua conversão à fé, fruto da graça divina à qual correspondeu, fez dele um homem grande, um verdadeiro servo da verdade, servo de Deus e servo da humanidade. Usando adequadamente a sua inteligência e a razão, agora orientadas pela sabedoria divina, deixou uma imensa obra escrita, que lhe valeu o título de doutor da Igreja. Usando a capacidade de ser amado e de amar como vocação primeira da sua pessoa e do seu coração, tornou-se um grande pastor do Povo de Deus, conduzindo muitos ao longo da história para o encontro com o Deus Amor, revelado em Jesus Cristo. Usando a sua humildade, conquistada com muita tenacidade, deu os passos difíceis mas seguros em ordem à conversão ao Deus vivo e verdadeiro, reconfigurando toda a sua vida, pensamento e ação.
Irmãos e irmãs! Quer estejamos em caminho de conversão, quer estejamos já nos umbrais ou ainda muito longe da fé, Santo Agostinho convida-nos a parar e a entrar no mais fundo de nós mesmos onde nos havemos de deparar com a imensa sede de toda a humanidade, com a grande fome de sabedoria e com o desejo apaixonado do amor. Estes ão sinais que nos apontam para os caminhos da conversão a Cristo, Aquele que mata a nossa sede de esperança, que é a verdadeira sabedoria de vida e que nos dá a conhecer a paixão do amor de Deus.
Entremos, caríssimos irmãos e irmãs, nas vias humildes da conversão: uns, porventura, procurando resolver as grandes questões que a vida lhes põe, indo à procura do seu sentido e da sua finalidade; outros, começando pelas coisas simples e pequenas do quotidiano. De uma forma ou de outra, peçamos, por intercessão de Santo Agostinho, a graça do encontro com Cristo, num processo de conversão que nos faça novas criaturas a viver na luz de Deus infundida em nós pelo Seu Santo Espírito.
Coimbra, 28 de agosto de 2020
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra