CATEQUESE
DO CARDEAL PATRIARCA
NO PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA
"A Lei de Deus e as leis dos homens"
1. O
Congresso sobre a Nova Evangelização deixou-nos uma
inquietação, que se torna exigência: exprimir a nossa fé
cristã na totalidade da existência, na simplicidade de um
desígnio de Deus que nos é manifestado como chamamento e
vocação à santidade. Nada, na nossa vida, pode ser estranho a
esse chamamento, pois a fidelidade que o Senhor espera de nós,
exprime-se na vida e não apenas em afirmações ou declarações
de intenções.
Esse chamamento é a Sua “Lei”.
Já depois do Congresso, a Igreja toda foi enriquecida com a
primeira Encíclica do Papa Bento XVI, intitulada “Deus é
amor”, que desafia a Igreja a fazer do amor, não apenas
afirmado, mas expresso em atitudes, para com Deus e para com
os homens, nossos irmãos, a principal expressão da fé e da
fidelidade. As últimas palavras da Encíclica encerram todo um
programa: “Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de
Deus no mundo, eis o convite que vos quero deixar com a
presente Encíclica” (S.S. Bento XVI, “Deus caritas est”, n.º
39)
Por outro lado, verifica-se hoje, dentro da própria comunidade
eclesial, uma tendência para separar a fé professada e
celebrada da sua vivência na existência concreta, vivida
segundo as exigências da Páscoa de Jesus. Esta atitude é
concebida, não como infidelidade, mas como expressão da
liberdade e autonomia da consciência, como se cada um tivesse
o direito de fazer a sua lei e interpretar à sua maneira as
exigências da fé cristã, esquecendo que nada interpela tanto a
consciência como o chamamento do Senhor a viver no amor e na
verdade.
A Igreja reconhece um papel importante à consciência pessoal
no discernimento das exigências do chamamento da Palavra de
Deus, concretizadas na vida, desde que nunca deixe de se
escutar a voz do Senhor, e nos defendamos das concepções
individualistas da autonomia da liberdade, relativizando a
Palavra de Deus e a verdade da comunidade a que se pertence,
tão fortemente afirmadas na cultura contemporânea. Notam-se,
na sociedade actual, muitas manifestações da afirmação desta
autonomia em relação à fé e à doutrina da Igreja, como se
estas fossem obstáculo à liberdade. E a actividade legislativa
é, certamente, uma expressão importante desta busca de
autonomia em relação à influência da Igreja e dos seus
ensinamentos, na expressão legal das mais variadas e delicadas
atitudes humanas.
Em nenhum país a Igreja pretende, hoje, impor as “leis
religiosas” como leis dos Estados que se definem como laicos,
sobretudo no Ocidente. Mas isso não significa que a Igreja
abdique de entrar no diálogo cultural, em culturas de matriz
cristã, impregnando-as das dimensões éticas que devem inspirar
o sentido das leis, e dos valores humanos da revelação cristã,
que antes de serem religiosos, são afirmações de um “universal
humano”, radicado no coração de cada homem. A Igreja não pode,
igualmente, renunciar ao direito e ao dever de esclarecer a
consciência dos cristãos quando as leis agridem esses valores
fundamentais. Os cristãos estão na cidade, a procurarem, de
mãos dadas com todos, a sua humanização e a sua harmonia, e aí
são chamados a dar testemunho da grandeza dos valores
cristãos.
Eis porque escolhi, este ano, como tema das “Catequeses
Quaresmais” a Lei de Deus, que se resume no mandamento do amor
e a sua coexistência, na sociedade concreta em que vivemos,
com o exercício da liberdade, com os critérios culturais do
seu exercício e com a justeza das leis que nos propõem. Se a
Palavra de Deus interpela a nossa consciência, as leis dos
homens exigem desta um discernimento lúcido e corajoso.
A Lei de Deus
2. A Lei de Deus assenta num pressuposto fundamental, a
certeza de que o homem foi criado por Deus, com amor e que
para ele e por causa dele, criou o próprio Universo. Essa
certeza define o sentido radical da existência humana, porque
a plenitude que todos os homens desejam e a que chamam
felicidade, está contida no ideal de homem que Deus criou, à
Sua imagem, isto é, feito para participar da própria plenitude
divina. Deus tem um desígnio para o homem, que é de amor e de
felicidade. Esse desígnio, “escondido desde todos os séculos
em Deus” (Ef. 3,9), encerra, não apenas a definição de
plenitude humana desejada por Deus, mas também os caminhos e
os meios através dos quais o homem pode, na sua existência
histórica, caminhar para essa plenitude. Deus acompanha o
homem, nessa caminhada, com o mesmo amor com que o criou. A
encarnação do próprio Deus, em Jesus Cristo, e a Sua morte
oferecida por nós, mostram-nos que essa solicitude amorosa de
Deus atingiu o extremo da loucura de amor.
A Lei de Deus, Torah em hebraico, é simultaneamente,
ensinamento e chamamento. Deus chama todos os homens à
plenitude da vida e revela-lhes os caminhos para a alcançar. A
Lei é Palavra de Deus e toda a Palavra de Deus revela a
solicitude de Deus acerca dos homens. É por isso que Jesus
Cristo, Palavra encarnada e plenitude da Revelação, é também a
plenitude da Lei.
Esta Lei de Deus, como revelação e chamamento a viver a vida
em comunhão com Deus, é gravada no coração do homem pelo acto
criador. Está contida na afirmação de que o homem é “imagem de
Deus”, chamado a viver em aliança de comunhão com Ele. Esta
dimensão de aliança será a base constitutiva do Povo eleito.
Aí, no tempo de Moisés, a Lei de Deus, impressa no coração de
cada homem, exprime-se no código de aliança. Ao longo dos
séculos a Lei deve tornar viva a exigência da aliança.
Reavivar a Lei significa assumir, de maneira mais profunda, o
mistério da aliança, que encontrará a sua plenitude na nova e
definitiva aliança, revelada e ratificada no sangue de Cristo
e que a Igreja, novo Povo de Deus, renova em cada Eucaristia
que celebra.
3. Na fase constitutiva do Povo de Israel, Moisés, o grande
legislador, concretiza o código da Aliança nas leis concretas
que regulam a vida do Povo, em todos os aspectos, e que
indicam o caminho de fidelidade ao espírito da Aliança, vivida
no concreto da vida. A Lei que é, na sua essência, revelação e
chamamento, transformou-se em norma legal. Os preceitos vão-se
multiplicando, até obscurecerem o sentido radical de revelação
e chamamento. A pregação dos Profetas vai na linha de reavivar
o sentido fundador da Lei como chamamento de aliança, e de
denunciar o cumprimento exterior e material de preceitos
concretos, que já não exprimem a fidelidade amorosa à aliança
com Deus. A decadência da Lei como caminho de vida segundo o
desígnio de Deus, vai-se acentuando até Cristo, que retoma a
Lei no seu sentido original de caminho de aliança. Ele,
enviado do Pai, apresenta-se a Si mesmo como único caminho. Só
unido a Ele, pela fé e pelo baptismo, se pode caminhar para a
plenitude da vida. Em São Paulo encontramos a expressão mais
radical desta tensão entre a união a Jesus Cristo, pela fé, e
a Lei como caminho de vida e de salvação (cf. Rom. 7,1-6;
10,5-13).
O Cristianismo, afirmando que a verdade essencial da Lei está
em Jesus Cristo, caminho para o Pai, não só reconduz toda a
Lei ao sentido primordial, mas valoriza a Lei impressa no
coração de cada homem, que é a porta aberta à fé em Jesus
Cristo.
A Lei inscrita por Deus no coração do
homem
4. A
revelação do desígnio de Deus acerca do homem e a indicação do
caminho para atingir a plenitude da vida, não começa, segundo
a Sagrada Escritura, na proposta de aliança feita a Abraão e
na lei positiva de Moisés. A humanidade até a Abraão e todos
os povos, de todos os tempos, que não conhecem a economia
judaico-cristã, não vivem sem lei, isto é, sem Deus, que os
criou, lhes indicar os caminhos da vida. Deus gravou no
coração do homem uma lei, que ele há-de conhecer e discernir
através da sua consciência. São Paulo, na Carta aos Romanos, é
claro a este respeito: “os pagãos não têm a Lei. Mas, embora
não a tenham, se fazem espontaneamente o que a Lei manda, eles
próprios são lei para si mesmos. Assim mostram que os
preceitos da Lei estão escritos nos seus corações; a sua
consciência também testemunha isso, assim como os julgamentos
interiores, que ora os condenam, ora os aprovam. É o que vai
acontecer no dia em que Deus, segundo o meu Evangelho, vai
julgar, por meio de Jesus Cristo, o comportamento secreto dos
homens” (Rom. 2,14-16).
A esta inspiração do sentido da vida, de discernimento do que
é bem ou mal, continua a chamar-se “Lei natural”, embora a
expressão não apareça, explicitamente, na Sagrada Escritura.
Ela consiste, globalmente, no sentido do bem e do mal. Os seus
conteúdos são religiosos, antropológicos e morais. São
religiosos, porque ela inclui o reconhecimento de Deus, a
obediência à Sua vontade e a adoração que lhe é devida. A
atitude religiosa é a dimensão mais universal da humanidade,
que se exprime nas religiões e marca profundamente as
culturas.
Tem dimensão antropológica, porque anuncia o mistério do homem
e a sua dignidade. A sua relação com Deus define a sua
natureza; a sua realização não passa por nenhuma forma de
solidão, mas sim pela relação com os outros homens. Esta
dimensão relacional encontra a sua expressão constitutiva, na
comunhão do homem e da mulher, afirmando a complementaridade
dos sexos, base da família humana e garantia da sua
continuidade, como elemento constitutivo da verdade de todos
os seres humanos (cf. Gen. 23,18-25). Como afirma Bento XVI na
sua recente Encíclica, a relação entre o homem e a mulher,
exprime o principal protótipo do amor, garantia da felicidade.
“Em toda a gama de significados da palavra amor, o amor entre
o homem e a mulher (…) sobressai como arquétipo do amor por
excelência” (S.S. Bento XVI, “Deus caritas est”, n.º 1).
A relação com os outros homens completa-se no relacionamento
com o universo criado, casa comum de toda a família humana,
que lhe foi dado para que o cultivasse e aperfeiçoasse,
mostrando, assim, a sua colaboração com o próprio Criador.
Todas as coisas pertencem a Deus, que as colocou a todos sob o
poder do homem, para que as desenvolva e aperfeiçoe, não para
que as destrua. A Lei natural encerra, finalmente, uma clara
exigência moral. O poder discernir entre o bem e o mal está
afirmado na narração da Criação, na “árvore da ciência do bem
e do mal” (cf. Gen. 2,9-10; 3,3). Só Deus é Senhor da vida
humana e nenhum homem tem poder sobre a vida de outro ser
humano (Gen. 4,9-12); ao contrário, tem o dever de a cultivar
e multiplicar (Gen. 1,28).
5. Esta Lei natural não pode ser anulada por nenhuma lei
positiva. Quando na constituição do Povo de Israel surge a Lei
de Moisés, ela é a explicitação clara desta lei impressa no
coração do homem. O núcleo central da Lei mosaica é
constituído pelos ditames da Lei natural: amarás o Senhor teu
Deus, honrarás pai e mãe e não cobiçarás a mulher do próximo,
não matarás, tratarás com justiça a todos por igual, mesmo o
pobre e o estrangeiro.
Deus não se pode contradizer ou mudar inesperadamente a Sua
vontade acerca do homem. Durante séculos, até Jesus Cristo,
plenitude da Lei, Deus não fez mais que manifestar a
profundidade e a verdade deste código de vida, que é mensagem
constitutiva do ser humano.
Esta Lei natural é pré-religiosa, é constitutiva do ser
humano. Ela vai exprimir-se em religiões e culturas, mas para
além de todas elas é património universal da humanidade.
Encontramo-la, na sua verdade fundamental, em todas as
religiões e culturas, fundamento ético que deveria ser
respeitado por todas as leis humanas.
As leis humanas
6. As leis
são uma expressão normal e necessária das regras de
convivência dos homens em sociedade. Elas traduzem o modelo de
sociedade a construir, porque aplicam à prática da existência
os valores éticos a promover. São grandes os povos que têm
leis sábias e justas. Estas são indesligáveis da cultura dos
povos, pois só a cultura garante a síntese desses valores,
numa tradição que reúne o passado e o presente e harmoniza
todas as expressões da alma de um povo: a religião, a arte, o
pensamento, a sabedoria com que se venceram dificuldades e se
ultrapassaram conflitos.
Quando um povo faz leis que agridem o seu património cultural,
compromete a sua própria harmonia.
As religiões foram sempre uma expressão importante da Lei
natural e elemento marcante da constituição das culturas. Não
admira que muitas vezes, ao longo da história, e em diversos
horizontes culturais, a religião inspirasse as leis humanas
que regulavam a convivência dos povos. Foi assim no Povo de
Israel, onde todas as leis deveriam ser expressões da Lei de
Deus; foi assim na Europa, numa época de forte predominância
dos valores cristãos na estrutura das sociedades; ainda hoje é
assim em alguns países de maioria islâmica, onde continua viva
a tendência de identificar lei religiosa e lei civil.
No Ocidente, cujas culturas têm no judeo-cristianismo a sua
identidade matricial, nunca houve uma total identificação
entre lei religiosa e lei civil. E com o andar dos tempos
foi-se acentuando a autonomia do Estado em relação à Igreja,
que encontrou na autonomia da legislação civil uma das suas
principais expressões. Ninguém, hoje, na Igreja, pretende
impor a lei religiosa como lei civil. Ao respeitar a autonomia
do Estado, a Igreja respeita a sua autonomia legislativa. Mas
isso não nos pode fazer esquecer que a fé cristã, que tem uma
componente moral inevitável, continua a inspirar os
comportamentos dos crentes e a ter primazia sobre as leis
civis, quando estas agridem a moralidade cristã.
Mas continuamos a afirmar que todas as leis se devem inspirar
na nossa cultura, a que não é alheia a maioria católica do
nosso povo. Há sintomas preocupantes de leis já aprovadas,
outras em elaboração e outras anunciadas, que não respeitam
aquele “universal humano” contido na Lei natural. E quando a
Igreja se pronuncia contra essas leis, não o faz contra
pessoas ou grupos, mas sim na defesa de valores fundamentais,
radicados na própria dignidade da pessoa humana, e não o faz
para impor perspectivas religiosas ao conjunto dos cidadãos.
Sabemos distinguir entre leis religiosas, que só obrigam em
consciência os crentes, e leis civis justas e consentâneas com
os valores mais profundos da nossa cultura.
7. Este tipo de leis exige aos cristãos um discernimento
claro: nem tudo o que é legal é moral. Esta é uma tendência
facilitante, a de considerar que o que é legal é moral. E pode
haver leis civis, que se os cristãos as aplicarem a si mesmos,
pecam, ofendendo gravemente a Deus. Em certas circunstâncias
devem mesmo recusar-se, através do estatuto de “objectores de
consciência”, a participar na sua aplicação. Mesmo nesses
casos a sua participação na sociedade não pode ser passiva.
Devem intervir na discussão pública, propondo os valores
éticos da nossa tradição cultural. É um dos casos em que pode
ser decisiva a presença activa dos cristãos na cidade.
É característica da moderna actividade legislativa dar
prioridade à regulação de problemas concretos e situações de
facto, esquecendo que a recta solução dessas situações tem de
se fazer com leis que veiculam a dignidade da pessoa humana,
solidária e responsável, respeitando a natureza e propondo os
valores superiores da cultura. Transigir em valores
fundamentais é sempre ir contra a pessoa humana, mesmo quando,
no imediato, se vai ao encontro dos interesses de alguns. Na
perspectiva cristã, o amor fraterno é a síntese de todas as
leis.
Sé
Patriarcal, 5 de Março de 2006
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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