Os proponentes desta ideologia querem
afirmar que as diferenças entre o homem e a mulher, fora as
óbvias diferenças anatómicas, não correspondem a uma natureza
fixa que torne alguns seres humanos homens e, a outros,
mulheres. Pensam, além disso, que as diferenças de pensar,
agir e valorizar a si mesmos são produto da cultura de um país
e de uma época determinadas, que atribui a cada grupo de
pessoas uma série de características que se explicam pelas
conveniências das estruturas sociais de certa sociedade.
Querem rebelar-se contra isto e deixar à
liberdade de cada um o tipo de "género" a que quer pertencer,
todos igualmente válidos. Isto faz com que homens e mulheres
heterossexuais, os homossexuais, as lésbicas e os bissexuais
sejam apenas modos de comportamento sexual produto da escolha
de cada pessoa, liberdade que todos os demais devem respeitar.
Não é necessária muita reflexão para se dar
conta de quão revolucionária é esta posição e das
consequências que implicam a negação de que há uma natureza
dada a cada um dos seres humanos no seu património genético.
Dilui-se a diferença entre os sexos como algo
convencionalmente atribuído pela sociedade e cada um se pode
"inventar" a si mesmo.
Toda a moral fica à livre decisão do
indivíduo e desaparece a diferença entre o permitido e o
proibido nesta matéria. As consequências religiosas são também
óbvias. É conveniente que o público em geral perceba
claramente o que tudo isto significa, pois os proponentes
desta ideologia usam sistematicamente uma linguagem equívoca
para se poderem infiltrar mais facilmente no ambiente,
enquanto habituam as pessoas a pensar como eles. Esta
exposição pode auxiliar muito na precisão dos conceitos e
ajudar tomar posição em relação à mencionada ideologia.
Mons. Oscar Alzamora Revoredo, S.M.
Bispo Auxiliar de Lima - Membro da CEAL
Lima, Abril 1998. 2
"O género é uma construção cultural;
consequentemente, não é nem resultado causal do sexo nem tão
aparentemente fixo como o sexo... Ao teorizar que o género é
uma construção radicalmente independente do sexo, o próprio
género vem a ser um artifício livre de ataduras; em
consequência, 'homem' e 'masculino' poderiam significar tanto
um corpo feminino quanto um masculino; 'mulher' e 'feminino',
tanto um corpo masculino quanto feminino"[1].
Estas palavras - que podem parecer
extraídas de um conto de ficção científica vaticinando uma
séria perda do senso comum no ser humano - não são outra coisa
senão um extracto do livro "Gender Trouble: Feminism and
the Subversion of Identity" ("O Problema do Género: o
Feminismo e a Subversão da Identidade"), da feminista radical
Judith Butler, que vem sendo usado há vários anos como
texto-base em diversos programas de estudos feministas de
prestigiadas universidades norte-americanas, onde a
perspectiva do género vem sendo amplamente promovida.
Enquanto muitos poderiam continuar
considerando o termo "género" apenas como uma forma cortês de
se dizer "sexo", para evitar o sentido secundário que "sexo"
possui em inglês, e que, portanto, "género" se refere a seres
humanos masculinos e femininos, existem outros que, já há
alguns anos, decidiram difundir toda uma "nova perspectiva" do
termo. Esta perspectiva - para surpresa de muitos - refere-se
ao termo "género" como "papéis socialmente construídos".
A IV Conferência Mundial das Nações Unidas
sobre a Mulher, realizada em Setembro de 1995 em Pequim
[China], foi o cenário escolhido pelos promotores da nova
perspectiva para lançar uma forte campanha de persuasão e
difusão. É por isso que desde a mencionada Conferência, a
"perspectiva do género" se tem infiltrado em diferentes
âmbitos, não apenas nos países industrializados como também
nos países em desenvolvimento.
Precisamente na Conferência de Pequim,
muitos dos delegados participantes que ignoravam esta "nova
perspectiva" do termo em questão, solicitaram aos seus
principais promotores uma definição clara que pudesse trazer
luz ao debate. Assim, a direcção da Conferência da ONU
publicou a seguinte definição:
"O género refere-se às relações entre
mulheres e homens baseadas em papéis definidos socialmente que
são atribuídos a um ou outro sexo".
Esta definição causou confusão entre os
delegados da Conferência, principalmente entre aqueles
provenientes de países católicos e da Santa Sé, que pediram
uma maior explicitação do termo, já que se pressentia que este
conceito poderia encobrir uma agenda inaceitável que incluiria
a tolerância das orientações e identidades homossexuais, entre
outras coisas. Foi então que Bella Abzug, ex-deputada do
Congresso dos Estados Unidos, interveio para complementar a
nova interpretação do termo "género":
"O sentido do termo 'género' evoluiu,
diferenciando-se da palavra 'sexo' para expressar a realidade
de que a situação e os papéis da mulher e do homem são
construções sociais sujeitas a mudança".
Ficava claro, assim, que os partidários da
"perspectiva do género" propunham algo muito mais temerário
como, por exemplo, que "não existe um homem natural ou uma
mulher natural; que não há conjunção de características ou de
uma conduta exclusiva de um só sexo apenas, nem sequer na vida
psíquica"[2]. Logo, "a inexistência de uma essência feminina
ou masculina nos permite rejeitar a suposta 'superioridade' de
um ou outro sexo e questionar a possibilidade de existir uma
forma 'natural' de sexualidade humana"[3].
Diante de tal situação, muitos delegados
questionaram o termo assim como a sua inclusão no documento.
No entanto, a ex-deputada Abzug advogou duramente a seu favor:
"O conceito de 'género' está encravado no
discurso social, político e legal contemporâneo. Tem integrado
a planificação conceptual, a linguagem, os documentos e
programas dos sistemas das Nações Unidas... As tentativas
actuais de diversos Estados Membros de apagar o termo 'género'
na Plataforma de Acção e substituí-lo por 'sexo' é uma
tentativa insultante e degradante de revogar as conquistas das
mulheres, de nos intimidar e de bloquear o progresso futuro".
A paixão de Bella Abzug no sentido de
incluir o termo em Pequim chamou a atenção de muitos
delegados. No entanto, o assombro e desconcerto foi ainda
maior quando um dos participantes difundiu alguns textos
divulgados pelas feministas do género, professoras de
reconhecidos colégios e universidades dos Estados Unidos. De
acordo com a lista de leituras obtida pelo delegado, as
"feministas do género" defendem e propagam as seguintes
definições:
Essas definições foram extraídas do
material obrigatório do curso "Re-imagem do Género", produzido
por um prestigiado colégio norte-americano. Além disto, as
seguintes afirmações constam da bibliografia obrigatória do
mesmo:
- "A teoria feminista já não se pode dar ao
luxo de apenas pregar uma tolerância ao 'lesbianismo' como
'estilo alternativo de vida' ou fazer alusão à amostragem das
lésbicas.
- Retardou-se demasiadamente uma crítica
feminista da orientação heterossexual obrigatória da
mulher"[4].
- "Uma estratégia apropriada e viável do
direito ao aborto é a de informar a toda mulher que a
penetração heterossexual é uma violação, seja qual for a sua
experiência subjectiva em contrário"[5].
As afirmações citadas poderiam parecer
suficientemente reveladoras sobre a perigosa agenda dos
promotores desta "perspectiva". Contudo, existem ainda outros
postulados que as "feministas do género" propagam cada vez com
maior força:
"Cada criança é enquadrada em uma ou outra
categoria com base na forma e tamanho dos seus órgãos
genitais. Uma vez feito este enquadramento, nos convertemos no
que a cultura pensa que cada um é: feminino ou masculino.
Ainda que muitos creiam que o homem e a mulher são expressão
natural de um plano genético, o género é produto da cultura; e
o pensamento humano, uma construção social que cria a
'verdadeira natureza' de todo indivíduo"[6].
Para as "feministas do género" isto
"implica classe e a classe pressupõe desigualdade. Lutar mais
para desconstruir o género conduzirá muito mais rapidamente à
meta"[7].
O FEMINISMO DO GÉNERO
Porém, em que consiste o "feminismo do
género" e qual é a diferença com o "feminismo" habitual? Para
compreender mais profundamente o debate em torno do "termo
género" vale a pena responder a esta questão.
O termo "feministas do género" foi cunhado
primeiramente por Christina Hoff Sommers, no seu livro "Who
Stole Feminism?" ("Quem Roubou o Feminismo?"), a fim de
distinguir o feminismo de ideologia radical, surgido em finais
da década de 1960, do movimento feminista anterior, que visava
a igualdade. Eis as palavras de Hoff Sommers:
"O feminismo de igualdade é simplesmente a
crença na igualdade legal e moral dos sexos. Uma feminista de
igualdade quer para a mulher o que quer para todos: tratamento
justo, ausência de discriminação. Pelo contrário, o feminismo
do 'género' é uma ideologia que pretende abranger tudo,
segundo a qual a mulher norte-americana está presa a um
sistema patriarcal opressivo. A feminista de igualdade opina
que as coisas melhoraram muito para a mulher; a feminista do
'género' pensa que pioraram; encontram sinais de patriarcado
onde quer que estejam e pensam que a situação ficará ainda
pior. Entretanto, isto carece de fundamento na realidade
norte-americana. As coisas nunca estiveram melhores para a
mulher; hoje 55% dos estudantes universitários são mulheres,
enquanto que a diferença salarial continua caindo"[8].
Ao que parece, este "feminismo do género"
teve uma forte presença na Conferência de Pequim. É o que
afirma Dale O'Leary, autora de numerosos ensaios sobre a
mulher e participante da Conferência de Pequim; ela assegura
que durante todas as reuniões de trabalho aquelas mulheres que
se identificaram como feministas advogaram persistentemente
pela inclusão da "perspectiva do género" no texto, definindo
"género" como "papéis socialmente construídos" e usando a
palavra "género" para substituir a palavra "mulher" ou a
expressão "masculino e feminino".
De fato, todas as pessoas familiarizadas
com os objectivos do "feminismo do género" reconheceram
imediatamente a conexão entre a mencionada ideologia e o
rascunho do "Programa de Ação" de 27 de Fevereiro, que incluía
propostas aparentemente inocentes e termos particularmente
ambíguos.
NEO-MARXISMO
Nas palavras de Dale O'Leary, a teoria
do "feminismo do género" se baseia numa interpretação
neo-marxista da História. Começa com a afirmação de Marx de
que toda a história é uma luta de classes, do opressor contra
o oprimido, numa batalha que se resolverá somente quando os
oprimidos perceberem a sua situação, se levantarem em
revolução e impuserem uma ditadura dos oprimidos. A sociedade
será totalmente reconstruída e surgirá a sociedade sem
classes, livre de conflitos, que assegurará a paz e a
prosperidade utópicas para todos.
O'Leary acrescenta que Frederick Engels foi
quem colocou as bases da união entre o Marxismo e o Feminismo.
Para isto, cita o livro "A Origem da Família, da
Propriedade e do Estado", escrito pelo pensador alemão em
1884, que assinala:
"O primeiro antagonismo de classes da
História coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o
homem e a mulher unidos em matrimónio monogâmico; e a primeira
opressão de uma classe por outra, com a do sexo feminino pelo
masculino"[9].
Segundo O'Leary, os marxistas clássicos
acreditavam que o sistema de classes desapareceria uma vez que
se eliminasse a propriedade privada, se facilitasse o
divórcio, se aceitasse a ilegitimidade, se forçasse a entrada
da mulher no mercado de trabalho, se colocassem as crianças em
creches e se eliminasse a religião. Porém, para as "feministas
do género", os marxistas fracassaram por se concentrarem em
soluções económicas, sem atacar directamente a família, que
era a verdadeira causa das classes.
Nesse sentido, a feminista Shulamith
Firestone afirma a necessidade de se destruir a diferença de
classes, mais ainda a diferença dos sexos:
"...para assegurar a eliminação das classes
sexuais é preciso que a classe subjugada (as mulheres) se
levante em revolução e se apodere do controle da reprodução;
se devolva à mulher a propriedade dos seus próprios corpos,
como também o controle feminino da fertilidade humana,
incluindo tanto as novas tecnologias quanto todas as
instituições sociais de nascimento e cuidado das crianças. E
assim como a meta final da revolução socialista era não apenas
acabar com o privilégio da classe económica como também a
própria distinção das classes económicas, a meta definitiva da
revolução feminista deve ser igualmente - e diversamente do
primeiro movimento feminista - não só acabar com o privilégio
masculino como também com a própria distinção dos sexos: as
diferenças genitais entre os seres humanos já não importam
culturalmente"[10].
QUANDO A NATUREZA INCOMODA
É claro, portanto, que para esta nova
"perspectiva do género", a realidade da natureza incomoda,
atrapalha e, assim, deve desaparecer. A esse respeito, a
própria Shulamit Firestone dizia:
"O 'natural' não é necessariamente um valor
'humano'. A humanidade começou a ultrapassar a natureza; já
não podemos justificar a continuidade de um sistema
discriminatório de classes por sexos tendo por base suas
origens na Natureza. De facto, apenas por razão de pragmatismo
começa a parecer que devemos desfazer-nos dela"[11].
Para os apaixonados defensores da "nova
perspectiva", não se devem fazer distinções porque qualquer
diferença é suspeita, má, ofensiva. Dizem ainda que toda
diferença entre o homem e a mulher é construção social e, por
conseguinte, precisa ser alterada. Buscam estabelecer uma
igualdade total entre homem e mulher sem considerar as
naturais diferenças entre ambos, especialmente as diferenças
sexuais; mais ainda, relativizam a noção de sexo de tal
maneira que, segundo eles, não existiriam dois sexos, mas sim
muitas "orientações sexuais".
Com efeito, os mencionados promotores do
"género" não encontraram melhor opção do que declarar guerra à
natureza e às opções da mulher. Segundo O'Leary, as
"feministas do género" denigrem o respeito pela mulher com a
mesma veemência com que atacam a falta de respeito, já que
para elas o "inimigo" é a diferença.
No entanto, é evidente que nem toda a
diferença é má, muito menos irreal. Tanto o homem quanto a
mulher - criados à imagem e semelhança de Deus - têm suas
próprias particularidades naturais que devem ser colocadas ao
serviço do outro, para alcançar um enriquecimento mútuo. Isto
- claro está - não significa que os recursos pessoais da
feminilidade sejam menores que os recursos da masculinidade;
apenas significa que são diferentes. Nesse sentido, se
aceitamos o fato de que o homem e a mulher são diferentes, uma
diferença estatística entre homens e mulheres que participam
de uma certa actividade poderia ser mais do que uma amostra de
discriminação: o simples reflexo destas diferenças naturais
entre homem e mulher.
Não obstante, diante da evidência de que
estas diferenças são naturais, os promotores da "nova
perspectiva" não questionam suas teorias, preferindo mais
atacar o conceito de natureza. Além disso, consideram que as
diferenças de "género" - que, segundo eles, existem em razão
de uma construção social - forçam a mulher a ser dependente do
homem e, por isso, a liberdade para a mulher não consistirá em
agir sem restrições indevidas, mas em libertar-se dos "papéis
de género socialmente construídos". Nesse sentido, Ann
Ferguson e Nancy Folbre afirmam:
"As feministas devem encontrar modos de
apoio para que a mulher identifique os seus interesses como
mulher, antes dos seus deveres pessoais para com o homem no
contexto da família. Isto requer estabelecer uma cultura
feminista revolucionária autodefinida da mulher, que possa
sustentar a mulher ideológica e materialmente 'fora do
patriarcado'. As redes de apoio contra-hegemónico material e
cultural podem prover substitutos, identificados com a mulher,
da produção sexo-afectiva patriarcal, que proporcionem às
mulheres maior controle sobre os seus corpos, o seu tempo de
trabalho e o seu sentido de si mesmas"[12].
Com esse fim, Ferguson e Folbre propõem
quatro áreas principais de "ataque":
1. Obter apoio económico oficial para o
cuidado das crianças e os direitos reprodutivos.
2. Obter liberdade sexual, que inclui o
direito à preferência sexual (direitos homessexuais-lésbicos).
3. O controle feminista da produção
ideológica e cultural (é importante porque a produção cultural
afecta os fins, o sentido de si mesmo, as redes sociais e a
produção de redes de criação e afecto, amizade e parentesco
social).
4. Estabelecer ajuda mútua: sistemas de
apoio económico à mulher, desde redes de identidade exclusiva
com a mulher até grupos de mulheres nos sindicatos que lutem
pelos interesses femininos no trabalho assalariado.[13]
UMA BOA DESCULPA: A MULHER
Após rever a peculiar "agenda feminista",
Dale O'Leary evidencia que o propósito de cada ponto da mesma
não é melhorar a situação da mulher, mas separar a mulher do
homem e destruir a identificação de seus interesses com os de
suas famílias. Mesmo assim - acrescenta a especialista - o
interesse primordial do feminismo radical nunca foi o de
melhorar directamente a situação da mulher, nem aumentar a sua
liberdade; ao contrário, para as feministas radicais activas,
as melhorias menores podem obstar à revolução da classe
sexo/género.
Esta afirmação é confirmada pela feminista
Heidi Hartmann, que radicalmente afirma:
"A questão da mulher nunca foi a 'questão
feminista'. Esta se dirige às causas da desigualdade sexual
entre homens e mulheres, do domínio masculino sobre a
mulher"[14].
Não foi em vão que durante a Conferência de
Pequim a delegada canadense Valerie Raymond manifestou o seu
interesse no sentido de que a Conferência fosse abordada,
paradoxalmente, "não como uma 'Conferência da Mulher'", mas
como uma conferência em que "os temas deveriam ser tratados
através de uma 'óptica do género'".
Assim, diz O'Leary, a "nova perspectiva"
tem como objectivo impulsionar a agenda
homossexual-lésbica-bissexual-transexual e não os interesses
das mulheres comuns e correntes.
PAPÉIS SOCIALMENTE CONSTRUÍDOS
Para tratar deste ponto, tomemos a
definição de "género" fornecida por um panfleto que circulou
na Reunião do Comité Preparatório de Pequim (ComPrep)
preparado pelas partidárias da perspectiva em questão:
"Género se refere aos papéis e
responsabilidades da mulher e do homem que são determinadas
socialmente. O género se relaciona com a forma como se nos faz
perceber o que se espera que pensemos e façamos como mulheres
e homens, de acordo com a forma como a sociedade se encontra
organizada e não devido às nossas diferenças biológicas".
Vale a pena assinalar que o termo "papéis"
distorce a discussão. Seguindo o estudo de O'Leary, "papel" se
define primariamente como parte de uma produção teatral na
qual uma pessoa, especialmente vestida e maquiada, representa
um personagem conforme um roteiro escrito.
O emprego do termo "papel" ou da expressão
"papéis desempenhados" transmite necessariamente a sensação de
algo artificial que é imposto a uma pessoa.
Quando se substitui "papel" por outro
vocábulo - tal como "vocação" - põe-se de manifesto como o
termo "papel" afecta a nossa percepção de identidade. Vocação
envolve algo autêntico, não artificial, um chamamento para
sermos o que somos. Respondemos à nossa vocação para realizar
a nossa natureza ou desenvolver os nossos talentos e
capacidades inatos. Nesse sentido, por exemplo, O'Leary
destaca a vocação feminina para a maternidade, pois a
maternidade não é um "papel".
Quando a mãe concebe um filho, empreende
uma relação duradoura com outro ser humano. Esta relação
define a mulher, lhe coloca certas responsabilidades e afecta
quase todos os aspectos da sua vida. Não está representando o
papel de mãe; é uma mãe. A cultura e a tradição certamente
influem sobre o modo de como a mulher cumpre as
responsabilidades advindas da maternidade, mas não criam mães
- esclarece O'Leary.
Entretanto, os promotores da "perspectiva
do género" insistem em dizer que toda relação ou actividade
dos seres humanos é resultante de uma "construção social", que
outorga ao homem uma posição superior na sociedade e, à
mulher, uma [posição] inferior. Segundo esta perspectiva, o
progresso da mulher requer que se liberte toda a sociedade
desta "construção social", de modo que o homem e a mulher
sejam iguais.
Para isso, as "feministas do género"
assinalam a urgência de "desconstruir estes papéis socialmente
construídos"; segundo elas, podem ser divididos em três
categorias principais:
1. Masculinidade e Feminilidade:
consideram que o homem e a mulher adultos são construções
sociais; que, na realidade, o ser humano nasce sexualmente
neutro e que logo é socializado em homem ou mulher. Esta
socialização - afirmam - afecta a mulher negativa e
injustamente. Por isso, as feministas propõem depurar a
educação e os meios de comunicação de todo estereótipo e de
toda imagem específica de género, para que as crianças possam
crescer sem que sejam expostas a trabalhos "específicos do
sexo".
2. Relações Familiares: pai, mãe,
marido e mulher... As feministas não apenas pretendem que se
substituam estes termos "género-específicos" por palavras "género-neutras",
como também aspiram a que não haja diferenças de conduta nem
responsabilidade entre o homem e a mulher na família. Segundo
Dale O'Leary, esta é a categoria dos "papéis socialmente
construídos" a que as feministas atribuem maior importância
porque consideram que a experiência das relações "sexo-específicas"
na família são a principal causa do sistema de classes
"sexo/géneros".
3. Ocupações ou Profissões: o terceiro
tipo de "papéis socialmente construídos" abrange as profissões
que uma sociedade atribui a um ou outro sexo.
Embora as três categorias de "construção
social" já pudessem ser suficientes, o repertório das
"feministas do género" inclui ainda outra: a reprodução humana
que - segundo afirmam - também é socialmente determinada. A
esse respeito, Heidi Hartmann afirma:
"A forma com que se propaga a espécie
[humana] é determinada socialmente. Se biologicamente a pessoa
é sexualmente polimorfa e a sociedade estivesse organizada de
modo que se permitisse por igual toda forma de expressão
sexual, a reprodução seria resultado apenas de alguns
encontros sexuais: os heterossexuais. A divisão estrita do
trabalho por sexos, uma invenção social comum a toda sociedade
conhecida, cria dois géneros bem separados e a necessidade de
que o homem e a mulher se juntem por razões económicas.
Contribui assim para orientar as suas exigências sexuais para
a realização heterossexual e para assegurar a reprodução
biológica. Nas sociedades mais criativas, a reprodução
biológica poderia ser assegurada mediante outras
técnicas"[15].
O OBJECTIVO: DESCONSTRUIR A SOCIEDADE
Resta claro, portanto, que a meta dos
promotores da "perspectiva do género", fortemente presente em
Pequim, é o de atingir uma sociedade sem classes de sexo. Para
isso, propõem desconstruir a linguagem, as relações
familiares, a reprodução, a sexualidade, a educação, a
religião, a cultura, entre outras coisas. A esse respeito, o
material de trabalho do curso "Re-imagem do Género" diz o
seguinte:
"O género implica classe e a classe
pressupõe desigualdade. Lutar para desconstruir o género
levará muito mais rapidamente à meta. Ora, é uma cultura
patriarcal e o género parece ser básico ao patriarcado. Depois
de tudo, os homens não gozariam do privilégio masculino se não
houvesse homens. E as mulheres não seriam oprimidas se não
existisse tal coisa como 'a mulher'. Acabar com o género é
acabar com o patriarcado, bem como com as muitas injustiças
perpetradas em nome da desigualdade entre os géneros"[16].
Nesse sentido, Susan Moller Okin escreveu
um artigo em que passa a prognosticar o que - para ela - seria
o "sonho futuro sem géneros":
"Não haveria presunções sobre papéis
masculinos ou femininos. Dar à luz estaria conceptualmente tão
distante do conceito infantil que seria motivo de assombro que
homens e mulheres não fossem igualmente responsáveis pelas
áreas domésticas, ou que os filhos passassem muito mais tempo
com um dos pais do que com o outro. Seria um futuro em que
homens e mulheres participariam em número aproximadamente
igual em todas as esferas da vida, desde o cuidado das
crianças até o desempenho político de mais alto nível,
incluindo os mais diversos tipos de trabalho assalariado. Se
temos que guardar a mais mínima lealdade aos nossos ideais
democráticos, é essencial distanciarmo-nos do género... Parece
inegável que a dissolução dos papéis de género contribuiria
para promover a justiça em toda nossa sociedade, fazendo assim
da família um lugar muito mais apto para que os filhos
desenvolvam um sentido de justiça"[17].
Para isso, propõem também a "desconstrução
da educação" tal como se lê no discurso da Presidente da
Islândia, Vigdis Finnbogadottir, proferido em uma conferência
preparatória para a Conferência de Pequim, organizada pelo
Conselho Europeu em Fevereiro de 1995.
Para ela - assim como para todos os demais
defensores da "perspectiva do género" - urge desconstruir não
apenas a família mas ainda a educação. As meninas devem ser
orientadas para áreas não tradicionais e não devem ser
expostas à imagem da mulher como esposa ou mãe, nem devem ser
envolvidas em actividades femininas tradicionais.
"A educação é uma estratégia importante
para mudar os preconceitos em relação aos papéis do homem e da
mulher na sociedade. A perspectiva do 'género' deve ser
integrada nos programas. Devem ser eliminados os estereótipos
nos textos escolares e motivados neste sentido os professores,
para assegurar assim que meninas e meninos efectuem uma
selecção profissional consciente e não com base em tradições
preconceituosas sobre o 'género'"[18].
PRIMEIRO ALVO: A FAMÍLIA
"O fim da família biológica eliminará
também a necessidade da repressão sexual. A homossexualidade
masculina, o lesbianismo e as relações sexuais extraconjugais
já não serão vistas de forma liberal, como opções
alternativas, fora do alcance da regulamentação estatal... Ao
invés disto, até as categorias de homossexualidade e
heterossexualidade serão abandonadas: a própria 'instituição
das relações sexuais', em que o homem e a mulher desempenham
um papel bem definido, desaparecerá. A humanidade poderá
reverter, finalmente, a sua sexualidade polimorfamente pervesa
natural"[19].
Estas palavras de Alison Jagger, autora de
diversos textos-base empregados em programas de estudos
feministas de universidades norte-americanas, revelam
claramente a hostilidade das "feministas do género" diante da
família.
"A igualdade feminista radical significa
não simplesmente igualdade sob a lei e nem sequer igual
satisfação das necessidades básicas, mas sim que as mulheres -
da mesma forma que os homens - não precisem dar à luz... A
destruição da família biológica que Freud jamais vislumbrou
permitirá a emergência de mulheres e homens novos, diferentes
daqueles que existiram anteriormente"[20].
Ao que parece, a principal razão da
rejeição feminista à família é que, para elas, esta
instituição básica da sociedade "cria e apóia o sistema de
classes sexo/género". Assim explica Christine Riddiough,
colaboradora da revista publicada pela instituição
internacional antivida "Catholics for a Free Choice"
("Católicas pelo Direito de Decidir"):
"A família nos oferece as primeiras lições
da ideologia de classe dominante e também reforça a
legitimidade de outras instituições da sociedade civil. Nossas
famílias são as que nos ensinam primeiramente a religião, a
sermos bons cidadãos... Tão completa é a hegemonia da classe
dominante na família que nos ensina que esta encarna a ordem
natural das coisas. Se baseia, em particular, numa relação
entre o homem e a mulher que reprime a sexualidade,
especialmente a sexualidade da mulher"[21].
Para aqueles que têm uma visão marxista das
diferenças de classes como causa dos problemas - indica
O'Leary - 'diferente' é sempre 'desigual' e 'desigual' é
sempre 'opressor'.
Neste sentido, as "feministas do género"
consideram que quando a mulher cuida de seus filhos no lar e o
marido trabalha fora de casa, as responsabilidades são
diferentes e, portanto, não igualitárias. Então vêem esta
"desigualdade" no lar como causa de "desigualdade" na vida
pública, já que a mulher - cujo interesse primário é o lar -
nem sempre tem tempo e energia para se dedicar à vida pública.
Por isso, afirmam:
"Pensamos que nenhuma mulher deveria
possuir esta opção. Não se deveria autorizar nenhuma mulher a
ficar em casa para cuidar de seus filhos. A sociedade deve ser
totalmente diferente. As mulheres não devem ter esta opção
porque, se esta opção existir, muitas mulheres decidir-se-ão
por ela"[22].
Ademais, as "feministas do género" insistem
na desconstrução da família não só porque - segundo elas -
escraviza a mulher, mas ainda porque condiciona socialmente os
filhos para que aceitem a família, o matrimónio e a
maternidade como algo natural. A esse respeito, Nancy Chodorow
afirma: 11
"Se a nossa meta é acabar com a divisão
sexual do trabalho na qual a mulher é mãe, temos que entender
em primeiro lugar os mecanismos que a reproduzem. Minha
constatação indica exactamente o ponto em que se deve
intervir. Qualquer estratégia para a mudança cuja meta abranja
a libertação das restrições impostas por uma desigual
organização social por géneros deve considerar a necessidade
de uma reorganização fundamental do cuidado com os filhos,
para que seja compartilhado igualmente por homens e
mulheres"[23].
Fica claro que para os promotores do
"género" as responsabilidades da mulher na família são
supostamente inimigas da realização da mulher. O ambiente
particular é considerado como secundário e de menor
importância; a família e o trabalho no lar, como "ónus" que
afectam negativamente os "projectos profissionais" da mulher.
Este ataque declarado contra a família,
contudo, contrasta notavelmente com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos promulgada, como se sabe, pela ONU em 1948.
No artigo 16 da mesma, as Nações Unidas defendem enfaticamente
a família e o matrimónio:
1. Os homens e as mulheres, a partir da
idade núbil, têm direito, sem restrição alguma em razão de
raça, nacionalidade ou religião, a casar e constituir uma
família; e desfrutarão de iguais direitos quanto ao
matrimónio, durante o matrimónio e em caso de dissolução do
matrimónio.
2. Apenas mediante livre e pleno
consentimento dos futuros esposos poder-se-á contrair o
matrimónio.
3. A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade; e tem direito à protecção da
sociedade e do Estado.
Entretanto, os artífices da nova
"perspectiva do género" presentes na Conferência da Mulher
colocaram à margem todas estas premissas e, pelo contrário,
apontaram, a partir de então, a necessidade de "desconstruir"
a família, o matrimónio, a maternidade e a própria
feminilidade para que o mundo possa ser livre.
Por outro lado, os representantes das
principais nações comprometidas com a defesa da vida e dos
valores familiares que participaram na conferência de Pequim,
levantaram as suas vozes contra esta espécie de proposta,
sobretudo ao descobrir que o documento da Conferência
eliminava arbitrariamente do vocabulário do programa as
palavras "esposa", "marido", "mãe", "pai". Liderou tal posição
Barbara Ledeen, directora do Independent Women Forum,
uma organização de defesa da mulher amplamente reconhecida nos
Estados Unidos.
O Papa João Paulo II, pela sua parte, algum
tempo antes da Conferência de Pequim, já havia insistido em
assinalar a estreita relação entre a mulher e a família.
Durante o encontro que manteve com Gertrude Mongella,
secretária-geral da Conferência da Mulher, anterior à reunião
mundial, disse:
"Não há resposta para os temas sobre a
mulher que possa desconsiderar a função da mulher na
família... Para respeitar esta ordem natural, é necessário
fazer frente à concepção equivocada de que a função da
maternidade é opressiva para a mulher"[24].
Lamentavelmente, a proposta do Conselho
Europeu para a Plataforma de Acção de Pequim foi completamente
alheia às orientações do Santo Padre. Diante desta postura,
O'Leary escreve em seu relatório que, ainda que seja certo que
as mulheres não devam se apresentar unicamente como esposas e
mães, muitas são esposas e mães, e por isso uma imagem
positiva da mulher que se dedica apenas ao trabalho do lar não
possui nada de mau. Porém, a meta da perspectiva do "género"
não representa autenticamente a vida da mulher, mas é uma
estereotipificação inversa segundo a qual as mulheres que
"apenas" são esposas e mães nunca aparecerão sob um prisma
favorável.
SAÚDE E DIREITOS SEXUAIS REPRODUTIVOS
Na mesma linha, as "feministas do género"
incluem como parte essencial da sua agenda a promoção da
"livre decisão" em assuntos de reprodução e estilo de vida.
Segundo O'Leary, "livre decisão de reprodução" é a expressão
chave para se referir ao pedido de aborto, enquanto que
"estilo de vida" aponta para a promoção da homossexualidade,
do lesbianismo e qualquer outra forma de sexualidade fora do
matrimónio. Assim, por exemplo, os representantes do Conselho
Europeu em Pequim lançaram a seguinte proposta:
"As vozes das mulheres jovens devem ser
ouvidas já que a vida sexual não gira apenas ao redor do
matrimónio. Isto conduz ao aspecto do direito de ser
diferente, seja em termos de estilo de vida (a decisão de
viver em família ou sozinha, com ou sem filhos), seja em
termos de preferências sexuais. Devem ser reconhecidos os
direitos reprodutivos da mulher lésbica"[25].
Estes "direitos" das lésbicas incluiriam
também o "direito" dos casais de lésbicas a conceber filhos
mediante a inseminação artificial e de adoptar legalmente os
filhos de suas companheiras.
Porém, os defensores do "género" não apenas
propõem estes tipos de aberrações como também defendem o
"direito à saúde" que, para o bem da verdade, se afasta por
completo da verdadeira saúde do ser humano. Com efeito,
ignorando o direito de todo ser humano à vida, estes propõem o
direito à saúde que inclui o direito à saúde sexual e
reprodutiva. Paradoxalmente, esta "saúde reprodutiva" inclui o
aborto e, portanto, a "morte" dos seres humanos não-nascidos.
Não é em vão que as "feministas do género"
são fortes aliadas dos ambientalistas e populacionistas.
Segundo O'Leary, mesmo que as três ideologias não concordem em
todos os seus aspectos, possuem em comum o projecto do aborto.
Por um lado, os ambientalistas e populacionistas consideram
essencial para o êxito das suas agendas o estrito controle da
fertilidade e, para isso, estão dispostos a usar a
"perspectiva do género". A seguinte citação da Division for
the Advance of Women (Divisão para o Avanço das Mulheres),
proposta numa reunião organizada em consulta com o Fundo de
População da ONU, revela a maneira de pensar sobre o "género"
daqueles que estão interessados primariamente na redução do
número de pessoas:
"Para serem efectivos a longo prazo, os
programas de planeamento familiar devem buscar não apenas
reduzir a fertilidade dentro dos papéis de género existentes,
como também mudar os papéis de género a fim de reduzir a
fertilidade"[26].
Assim, os "novos direitos" propostos pelas
"feministas do género" não se reduzem simplesmente aos
direitos da "saúde reprodutiva" que - como já mencionamos -
promove o aborto de um ser humano não-nascido, mas ainda
exigem o "direito" a determinar a própria identidade sexual.
Num panfleto que circulou durante a Conferência de Pequim, a
ONG Internacional Gay and Lesbian Human Rights Commission
(Comissão Internacional dos Direitos Humanos dos Homossexuais
e Lésbicas) exigiu este direito nos seguintes termos:
"Nós, abaixo assinado, fazemos um chamado
aos Estados Membros para que reconheçam o direito a determinar
a própria identidade sexual; o direito a controlar o próprio
corpo, particularmente ao estabelecer relações íntimas; e o
direito a decidir, conforme o caso, quando e com quem gerar e
criar filhos, como elementos fundamentais de todos os direitos
humanos de toda mulher, sem distinção de orientação sexual".
Isto é mais preocupante ainda quando se
leva em conta que para as "feministas do género" existem cinco
sexos. Rebecca J. Cook, professora de Direito na Universidade
de Toronto e redactora do documento oficial da ONU em Pequim,
assinala na mesma linha de seus companheiros de batalha, que
os géneros masculino e feminino seriam uma "construção da
realidade social" que deveria ser abolida.
Incrivelmente, o documento elaborado pela
feminista canadense afirma que "os sexos já não são dois,
mas cinco" e, portanto, não se deveria falar de homem e
mulher, mas de "mulheres heterossexuais, mulheres
homossexuais, homens heterossexuais, homens homossexuais e
bissexuais". A "liberdade" dos promotores do "género" para
afirmar a existência de cinco sexos contrasta com todas as
provas científicas existentes, segundo as quais somente
existem duas opções a partir do ponto de vista genético: ou se
é homem ou se é mulher; não há absolutamente nada,
cientificamente falando, que esteja no meio.
ATAQUE À RELIGIÃO
Ainda que as "feministas do género"
promovam a "desconstrução" da família, da educação e da
cultura como panaceia para todos os problemas, dão um ênfase
especial à "desconstrução" da religião que - segundo dizem - é
a causa principal da opressão da mulher.
Numerosas ONG's creditadas perante a ONU
têm-se empenhado em criticar aqueles a quem denominam
"fundamentalistas" (cristãos católicos, evangélicos e
ortodoxos; judeus, muçulmanos ou qualquer outra pessoa que
recuse ajustar as doutrinas de sua religião à agenda do
"feminismo do género"). Um vídeo que promovia o Fórum das
ONG's na Conferência de Pequim, produzido por Judith Lasch,
assinala:
"Nada mais constrangeu tanto a mulher do
que os credos e os ensinamentos religiosos".
Do mesmo modo, o relatório da Reunião de
Estratégias Globais para a Mulher contém numerosas referências
ao fundamentalismo e à necessidade de responder aos seus
supostos ataques aos direitos da mulher:
"Toda a forma de fundamentalismo, seja
político, religioso ou cultural, exclui a mulher das normas de
direitos humanos de aceitação internacional e a convertem em
alvo de extrema violência. A eliminação destas práticas é
preocupação da comunidade internacional".
De outro lado, o relatório da reunião
preparatória para a Conferência de Pequim, organizada pelo
Conselho Europeu em Fevereiro de 1995, inclui numerosos
ataques à religião:
- "O surgimento de toda forma de
fundamentalismo religioso é considerado como uma ameaça
especial ao gozo, por parte da mulher, de seus direitos
humanos e à sua plena participação na tomada de decisões em
todo nível na sociedade"[27]. 14
- "...as próprias mulheres devem ser
capacitadas e dar-lhes a oportunidade de determinar o que suas
culturas, religiões e costumes significam para elas"[28].
Vale a pena assinalar que para o "feminismo
do género", a religião é uma invenção humana e as religiões
principais foram inventadas por homens para oprimir as
mulheres. Por isso, as feministas radicais postulam a
re-imagem de Deus como "Sophia": a Sabedoria Feminina. Nesse
sentido, as "teólogas do feminismo do género" propõem
descobrir e adorar não a Deus, mas a Deusa. Por exemplo, Carol
Christ, autodenominada "teóloga feminista do género", afirma o
seguinte:
"Uma mulher que faça eco da afirmação
dramática de Ntosake Shange: 'Encontrei Deus em mim mesma e a
amei ferozmente', está dizendo: 'O poder feminino é forte e
criativo'. Está dizendo que o princípio divino, o poder
salvador e sustentador está nela mesma e que já não verá o
homem ou a figura masculina como salvador"[29].
Igualmente estranhas são as palavras de
Elisabeth Schussler Fiorenza, outra "teóloga feminista do
género", que nega radicalmente a possibilidade da Revelação,
como se lê na seguinte citação:
"Os textos bíblicos não são revelação de
inspiração verbal, nem princípios doutrinais, mas sim
formulações históricas... Analogamente, a teoria feminista
insiste que todos os textos são produto de uma cultura e
história patriarcal androcêntrica"[30].
Ainda Joanne Carlson Brown e Carole R. Bohn,
também autodenominadas teólogas da "escola feminista do
género", atacam directamente o Cristianismo como propulsor de
um abuso de nível infantil:
"O Cristianismo é uma teologia abusiva que
glorifica o sofrimento. É de se assombrar que haja muito abuso
na sociedade moderna quando a imagem teológica dominante da
cultura é o 'abuso divino do filho' (Deus Pai que exige e
realiza o sofrimento e a morte de seu próprio Filho)? Se o
Cristianismo for o libertador do oprimido, deve primeiro
libertar-se desta teologia"[31].
Por tudo isto, os donos da "nova
perspectiva" promovem o ataque frontal ao Cristianismo e a
toda figura que o representa. Em 1994, Rhonde Copelon e Berta
Esperanza Hernández elaboraram um folheto para uma série de
sessões de trabalho da Conferência Internacional de População
e Desenvolvimento, realizada no Cairo [Egito]. O folheto
atacava diretamente o Vaticano por opor-se à sua agenda que,
entre outras coisas, inclui os "direitos à saúde reprodutiva"
e, consequentemente, o aborto.
"...esta exigência de direitos humanos
elementares confronta com a oposição de todo tipo de
fundamentalistas religiosos, com o Vaticano como líder na
organização da oposição religiosa à saúde e aos direitos
reprodutivos, inclusive até contra os serviços de planeamento
familiar"[32].
Contrastantes com todas estas posturas de
ataque e agressão à religião e à Igreja (concretamente o
Vaticano) são as posturas da maioria das mulheres do mundo
que, segundo o relatório de O'Leary, defendem as suas
tradições religiosas como a melhor das protecções dos direitos
e da dignidade da mulher. Mulheres católicas, evangélicas,
ortodoxas e judias agradecem em particular os ensinamentos de
seus [respectivos] credos sobre o matrimónio, a família, a
sexualidade e o respeito à vida humana.
A Santa Sé, de sua parte, apontou nos meses
anteriores à [Conferência de] Pequim, o perigo da tendência,
no texto apresentado pela ONU, de deixar de lado o direito das
mulheres à liberdade de consciência e de religião nas
instituições educacionais.
CONCLUSÃO
Nas palavras de Dale O'Leary, o
"feminismo do género" é um sistema fechado contra o qual não
há nenhuma forma de se argumentar. Não se pode apelar para a
natureza, nem para a razão, para a experiência ou para as
opiniões e desejos de mulheres verdadeiras porque - segundo as
"feministas do género" - tudo isto é "socialmente construído".
Não importa quanta evidência seja acumulada contra suas
ideias; [isto seria] outra prova da conspiração patriarcal em
massa contra a mulher.
Contudo, existem muitas pessoas que talvez
por falta de informação ainda não compreenderam a nova
proposta e os perigosos alcances da mesma. Vale a pena, pois,
conhecer esta "perspectiva do género" que - segundo
informações fidedignas - actualmente não apenas está ganhando
força nos países desenvolvidos como também, ao que parece,
começa a infiltrar-se no nosso meio. Basta rever alguns
materiais educativos difundidos não só nos colégios do país
como ainda em prestigiosas universidades.
Pois bem. Nos Estados Unidos, o "feminismo
do género" conseguiu inserir-se no centro da corrente cultural
norte-americana. Reconhecidas universidades e colégios dos
Estados Unidos difundem abertamente esta perspectiva. Ademais,
numerosas séries televisivas norte-americanas fazem a sua
parte difundindo a seguinte mensagem: a identidade sexual pode
ser "desconstruída" e a masculinidade e a feminilidade não são
nada mais que "papéis de géneros construídos socialmente".
Se considerarmos que o avanço das
tecnologias tem conseguido que tais programas, com toda uma
nova "perspectiva de género", alcancem diariamente os países
em desenvolvimento, principalmente através da TV por cabo, sem
excluir muitos outros meios que existem no nosso tempo, isto
nos coloca diante de um novo desafio que deve ser enfrentado o
quanto antes para evitar as graves consequências que já está
trazendo ao Primeiro Mundo. Principalmente porque - segundo
palavras de O'Leary - a "desconstrução" da família e o ataque
à religião, à tradição e aos valores culturais que as
"feministas do género" promovem nos países em desenvolvimento
afecta o mundo inteiro.
Este texto foi elaborado com base no
relatório "A Desconstrução da Mulher", de Dale O'Leary.
[1] Judith Butler, "Gender Trouble:
Feminism and the Subversion of Identity", Routledge, Nova
Iorque, 1990, p. 6.
[2] Veja-se o trabalho de Cristina Delgado,
Reporte sobre la Conferencia Regional de Mar de Plata,
Argentina, em que recolhe diversas citações das "feministas do
género".
[3] Idem.
[4] Adrienne Rich, "Compulsory
Heterosexuality and Lesbian Existence: Blood, Bread and Poetry",
p. 27.
[5] Idem, p. 70.
[6] Lucy Gilber e Paula Wesbster, "The
Dangers of Feminity: Gender Differences: Sociology of Biology?",
p. 41.
[7] Gender Outlaw, p. 115.
[8] Entrevista com Christina Hoff Sommers
em "Faith and Freedom", 1994, p. 2.
[9] Frederick Engels, "The Origin of the
Family, Property and the State", International Publishers,
Nova Iorque, 1972, pp. 65-66.
[10] Shulamith Firestone, "The Dialectic of
Sex", Bantam Books, Nova Iorque, 1970, p. 12.
[11] Idem, p. 10.
[12] Ann Ferguson & Nancy Folbre, "The
Unhappy Marriage of Patriarch and Capitalism: Women and
Revolution", p. 80.
[13] Idem.
[14] Heidi Harmann, "The Unhappy Marriage
of Marxism and Feminism: Women and Revolution", South End
Press, Boston, 1981, p. 5.
[15] Idem, p. 16.
[16] Gender Outlaw, p. 115.
[17] Susan Moller Okin, "Change the Family,
Change the World", Utne Reader, Marzo/Abril, 1990, p. 75.
[18] Conselho da Europa, "Equality and
Democracy: Utopia or Challenge?", Palais del'Europe,
Strausbourg, Fevereiro 9-11, 1995, p. 38.
[19] Alison Jagger, "Political Philosophies
of Women's Liberation: Feminism and Philosophy", Littlefield,
Adams & Co., Totowa, Nova Jérsei, 1977, p. 13.
[20] Idem, p. 14.
[21] Christine Riddiough, "Socialism,
Feminism and Gay/Lesbian Liberation: Women and Revolution", p.
80.
[22]. Christina Hoff Sommers, "Who Stole
Feminism?", Simon & Shuster, Nova Iorque, 1994, p. 257.
[23] Nancy Chodorow, "The Reproduction of
Mothering", U. of CA Press, Berkeley, 1978, p. 215
[24] Conselho da Europa, "Equality and
Democracy: Utopia of Challenge?", Palais del'Europe,
Strausbourg, Fevereiro 9-11, 1995.
[25] Idem, p. 25.
[26] "Gender Perspective in Family Planning
Programs", Divisão para o Avanço da Mulher.
[27] Conselho da Europa, "Equality and
Democracy: Utopia of Challenge?", Palais del'Europe,
Strausbourg, Fevereiro 9-11, 1995, p. 13.
[28] Idem, p. 16.
[29] Carol Christ, "Womanspirit Rising", p.
277.
[30] Elisabeth Schussler Fiorenza, "In
Memory of Her", Crossroad, Nova Iorque, 1987, p. 15.
[31] Joanne Carlson Brown e Carole R. Bohn,
"Christianity, Patriarchy, and Abuse: A Feminist Critique", p.
26.
[32] Rondhe Copelon e Berta Esperanza
Hernández, "Sexual and Reproductive Rights and Health as Human
Rights: Concepts and Strategies; An Introduction for
Activitists", Human Rights Series, Cairo, 1994, p. 3.