II PARTE
A FAMÍLIA NO PLANO DE DEUS
35.
O discernimento da vocação da família, na
multiplicidade das situações que pudemos encontrar na primeira
parte, tem necessidade de uma orientação segura para o caminho e
para o acompanhamento. Esta bússola é a Palavra de Deus na
história, que culmina em Jesus Cristo «Caminho, Verdade e Vida»
para cada homem e mulher que constituem uma família. Por
conseguinte, pomo-nos à escuta daquilo que a Igreja ensina sobre a
família, à luz da Sagrada Escritura e da Tradição. Estamos
convictos de que esta Palavra corresponde às mais profundas
expectativas humanas de amor, verdade e misericórdia, despertando
potencialidades de dom e de acolhimento inclusive nos corações
feridos e humilhados. Nesta luz, nós acreditamos que o Evangelho
da família começa com a criação do homem à imagem de Deus, que é
amor e chama o homem e a mulher ao amor, segundo a sua semelhança
(cf. Gn 1, 26-27). A vocação do casal e da família à
comunhão de amor e de vida perdura em todas as etapas do desígnio
de Deus, não obstante os limites e os pecados dos homens. Esta
vocação está fundamentada desde o princípio em Cristo redentor
(cf. Ef 1, 3-7). Ele restaura e aperfeiçoa a aliança
matrimonial das origens (cf. Mc 10, 6) e cura o coração
humano (cf. Jo 4, 10), conferindo-lhe a capacidade de amar
como Ele ama a Igreja, oferecendo-se por ela (cf. Ef 5,
32).
36.
Esta vocação recebe a sua forma eclesial e
missionária do vínculo sacramental, que consagra o relacionamento
conjugal indissolúvel entre os esposos. O intercâmbio do consenso,
que a institui, significa para os esposos o compromisso de doação
e acolhimento recíprocos, totais e definitivos, «numa só carne» (Gn
2, 24). A graça do Espírito Santo faz da união dos esposos um
sinal vivo do vínculo de Cristo com a Igreja. Assim a sua união
torna-se, durante a vida inteira, uma nascente de graças
múltiplas: de fecundidade e de testemunho, de cura e de perdão. O
matrimónio realiza-se na comunidade de vida e de amor, e a família
faz-se evangelizadora. Tornando-se seus discípulos, os esposos são
acompanhados por Jesus no caminho de Emaús, reconhecem-no ao
partir o pão e voltam para Jerusalém à luz da sua ressurreição
(cf. Lc 24, 13-43). A Igreja anuncia à família o seu
vínculo com Jesus, em virtude da encarnação pela qual Ele faz
parte da Sagrada Família de Nazaré. A fé reconhece no vínculo
indissolúvel dos esposos um reflexo do amor da Trindade divina,
que se revela na unidade de verdade e misericórdia proclamada por
Jesus. O Sínodo torna-se intérprete do testemunho da Igreja, que
dirige ao povo de Deus uma palavra sobre a verdade da família
segundo o Evangelho. Nenhuma distância impede que a família seja
alcançada por esta misericórdia e sustentada por esta verdade.
Capítulo I
A
família na história da salvação
A pedagogia divina
37.
Dado que a ordem da criação é determinada pela
orientação para Cristo, é necessário distinguir sem separar os
vários graus através dos quais Deus comunica a graça da aliança à
humanidade. Em virtude da pedagogia divina, segundo a qual o
desígnio da criação se cumpre no desígnio da redenção ao longo de
etapas sucessivas, é preciso compreender a novidade do sacramento
nupcial, em continuidade com o matrimónio natural das origens,
fundamentado na ordem da criação. É nesta perspetiva que deve ser
entendido o modo do agir salvífico de Deus, também na vida cristã.
Uma vez que tudo foi feito por meio de Cristo, em vista dele (cf.
Cl 1, 16), os cristãos «façam assomar à luz, com alegria e
respeito, as sementes do Verbo neles adormecidas; mas atendam, ao
mesmo tempo, à transformação profunda que se realiza entre os
povos» (AG, 11). A incorporação do crente na Igreja
mediante o batismo cumpre-se plenamente com os outros sacramentos
da iniciação cristã. Na igreja doméstica, que é a sua família, ele
empreende o «processo dinâmico, que avança gradualmente com a
progressiva integração dos dons de Deus» (FC, 9), através
da conversão contínua ao amor que salva do pecado e confere
plenitude de vida. Nos desafios contemporâneos da sociedade e da
cultura, a fé dirige o olhar para Jesus Cristo na contemplação e
na adoração da sua face. Ele olhou com amor e ternura para as
mulheres e para os homens que encontrou, acompanhando os seus
passos com verdade, paciência e misericórdia, anunciando as
exigências do Reino de Deus. «Todas as vezes que voltamos à fonte
da experiência cristã, abrem-se estradas novas e possibilidades
inimagináveis» (Francisco,
Discurso por ocasião da Vigília de oração em
preparação para o Sínodo sobre a família,
4 de outubro de 2014).
O ícone da Trindade na família
38.
A Escritura e a Tradição abrem-nos o acesso a um
conhecimento da Trindade que se revela com traços familiares. A
família é imagem de Deus, que «no seu mistério mais íntimo não é
solidão, mas uma família, dado que tem em Si mesmo paternidade,
filiação e a essência da família, que é o amor» (João Paulo II,
Homilia durante a Santa Missa no Seminário Maior
Palafoxiano em Puebla de Los Angeles,
28 de janeiro de 1979). Deus é comunhão
de pessoas. No batismo, a voz do Pai designa Jesus como seu amado
Filho, e é neste amor que se nos permite reconhecer o Espírito
Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que reconciliou tudo em Si,
redimindo o homem do pecado, não só restituiu o matrimónio e a
família à sua forma original, mas também elevou o matrimónio como
sinal sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12;
Mc10, 1-12; Ef5, 21-32). Na família humana, reunida
por Cristo, é restituída a «imagem e semelhança» da Santíssima
Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério do qual brota todo o amor
verdadeiro. De Cristo, através da Igreja, o matrimónio e a família
recebem a graça do Espírito Santo, para testemunhar o Evangelho do
amor de Deus até ao cumprimento da Aliança no último dia, na festa
de bodas do Cordeiro (cf. Ap 19, 9; João Paulo II,
Catequese sobre o amor humano). A aliança de amor e
fidelidade, da qual vive a Sagrada Família de Nazaré, ilumina o
princípio que dá forma a cada família, tornando-a capaz de
enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre este
fundamento, cada família, não obstante a sua debilidade, pode
tornar-se uma luz na escuridão do mundo. «Aqui compreendemos o
modo de viver em família. Nazaré nos recorde no que consiste a
família, a comunhão de amor, a sua beleza austera e simples, a sua
índole sagrada e inviolável; nos faça ver como é doce e
insubstituível a educação em família, nos ensine a sua função
natural na ordem social» (Paulo VI, Discurso proferido em
Nazaré, 5 de janeiro de 1964).
A família na Sagrada Escritura
39.
Com o seu amor fecundo e generativo, o homem e a
mulher dão continuidade à obra criadora e colaboram com o Criador
para a história da salvação através da sucessão das genealogias
(cf. Gn 1, 28; 2, 4; 9, 1.7; 10; 17, 2.16; 25, 11; 28, 3;
35, 9.11; 47, 27; 48, 3-4). Na sua forma exemplar, a realidade
matrimonial é esboçada no livro do Génesis, para o qual até Jesus
remete na sua visão do amor nupcial. O homem sente-se incompleto
porque está desprovido de uma ajuda que lhe «corresponda», que lhe
«seja adequada» (cf. Gn 2, 18.20), num diálogo equitativo.
Por conseguinte, a mulher é partícipe da mesma realidade do homem,
representada simbolicamente pela costela, ou seja, pela mesma
carne, como se proclama na exclamação de amor do homem: «Eis que
agora ela é verdadeiramente carne da minha carne e osso dos meus
ossos» (Gn 2, 23). Assim, os dois tornam-se «uma só carne»
(cf. Gn 2, 24). Esta realidade fundante da experiência
matrimonial é exaltada na fórmula da pertença recíproca, presente
na profissão de amor pronunciada pela mulher no Cântico dos
Cânticos. A fórmula reproduz aquela da aliança entre Deus e o seu
povo (cf. Lv 26, 12): «O meu bem-amado é para mim, e eu
para ele... eu sou do meu bem-amado, e o meu bem-amado é meu» (Ct
2, 16; 6, 3). Além disso, no Cântico é significativo o
entrelaçamento constante entre a sexualidade, o eros e o amor,
assim como o encontro da corporeidade com a ternura, o sentimento,
a paixão, a espiritualidade e a doação total. Na consciência de
que pode existir a noite da ausência e do diálogo interrompido
entre ele e ela (cf. Ct 3 e 5), no entanto permanece a
certeza do poder do amor contra todos os obstáculos: «O amor é
forte como a morte» (Ct 8, 6). Para celebrar a aliança de
amor entre Deus e o seu povo, a profecia bíblica recorrerá não
somente ao simbolismo nupcial (cf. Is 54; Jr 2, 2;
Ez 16), mas também a toda a experiência familiar, como
testemunha de modo particularmente intenso o profeta Oseias. A sua
dramática experiência matrimonial e familiar (cf. Os 1-3)
torna-se sinal da relação entre o Senhor e Israel. As
infidelidades do povo não anulam o amor invencível de Deus, que o
profeta descreve como um pai que guia o próprio filho «com laços
de amor» (cf. Os 11, 1-4).
40.
Nas palavras de vida eterna que Jesus deixou aos
seus discípulos, com o seu ensinamento sobre o matrimónio e a
família, nós podemos reconhecer três etapas fundamentais no
desígnio de Deus. No princípio havia a família das origens, quando
Deus criador instituiu o matrimónio primordial entre Adão e Eva,
como sólido fundamento da família. Deus não apenas criou o ser
humano, varão e mulher (cf. Gn1, 27), mas também os
abençoou a fim de que fossem fecundos e se multiplicassem (cf.
Gn1, 28). Por isso, «o homem deixará o seu pai e a sua mãe, e
os dois já não serão mais que uma só carne» (Gn2, 24). Além
disso, esta união ferida pelo pecado, na forma histórica do
matrimónio no contexto da tradição de Israel, conheceu diversas
oscilações: entre a monogamia e a poligamia, entre a estabilidade
e o divórcio, entre a reciprocidade e a subordinação da mulher ao
homem. A concessão de Moisés a respeito da possibilidade da
rejeição (cf. Dt24, 1 ss.), que persistia na época de
Jesus, compreende-se neste contexto. Finalmente, a reconciliação
do mundo caído, com o advento do Salvador, não só volta a integrar
o desígnio divino originário, mas conduz a história do Povo de
Deus rumo a um novo cumprimento. A indissolubilidade do matrimónio
(cf. Mc10, 2-9), não deve ser entendida antes de tudo como
um jugo imposto aos homens, mas sim como um dom oferecido às
pessoas unidas em matrimónio.
Jesus e a família
41.
O exemplo de Jesus é paradigmático para a Igreja. O
Filho de Deus veio ao mundo numa família. Nos seus trinta anos de
vida escondida em Nazaré – periferia social, religiosa e cultural
do Império (cf. Jo 1, 46) – Jesus viu em Maria e José a
fidelidade vivida no amor. Ele inaugurou a sua vida pública com o
sinal de Caná, realizado num banquete de núpcias (cf. Jo 2,
1-11). Anunciou o evangelho do matrimónio como plenitude da
revelação que recupera o projeto originário de Deus (cf. Mt19,
4-6). Compartilhou momentos quotidianos de amizade com a família
de Lázaro e as suas irmãs (cf. Lc 10, 38), e com a família
de Pedro (cf. Mt 8, 14). Ouviu o pranto dos pais pelos seus
filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc 5, 41; Lc 7,
14-15) e manifestando deste modo o verdadeiro significado da
misericórdia, que implica o restabelecimento da Aliança (cf. João
Paulo II,
Dives in Misericordia,
4). Isto manifesta-se claramente nos encontros com a mulher
samaritana (cf. Jo 4, 1-30) e com a adúltera (cf. Jo
8, 1-11), nos quais a noção do pecado desperta diante do amor
gratuito de Jesus. A conversão «é uma tarefa ininterrupta para
toda a Igreja, que “contém pecadores no seu seio” e que é, “ao
mesmo tempo, santa e necessitada de purificação, prosseguindo
constantemente no seu esforço de penitência e de renovação”. Este
esforço de conversão não é somente uma obra humana. É o movimento
do “coração contrito”, atraído e movido pela graça, para responder
ao amor misericordioso de Deus, que nos amou primeiro» (CIC,
cân. 1428). Deus oferece gratuitamente o seu perdão a quantos se
abrem à ação da sua graça. Isto acontece mediante o
arrependimento, unido ao propósito de orientar a vida em
conformidade com a vontade de Deus, efeito da sua misericórdia
através da qual Ele nos reconcilia consigo mesmo. Deus instila no
nosso coração a capacidade de poder seguir o caminho da imitação
de Cristo. A palavra e a atitude de Jesus demonstram claramente
que o Reino de Deus é o horizonte em cujo âmbito se definem todas
as relações (cf. Mt 6, 33). Não obstante sejam
fundamentais, os laços familiares «não são absolutos» (CIC,
cân. 2232). De modo impressionante para quantos o ouviam, Jesus
relativizou as relações familiares à luz do Reino de Deus (cf.
Mc 3, 33-35; Lc 14, 26; Mt 10, 34-37; 19, 29;
23, 9). Esta revolução dos afetos que Jesus introduz na família
humana constitui um apelo radical à fraternidade universal.
Ninguém permanece excluído da nova comunidade congregada em nome
de Jesus, porque todos são chamados a fazer parte da família de
Deus. Jesus demonstra como a condescendência divina acompanha o
caminho humano com a sua graça e transforma o coração endurecido
com a sua misericórdia (cf. Ez 36, 26), orientando-o para o
seu cumprimento através do mistério pascal.
Capítulo II
A
Família no Magistério da Igreja
O
ensinamento do Concílio Vaticano II
42.
Tendo como base aquilo que recebeu de Cristo, ao
longo dos séculos a Igreja desenvolveu um rico ensinamento sobre o
matrimónio e a família. Uma das expressões mais elevadas deste
Magistério foi proposta pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, na
Constituição pastoral
Gaudium et Spes, que
dedica um capítulo inteiro à dignidade do matrimónio e da família
(cf. GS, 47-52). Eis como ele define o matrimónio e a
família: «A íntima comunidade da vida e do amor conjugal, fundada
pelo Criador e dotada de leis próprias, é instituída por meio da
aliança matrimonial, ou seja, pelo irrevogável consentimento
pessoal. Deste modo, por meio do ato humano com o qual os cônjuges
mutuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição
também face à sociedade, confirmada pela lei divina» (GS,
48). O «verdadeiro amor entre marido e mulher» (GS, 49)
implica a doação mútua de si, inclui e integra a dimensão sexual e
a afetividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. GS,
48-49). Isto esclarece que o matrimónio, e o amor conjugal que o
anima, «se ordenam pela sua própria natureza à geração e à
educação da prole» (GS, 50). Além disso, ressalta-se a
radicação dos esposos em Cristo: Cristo Senhor «vem ao encontro
dos esposos cristãos mediante o sacramento do matrimónio» (GS,
48) e com eles permanece (sacramentum permanens). Ele
assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e, com o seu
Espírito, confere aos esposos a capacidade de o viver, impregnando
a sua vida inteira de fé, esperança e caridade. Deste modo, os
esposos são como que consagrados e, mediante uma graça própria,
edificam o Corpo de Cristo, constituindo uma igreja doméstica (cf.
LG, 11), de tal forma que a Igreja, para compreender
plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o
manifesta de modo genuíno.
Paulo VI
43.
O Beato Paulo VI aprofundou a doutrina sobre o
matrimónio e a família no sulco do Concílio Vaticano II. De modo
particular, com a Encíclica
Humanae Vitae,
evidenciou o vínculo intrínseco entre amor conjugal e geração da
vida: «O amor conjugal requer nos esposos uma consciência da sua
missão de “paternidade responsável”, sobre a qual hoje tanto se
insiste, e justificadamente, e que deve também ser compreendida
com exatidão. [...] O exercício responsável da paternidade
implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os
próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a
família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores»
(HV, 10). Na Exortação Apostólica
Evangelii Nuntiandi,
Paulo VI pôs em evidência a relação entre a família e a Igreja:
«No conjunto daquilo que é o apostolado evangelizador dos leigos,
não se pode deixar de pôr em realce a ação evangelizadora da
família. Nos diversos momentos da história da Igreja, ela bem
mereceu a bela designação sancionada pelo Concílio Ecuménico
Vaticano II: “igreja doméstica”. Isso quer dizer que, em cada
família cristã, deveriam encontrar-se os diversos aspetos da
Igreja inteira. Por outras palavras, a família, como a Igreja, tem
por dever ser um espaço onde o Evangelho é transmitido e onde o
Evangelho se irradia» (EN, 71).
João
Paulo II
44.
São João Paulo II dedicou à família uma atenção
especial através das suas catequeses sobre o amor humano e sobre a
teologia do corpo. Nelas, ele ofereceu à Igreja uma riqueza de
reflexões sobre o significado esponsal do corpo humano e sobre o
projeto de Deus a propósito do matrimónio e da família, desde os
primórdios da criação. Em particular, abordando a caridade
conjugal, descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor
recíproco, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua
vocação para a santidade. Com a Carta às famílias,
Gratissimam Sane,
e acima de tudo com a Exortação Apostólica
Familiaris Consortio,
João Paulo II indicou a família como «caminho da Igreja» e
ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação ao amor, do homem e
da mulher, propondo as linhas fundamentais para a pastoral da
família e para a presença da família na sociedade. «No matrimónio
e na família constitui-se um complexo de relações interpessoais –
vida conjugal, paternidade-maternidade, filiação, fraternidade –
mediante as quais cada pessoa humana é introduzida na “família
humana” e na “família de Deus”, que é a Igreja» (FC, 15).
Bento
XVI
45.
Na Encíclica
Deus Caritas Est,
Bento XVI retomou o tema da verdade do amor entre o homem e a
mulher, que só se ilumina plenamente à luz do amor de Cristo
crucificado (cf. DCE, 2). Ele reitera que «o matrimónio
baseado num amor exclusivo e definitivo se torna o ícone do
relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de
Deus amar torna-se a medida do amor humano» (DCE, 11). Além
disso, na Encíclica
Caritas in Veritate,
ele evidencia a importância do amor familiar como princípio de
vida na sociedade, lugar onde se aprende a experiência do bem
comum. «Deste modo, torna-se uma necessidade social, e mesmo
económica, continuar a propor às novas gerações a beleza da
família e do matrimónio, a correspondência de tais instituições às
exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa.
Nesta perspetiva, os Estados são chamados a instaurar políticas
que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no
matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da
sociedade, preocupando-se também com os seus problemas económicos
e fiscais, no respeito da sua natureza relacional» (CiV,
44).
Francisco
46.
Na Encíclica
Lumen Fidei
o Papa Francisco enfrenta deste modo o vínculo
entre a família e a fé: «O primeiro âmbito da cidade dos homens
iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união
estável do homem e da mulher no matrimónio. [...] Prometer um amor
que dure para sempre é possível quando se descobre um desígnio
maior que os próprios projetos» (LF, 52). Na Exortação
Apostólica
Evangelii Gaudium, o
Papa evoca a centralidade da família no meio dos desafios
culturais dos dias de hoje: «A família atravessa uma crise
cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais.
No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de
especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade,
o espaço onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer aos
outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos. O
matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação
afetiva, que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se
de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição
indispensável do matrimónio para a sociedade supera o nível da
afetividade e das necessidades ocasionais do casal» (EG,
66). Além disso, o Papa Francisco dedicou aos temas relativos à
família um ciclo de catequeses, que analisam mais aprofundadamente
os seus protagonistas, as suas experiências e as fases da sua
vida.
Capítulo III
A família na doutrina cristã
Matrimónio na ordem da criação e plenitude
sacramental
47.
A ordem da redenção ilumina e completa a ordem da
criação. Por conseguinte, o matrimónio natural só se compreende à
luz do seu cumprimento sacramental: somente fixando o olhar em
Cristo conhecemos até ao fundo a verdade sobre os relacionamentos
humanos. «Na realidade, o mistério do homem só se esclarece
verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. [...] Cristo, novo
Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor,
revela plenamente o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação
sublime» (GS, 22). É particularmente oportuno compreender
em chave cristocêntrica as propriedades naturais do matrimónio,
que constituem o bem dos cônjuges (bonum coniugum), o qual
inclui unidade, abertura à vida, fidelidade e indissolubilidade. À
luz do Novo Testamento, segundo o qual tudo é criado por meio de
Cristo e em vista dele (cf. Cl 1, 16; Jo 1, 1 ss.),
o Concílio Vaticano II quis manifestar apreço pelo matrimónio
natural e pelos elementos positivos presentes nas demais religiões
(cf. LG, 16; NA, 2) e nas diferentes culturas, não
obstante os limites e as insuficiências (cf. RM, 55). O
discernimento da presença dos «semina Verbi» nas outras culturas
(cf. AG, 11) pode ser aplicado inclusive à realidade
matrimonial e familiar. Além do verdadeiro matrimónio natural,
existem elementos positivos presentes nas formas matrimoniais de
outras tradições religiosas. Nós consideramos que estas formas –
contudo fundamentadas no relacionamento estável e autêntico entre
um homem e uma mulher – estão ordenadas ao sacramento. Com o olhar
voltado para a sabedoria humana dos povos, a Igreja reconhece
também esta família como célula básica necessária e fecunda da
convivência humana.
Indissolubilidade e fecundidade da união esponsal
48.
A fidelidade irrevogável de Deus à aliança é o
fundamento da indissolubilidade do matrimónio. O amor completo e
profundo entre os cônjuges não está assente unicamente nas
capacidades humanas: Deus sustém aquela aliança com a força do seu
Espírito. A opção que Deus fez em relação a nós reflete-se de
certo modo na escolha do cônjuge: assim como Deus mantém a sua
promessa mesmo quando nós falhamos, também o amor e a fidelidade
conjugal são válidos «na boa e na má sorte». O matrimónio é dom e
promessa de Deus, que ouve a oração daqueles que pedem a sua
ajuda. A dureza de coração do homem, os seus limites e a sua
fragilidade diante da tentação constituem um grande desafio para a
vida comum. O testemunho de casais que vivem fielmente o
matrimónio põe em evidência o valor desta união indissolúvel e
suscita o desejo de renovar continuamente o compromisso da
fidelidade. A indissolubilidade corresponde ao profundo desejo de
amor recíproco e duradouro que o Criador inscreveu no coração
humano, e é um dom que Ele mesmo concede a cada casal: «Não separe
o homem o que Deus uniu» (Mt 19, 6; cf. Mc 10, 9). O
homem e a mulher recebem este dom e cuidam dele a fim de que o seu
amor possa ser para sempre. Diante da sensibilidade do nosso tempo
e das dificuldades efetivas de assumir os compromissos para
sempre, a Igreja é chamada a propor as exigências e o projeto de
vida do Evangelho da família e do matrimónio cristão. «Falando
sobre a nova vida em Cristo, São Paulo afirma que os cristãos –
todos – são chamados a amar-se como Cristo os amou, ou seja, a
“submeter-se uns aos outros” (Ef 5, 21), que significa
pôr-se ao serviço uns dos outros. E aqui ele introduz a analogia
entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja. É claro que se trata
de uma analogia imperfeita, mas devemos entender o seu sentido
espiritual, que é deveras excelso e revolucionário, e ao mesmo
templo simples, ao alcance de cada homem e mulher que confia na
graça de Deus» (Francisco,
Audiência geral, 6 de
maio de 2015). Mais uma vez, trata-se de
um anúncio que confere esperança!
Os bens da família
49.
O matrimónio é o «consórcio íntimo de toda a vida,
ordenado pela sua índole natural ao bem dos cônjuges e à
procriação e educação da prole» (CDC, cân. 1055 § 1). No
acolhimento recíproco, os nubentes prometem-se um ao outro dom
total, fidelidade e abertura à vida. Na fé e com a graça de
Cristo, eles reconhecem os dons que Deus lhes oferece e
comprometem-se em seu nome perante a Igreja. Deus consagra o amor
dos esposos e confirma a sua indissolubilidade, oferecendo-lhes a
sua graça para viver a fidelidade, a integração recíproca e a
abertura à vida. Damos graças a Deus pelo matrimónio porque,
através da comunidade de vida e de amor, os cônjuges conhecem a
felicidade e experimentam que Deus os ama pessoalmente, com paixão
e ternura. O homem e a mulher, individualmente e como casal –
recordou o Papa Francisco – «são imagem de Deus». A sua diferença
«não é para a contraposição, nem para a subordinação, mas para a
comunhão e a geração, sempre à imagem e semelhança de Deus» (Audiência
geral, 15 de abril de 2015).
A finalidade unitiva do matrimónio é uma exortação constante ao
crescimento e ao aprofundamento deste amor. Na sua união de amor,
os esposos experimentam a beleza da paternidade e da maternidade;
compartilham os projetos e as dificuldades, os desejos e as
preocupações; aprendem a cura recíproca e o perdão mútuo. Neste
amor eles celebram os seus momentos felizes e ajudam-se nas
passagens difíceis da sua história de vida.
50.
No sentido pleno, a fecundidade dos esposos é
espiritual: eles são sinais sacramentais vivos, nascentes de vida
para a comunidade cristã e para o mundo. O ato da geração, que
manifesta a «conexão inseparável» entre valor unitivo e procriador
– posto em evidência pelo Beato Paulo VI (cf. HV, 12) –
deve ser entendido na ótica da responsabilidade dos pais no
compromisso em prol do cuidado e da educação cristã dos filhos.
Estes são o fruto mais precioso do amor conjugal. Dado que o filho
é uma pessoa, ele transcende aqueles que o geraram. «Com efeito,
ser filho e filha, segundo o desígnio de Deus, significa trazer em
si a memória e a esperança de um amor que se realizou precisamente
acendendo a vida de outro ser humano, original e novo. E para os
pais cada filho é singular, diferente, diverso» (Francisco,
Audiência geral, 11 de
fevereiro de 2015). A beleza do dom
recíproco e gratuito, a alegria pela vida que nasce e pelo cuidado
amoroso por parte de todos os membros, desde os pequeninos até aos
idosos, são alguns dos frutos que tornam única e insubstituível a
resposta à vocação da família. Os relacionamentos familiares
concorrem de modo decisivo para a construção solidária e fraternal
da sociedade humana, irredutível à convivência dos habitantes de
um território ou dos cidadãos de um Estado.
Verdade e beleza da família
51.
Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja
olha para as famílias que são fiéis aos ensinamentos do Evangelho,
agradecendo-lhes e encorajando-as pelo testemunho que oferecem.
Graças a elas, torna-se credível a beleza do matrimónio
indissolúvel e fiel para sempre. Na família amadurece a primeira
experiência eclesial da comunhão entre pessoas, na qual pela graça
se reflete o mistério da Santíssima Trindade. «É aqui que se
aprendem a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o
perdão generoso e sempre renovado e, sobretudo, o culto divino,
pela oração e pelo oferecimento da própria vida» (CIC,
1657). O Evangelho da família nutre inclusive aquelas sementes que
ainda esperam amadurecer, e deve cuidar das árvores que secaram e
não podem ser transcuradas (cf. Lc 13, 6-9). Enquanto
mestra segura e mãe atenciosa, e não obstante reconheça que entre
os batizados não existe outro vínculo nupcial além do sacramental,
e que cada ruptura do mesmo é contrário à vontade de Deus, a
Igreja está também consciente da fragilidade de muitos dos seus
filhos que encontram dificuldades no caminho da fé. «Portanto, sem
diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com
misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das
pessoas, que se vão construindo dia após dia. [...] Um pequeno
passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais
agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem
transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos
devem chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus,
que age misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus
defeitos e das suas quedas» (EG, 44). Esta verdade e esta
beleza devem ser preservadas. Diante de situações difíceis e de
famílias feridas, é necessário recordar sempre um princípio geral:
«Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a
discernir bem as situações» (FC, 84). O grau de
responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir
fatores que limitam a capacidade de decisão. Por isso, enquanto se
deve expressar claramente a doutrina, é preciso evitar juízos que
não têm em consideração a complexidade das diversas situações e é
necessário prestar atenção ao modo como as pessoas vivem e sofrem
por causa da sua condição.
Capítulo IV
Rumo à plenitude eclesial da família
O vínculo íntimo entre Igreja e família
52.
A bênção e a responsabilidade de uma nova família,
selada no sacramento eclesial, comporta a disponibilidade a
fazer-se defensor e promotor da aliança fundamental entre homem e
mulher, no contexto da comunidade cristã. Esta disponibilidade, no
âmbito do vínculo social, da geração dos filhos, da tutela dos
mais frágeis e da vida comum comporta uma responsabilidade que tem
o direito de ser sustentada, reconhecida e apreciada. Em virtude
do sacramento do matrimónio, cada família torna-se para todos os
efeitos um bem para a Igreja. Nesta perspetiva, para o hoje da
Igreja, será certamente um dom precioso ter em consideração também
a reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um bem para a
família, a família é um bem para a Igreja. A preservação do dom
sacramental do Senhor compromete não apenas a família individual
mas a própria comunidade cristã, do modo que lhe compete. Perante
a ocorrência da dificuldade, também grave, de preservar a união
matrimonial, o discernimento das respetivas obrigações e das
relativas omissões deverá ser aprofundado pelo casal, com a ajuda
dos Pastores e da comunidade.
A
graça da conversão e do cumprimento
53.
A Igreja permanece próxima dos cônjuges, cujo
vínculo se debilitou a tal ponto que se apresenta o risco de
separação. Caso se chegue a um doloroso fim da relação, a Igreja
sente o dever de acompanhar este momento de sofrimento, de modo
que pelo menos não se desencadeiem ruinosas oposições entre os
cônjuges. Deve-se prestar uma atenção particular sobretudo aos
filhos, que são os primeiros atingidos pela separação, a fim de
que venham a sofrer o menos possível por causa dela: «Quando o pai
e a mãe se ferem, a alma das crianças sofre muito» (Francisco,
Audiência geral, 24 de
junho de 2015). O olhar de Cristo, cuja
luz ilumina cada homem (cf. Jo 1, 9; GS, 22),
inspira o cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente
convivem, ou que só contraíram matrimónio civil, ou então que são
divorciados recasados. Na perspetiva da pedagogia divina, a Igreja
dirige-se com amor a quantos participam na vida dela de modo
imperfeito: invoca com eles a graça da conversão, encoraja-os a
realizar o bem, a cuidar com amor um do outro e pôr-se ao serviço
da comunidade na qual vivem e trabalham. É desejável que nas
Dioceses se promovam percursos de discernimento e participação
destas pessoas, como ajuda e encorajamento para a maturação de uma
escolha consciente e coerente. Os casais devem ser informados
sobre a possibilidade de recorrer ao processo de declaração de
nulidade do matrimónio.
54.
Quando a união alcança uma estabilidade notável
através de um vínculo público – e é conotada por profundo afeto,
por responsabilidade em relação à prole e por capacidade de
superar as provações – pode ser vista como uma ocasião para ser
acompanhada rumo ao sacramento do matrimónio, quando isto for
possível. No entanto, diferente é o caso em que a convivência não
se tiver estabelecido em ordem a um possível futuro matrimónio,
mas na ausência do propósito de estabelecer uma relação
institucional. A realidade dos matrimónios civis entre homem e
mulher, dos matrimónios tradicionais e, com as devidas
diferenciações, também das convivências, é um fenómeno emergente
em muitos países. Além disso, a situação de fiéis que
estabeleceram uma nova união exige uma especial atenção pastoral:
«Nestas décadas [...] aumentou muito a consciência de que é
necessário um acolhimento fraterno e atento, no amor e na verdade,
em relação aos batizados que estabeleceram uma nova convivência
depois da falência do matrimónio sacramental: com efeito, estas
pessoas não estão excomungadas» (Francisco, Audiência geral,
5 de agosto de 2015).
A
misericórdia no centro da revelação
55.
A Igreja parte das situações concretas das famílias
de hoje, todas elas necessitadas de misericórdia, a começar por
aquelas que mais sofrem. Com o coração misericordioso de Jesus, a
Igreja deve acompanhar os seus filhos mais frágeis, marcados pelo
amor ferido e confuso, restituindo confiança e esperança, como a
luz do farol de um porto ou de uma tocha levada ao meio do povo
para iluminar aqueles que perderam a rota ou que se encontram no
meio da tempestade. A misericórdia é «o centro da revelação de
Jesus Cristo» (MV, 25). Nela resplandece a soberania de
Deus, com a qual Ele é fiel sempre de novo ao seu ser, que é amor
(cf. 1 Jo 4, 8), e ao seu pacto. «É precisamente na sua
misericórdia que Deus manifesta a sua soberania» (S. Tomás de
Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 30, art. 4; cf.
Missal Romano, Coleta do 26º Domingo do Tempo Comum). Anunciar
a verdade com amor é em si mesmo um ato de misericórdia. Na Bula
Misericordiae Vultus,
o Papa Francisco afirma: «A misericórdia não é contrária à
justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador».
E prossegue: «Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a
num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base
de uma verdadeira justiça» (MV, 21). Jesus é o rosto da
misericórdia de Deus Pai: «Deus amou o mundo de tal modo [...]
para que o mundo seja salvo por Ele [pelo seu Filho]» (Jo
3, 16.17).
III PARTE
A MISSÃO DA FAMÍLIA
56.
Desde o princípio da história, Deus foi pródigo de
amor pelos seus filhos (cf. LG, 2), de tal forma que eles
puderam alcançar a plenitude da vida em Jesus Cristo (cf. Jo
10, 10). Através dos sacramentos da Iniciação Cristã, Deus convida
as famílias a introduzir-se nesta vida, a proclamá-la e a
comunicá-la aos outros (cf. LG, 41). Como o Papa Francisco
nos recorda com força, a missão da família amplia-se sempre para
fora, ao serviço dos nossos irmãos e irmãs. É a missão da Igreja,
na qual cada família é chamada a participar de modo único e
privilegiado. «Em virtude do Batismo recebido, cada membro do povo
de Deus tornou-se discípulo missionário» (EG, 120). No
mundo inteiro, na realidade das famílias, podemos ver tanta
felicidade e alegria, mas também muitos sofrimentos e angústias.
Queremos considerar esta realidade com os mesmos olhos com os
quais também Cristo a fitava, quando caminhava no meio dos homens
do seu tempo. A nossa atitude quer ser de compreensão humilde.
Temos o desejo de acompanhar cada uma e todas as famílias, a fim
de que descubram a melhor maneira para superar as dificuldades que
encontram no seu caminho. O Evangelho é sempre também um sinal de
contradição. A Igreja nunca se esquece de que o mistério pascal é
central na Boa Notícia que nós anunciamos. Ela deseja ajudar as
famílias a reconhecer e a aceitar a cruz, quando se apresenta
diante delas, para que possam carregá-la com Cristo no caminho
rumo à alegria da ressurreição. Este trabalho exige «uma conversão
pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão»
(EG, 25). Além disso, a conversão refere-se profundamente
ao estilo e à linguagem. É necessário adotar uma linguagem que
seja significativa. O anúncio deve levar a experimentar que o
Evangelho da família é resposta às expectativas mais profundas da
pessoa humana: à sua dignidade e à plena realização na
reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata somente
de apresentar um conjunto de regulamentos, mas de anunciar a graça
que confere a capacidade de viver os bens da família.A transmissão
da fé torna necessária, hoje mais do que nunca, uma linguagem
capaz de alcançar todos, especialmente os jovens, para comunicar a
beleza do amor familiar e fazer compreender o significado de
palavras como doação, amor conjugal, fidelidade, fecundidade e
procriação. A necessidade de uma linguagem nova e mais adequada
apresenta-se antes de tudo no momento de introduzir as crianças e
os adolescentes ao tema da sexualidade. Muitos pais e pessoas que
estão comprometidos na pastoral têm dificuldade de encontrar uma
linguagem apropriada e ao mesmo tempo respeitosa, que una a
natureza da sexualidade biológica e a complementaridade que se
enriquece reciprocamente com a amizade, com o amor e com a doação
do homem e da mulher.
Capítulo I
A formação da família
A preparação para o matrimónio
57.
O matrimónio cristão não pode reduzir-se a uma
tradição cultural, nem a uma simples convenção jurídica: é um
chamamento de Deus que requer discernimento atento, oração
constante e amadurecimento adequado. Por isso, são necessários
percursos formativos que acompanhem a pessoa e o casal, de modo
que à comunicação dos conteúdos da fé se una a experiência de vida
oferecida por toda a comunidade eclesial. A eficácia desta ajuda
exige também que seja aperfeiçoada a catequese pré-matrimonial –
às vezes pobre de conteúdos – que constitui uma parte integrante
da pastoral ordinária. Inclusive a pastoral dos nubentes deve
inserir-se no compromisso geral da comunidade cristã, de
transmitir de maneira adequada e convincente a mensagem evangélica
a propósito da dignidade da pessoa, da sua liberdade e do respeito
pelos seus direitos. É preciso ter bem presentes as três etapas
indicadas pela
Familiaris Consortio
(cf. 66): a preparação remota, que passa através da transmissão da
fé e dos valores cristãos no seio da própria família; a preparação
próxima, que coincide com os itinerários de catequeses e com as
experiências formativas vividas no âmbito da comunidade eclesial;
e a preparação imediata para o matrimónio, parte de um caminho
mais vasto, qualificado pela dimensão vocacional.
58.
Na mudança cultural em ato, muitas vezes são
apresentados modelos em contraste com a visão cristã da família. A
sexualidade está frequentemente desvinculada de um projeto de amor
autêntico. Em certos países chegam mesmo a ser impostos pela
autoridade pública projetos formativos que apresentam conteúdos
contrários à visão humana e cristã: em relação a eles, há que
afirmar com determinação a liberdade da Igreja de ensinar a sua
doutrina e o direito à objeção de consciência por parte dos
educadores. Além disso a família, não obstante permaneça um espaço
pedagógico primordial (cf.
Gravissimum Educationis,
3), não pode ser o único lugar de educação para a sexualidade. Por
isso, é necessário estruturar verdadeiros percursos pastorais de
apoio, destinados tanto aos indivíduos como aos casais, prestando
uma atenção particular à idade da puberdade e da adolescência, nos
quais ajudar a descobrir a beleza da sexualidade no amor. O
cristianismo proclama que Deus criou o homem como varão e mulher,
abençoando-os a fim de que formassem uma só carne e transmitissem
a vida (cf. Gn 1, 27-28; 2, 24). A sua diferença, na igual
dignidade pessoal, é o selo da boa criação de Deus. Em
conformidade com o princípio cristão, alma e corpo, assim como
sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender),
podem-se distinguir, mas não separar.
Por conseguinte, sobressai a
exigência de uma ampliação dos temas formativos nos itinerários
pré-matrimoniais, a fim de que eles se tornem percursos de
educação para a fé e para o amor, integrados no caminho da
iniciação cristã. Nesta luz, é necessário recordar a importância
das virtudes, entre as quais a castidade, condição preciosa para o
crescimento genuíno do amor interpessoal. O itinerário formativo
deveria assumir a fisionomia de um caminho orientado para o
discernimento vocacional e do casal, preocupando-se com uma melhor
sinergia entre os vários âmbitos pastorais. Os percursos de
preparação para o matrimónio sejam propostos também por cônjuges
capazes de acompanhar os nubentes antes do casamento e nos
primeiros anos de vida matrimonial, valorizando desta forma a
ministerialidade conjugal. A valorização pastoral dos
relacionamentos pessoais favorecerá a abertura gradual das mentes
e dos corações à plenitude do plano de Deus.
A celebração nupcial
59.
A liturgia nupcial é um acontecimento singular, que
se vive no contexto familiar e social de uma festa. O primeiro dos
sinais de Jesus teve lugar no banquete das bodas de Caná: o vinho
bom do milagre do Senhor, que alegra o nascimento de uma nova
família, é o vinho da Aliança de Cristo com os homens e as
mulheres de todos os tempos. A preparação das bodas ocupa a
atenção dos nubentes durante muito tempo. E representa um período
precioso para eles, para as suas famílias e para os seus amigos,
mas deve enriquecer-se com a sua dimensão propriamente espiritual
e eclesial. A celebração nupcial é uma ocasião propícia para
convidar muitos para a celebração dos sacramentos da Reconciliação
e da Eucaristia. Através de uma participação cordial e jubilosa, a
comunidade cristã acolherá no seu seio a nova família a fim de
que, como igreja doméstica, se sinta parte da maior família
eclesial. A liturgia nupcial deveria ser preparada mediante uma
catequese mistagógica que leve o casal a sentir que a celebração
da sua aliança se realiza «no Senhor». Frequentemente, o
celebrante tem a oportunidade de se dirigir a uma assembleia
composta por pessoas que participam pouco na vida eclesial, ou
pertencem a outras confissões cristãs ou comunidades religiosas.
Trata-se de uma inestimável ocasião de anúncio do Evangelho de
Cristo, que pode suscitar nas famílias presentes a redescoberta da
fé e do amor que provêm de Deus.
Os
primeiros anos da vida familiar
60.
Os primeiros anos de casamento são um período vital
e delicado, durante o qual os casais crescem na consciência da sua
vocação e missão. Por isso, exige-se um acompanhamento pastoral
que continue inclusive depois da celebração do sacramento. A
paróquia é o lugar onde casais experientes podem ser postos à
disposição dos mais jovens, com o eventual concurso de
associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. É
necessário encorajar os esposos a ter uma atitude fundamental de
acolhimento da grande dádiva dos filhos. É preciso ressaltar a
importância da espiritualidade familiar, da oração e da
participação na Eucaristia dominical, convidando os casais a
reunir-se regularmente para fomentar o crescimento da vida
espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. O
encontro pessoal com Cristo através da leitura da Palavra de Deus,
na comunidade e nas casas, de maneira especial na forma da «lectio
divina», constitui um manancial de inspiração para o agir de todos
os dias. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias celebradas
para as famílias, principalmente no aniversário do matrimónio,
alimentam a vida espiritual e o testemunho missionário da família.
Não raro, nos primeiros anos de vida conjugal verifica-se uma
certa introversão do casal, com o consequente isolamento do
contexto comunitário. A consolidação da rede relacional entre os
casais e a criação de laços significativos são necessárias para o
amadurecimento da vida cristã da família. Os movimentos e os
grupos eclesiais muitas vezes garantem tais momentos de
crescimento e de formação. Integrando estas contribuições, a
Igreja local tome a iniciativa de coordenar o cuidado pastoral das
famílias jovens. Na fase inicial da vida conjugal a frustração do
desejo de ter filhos suscita um desânimo particular. Não raro, é
nela que se anunciam motivos de crise que rapidamente acabam na
separação. Também por estes motivos é particularmente importante a
proximidade da comunidade aos esposos jovens, através do apoio
afetuoso e discreto de famílias fidedignas.
A formação dos presbíteros e de outros agentes
pastorais
61.
É necessária uma renovação da pastoral à luz do
Evangelho da família e do ensinamento do Magistério. Por isso, é
preciso pensar numa formação mais adequada dos presbíteros, dos
diáconos, dos religiosos, das religiosas, dos catequistas e dos
demais agentes no campo da pastoral, que devem promover a
integração das famílias na comunidade paroquial, sobretudo por
ocasião dos caminhos de formação para a vida cristã em ordem aos
sacramentos. De modo particular nos seus itinerários de formação
humana, espiritual, intelectual e pastoral, os seminários devem
preparar os futuros presbíteros para que se tornem apóstolos da
família. Na formação para o ministério ordenado, não se pode
descuidar o desenvolvimento afetivo e psicológico, também
participando de modo direto em percursos adequados. Itinerários e
cursos de formação destinados especificamente aos agentes
pastorais poderão torná-los aptos para inserir o mesmo caminho de
preparação para o matrimónio na mais ampla dinâmica da vida
eclesial. No tempo de formação, os candidatos ao presbiterado
vivam períodos convenientes com a própria família e sejam
orientados a fazer experiências de pastoral familiar para adquirir
um conhecimento adequado da situação atual das famílias. A
presença dos leigos e das famílias, em particular a presença
feminina, na formação sacerdotal, favorece o apreço pela variedade
e complementaridade das diversas vocações na Igreja. A dedicação
deste ministério precioso poderá receber vitalidade e consistência
de uma renovada aliança entre as duas principais formas de vocação
para o amor: a do matrimónio, que floresce na família cristã,
fundada sobre o amor de eleição, e a da vida consagrada, imagem da
comunhão do Reino, que começa na aceitação incondicionada do outro
como dom de Deus. Na comunhão das vocações realiza-se um fecundo
intercâmbio de dons, que anima e enriquece a comunidade eclesial
(cf. At 18, 2). A direção espiritual da família pode ser
considerada um dos ministérios paroquiais. Sugere-se que o
Departamento diocesano para a família e os outros Setores
pastorais possam intensificar a sua colaboração neste campo. Na
formação permanente do clero e dos agentes pastorais, é desejável
que se continue a cuidar com instrumentos apropriados do
amadurecimento das dimensões afetiva e psicológica, que lhes será
indispensável para o acompanhamento pastoral das famílias, também
em vista das particulares situações de emergência, determinadas
pelos casos de violência doméstica e de abuso sexual.
Capítulo II
Família, generatividade e educação
A transmissão da vida
62.
A presença de famílias numerosas na Igreja
constitui uma bênção para a comunidade cristã e para a sociedade,
porque a abertura à vida é exigência intrínseca do amor conjugal.
Nesta luz, a Igreja exprime profunda gratidão às famílias que
acolhem, educam, circundam de carinho e transmitem a fé aos seus
filhos, de forma particular os mais frágeis e marcados pela
deficiência. Estas crianças, nascidas com necessidades especiais,
atraem o amor de Cristo e pedem à Igreja que cuide delas como uma
bênção. Infelizmente, há uma mentalidade difundida que reduz a
geração da vida unicamente à gratificação individual ou do casal.
Os fatores de ordem económica, cultural e educativa exercem um
peso às vezes determinante, contribuindo para a forte diminuição
da natalidade que debilita o tecido social, compromete os
relacionamentos entre as gerações e torna mais incerto o olhar
sobre o futuro. Também neste âmbito, é necessário começar a partir
da escuta das pessoas e explicar a beleza e a verdade de uma
abertura incondicional à vida, como aquilo de que o amor humano
precisa para ser vivido plenamente. Sente-se aqui a necessidade de
divulgar cada vez mais os documentos do Magistério da Igreja que
promovem a cultura da vida. A pastoral familiar deveria incluir em
maior medida os especialistas católicos em matéria biomédica,
tanto nos percursos de preparação para o matrimónio como no
acompanhamento dos cônjuges.
A responsabilidade generativa
63.
Segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre
um homem e uma mulher e a transmissão da vida estão ordenados um
para o outro (cf. Gn 1, 27-28). Deste modo, o Criador
tornou o homem e a mulher partícipes da obra da sua criação e
transformou-os contemporaneamente em instrumentos do seu amor,
confiando à sua responsabilidade o futuro da humanidade através da
transmissão da vida humana. Os cônjuges abrir-se-ão à vida,
formando «retamente a própria consciência, tendo em conta o seu
próprio bem e o dos filhos já nascidos ou que preveem virão a
nascer, sabendo ver as condições do tempo e da própria situação e
tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar,
da sociedade temporal e da própria Igreja» (GS, 50; cf.
VS, 54-64). Em conformidade com o caráter pessoal e
humanamente completo do amor conjugal, o caminho reto para a
planificação familiar é o de um diálogo consensual entre os
esposos, do respeito pelos tempos e da consideração da dignidade
do parceiro. Neste sentido, a Encíclica
Humanae Vitae (cf.
10-14) e a Exortação Apostólica
Familiaris Consortio
(cf. 14; 28-35) devem ser redescobertas, com a finalidade de
despertar a disponibilidade a procriar, em contraste com uma
mentalidade muitas vezes hostil à vida. É preciso exortar
reiteradamente os casais jovens a doar a vida. Deste modo pode
crescer a abertura à vida na família, na Igreja e na sociedade.
Através das suas numerosas instituições destinadas às crianças, a
Igreja pode contribuir para criar uma sociedade, mas também uma
comunidade de fé, que sejam à medida da criança. A coragem de
transmitir a vida é notavelmente fortalecida quando se cria uma
atmosfera adequada às crianças, na qual se oferecem ajuda e
acompanhamento na obra de educação da prole (cooperação entre
paróquias, pais e famílias).
A escolha responsável da
genitorialidade pressupõe a formação da consciência, que é «o
centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a
sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (GS,
16). Quanto mais os esposos procuram ouvir na sua consciência Deus
e os seus mandamentos (cf. Rm 2, 15), deixando-se
acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será
intimamente livre de um arbítrio subjetivo e da adequação aos
modos de se comportar do seu ambiente. Por amor a esta dignidade
da consciência, a Igreja rejeita com todas as suas forças as
intervenções coercitivas do Estado a favor da contraceção, da
esterilização ou até do aborto. O recurso aos métodos fundados nos
«ritmos naturais de fecundidade» (HV, 11) deverá ser
encorajado. Esclarecer-se-á que «estes métodos respeitam o corpo
dos esposos, estimulam a ternura entre eles e favorecem a educação
de uma liberdade autêntica» (CIC, 2370). É necessário
salientar sempre que os filhos constituem um dom maravilhoso de
Deus, uma alegria para os pais e para a Igreja. É através deles
que o Senhor renova o mundo.
O
valor da vida em todas as suas fases
64.
A vida é dom de Deus e mistério que nos transcende.
Por isso, não devem ser de modo algum descartados os seus inícios
nem a sua fase terminal. Pelo contrário, é necessário assegurar a
estas fases uma atenção especial. Hoje, demasiado facilmente, «o
ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que
se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do
“descartável”, que aliás chega a ser promovida» (EG, 53). A
tal propósito, é tarefa da família, sustentada pela sociedade
inteira, acolher a vida nascente e cuidar da sua última fase. No
que diz respeito ao drama do aborto, a Igreja afirma antes de tudo
o caráter sagrado e inviolável da vida humana, comprometendo-se
concretamente a favor dela (cf. EV, 58). Graças às suas
instituições, ela oferece conselhos às mulheres grávidas, sustém
as mães solteiras, assiste as crianças abandonadas e está próxima
daquelas que sofreram o aborto. A quantos trabalham nas estruturas
de assistência à saúde, recorda-se a obrigação moral da objeção de
consciência. Do mesmo modo, a Igreja não somente sente a urgência
de afirmar o direito à morte natural, evitando o excesso
terapêutico e a eutanásia, mas também cuida dos idosos, protege as
pessoas portadoras de deficiência, assiste os doentes terminais,
consola os moribundos e rejeita com firmeza a pena de morte (cf.
CIC, 2258).
Adoção e acolhimento
65.
A adoção de crianças órfãs e abandonadas, acolhidas
juntamente com os filhos naturais no espírito da fé, adquire a
forma de um autêntico apostolado familiar (cf. AA, 11),
muitas vezes evocado e encorajado pelo Magistério (cf. FC,
41; EV, 93). A escolha da adoção e do acolhimento exprime
uma fecundidade particular da experiência conjugal, para além dos
casos em que é dolorosamente marcada pela esterilidade. Esta
escolha é um sinal eloquente do acolhimento generativo, testemunho
da fé e cumprimento do amor. Ela restitui a dignidade recíproca a
um vínculo interrompido: aos esposos que não têm filhos e aos
filhos que não têm pais. Por isso, devem ser incentivadas todas as
iniciativas destinadas a tornar mais viáveis os procedimentos de
adoção. O tráfico de crianças entre países e continentes deve ser
impedido com oportunas intervenções legislativas e controles por
parte dos Estados. A continuidade entre a relação generativa e
educativa tem como fundamento necessário a diferença sexual entre
homem e mulher, assim como a procriação. Diante daquelas situações
em que o filho é pretendido custe o que custar, como direito da
própria realização, a adoção e o acolhimento retamente entendidos
indicam um aspeto importante da genitorialidade e da filiação,
enquanto ajudam a reconhecer que os filhos, tanto naturais como
adotivos ou acolhidos, são diferentes de nós e é preciso
acolhê-los, amá-los, cuidá-los, e não apenas pô-los no mundo. O
interesse predominante pela criança deveria inspirar sempre as
decisões sobre a adoção e o acolhimento. Como recordou o Papa
Francisco, «as crianças têm o direito de crescer numa família, com
um pai e uma mãe» (Audiência
aos Participantes no Colóquio internacional sobre a
complementaridade entre homem e mulher, promovido pela Congregação
para a Doutrina da Fé, 17 de
novembro de 2014). No entanto, a Igreja deve proclamar que, na
medida do possível, as crianças têm o direito de crescer na sua
família natal com a maior ajuda disponível.
A educação dos filhos
66.
Um dos desafios fundamentais, entre aqueles que se
apresentam às famílias hoje em dia, é seguramente o da educação,
que se tornou mais exigente e complexo devido à realidade cultural
atual e à grande influência dos meios de comunicação. Devem ser
devidamente consideradas as exigências e as expectativas de
famílias capazes de ser lugares de crescimento na vida de todos os
dias, de concreta e essencial transmissão da fé, da
espiritualidade e das virtudes que conferem forma à existência. A
família de origem é muitas vezes o seio da vocação ao sacerdócio e
à vida consagrada: portanto, exortam-se os pais a pedir ao Senhor
o dom inestimável da vocação para alguns dos seus filhos. No campo
educativo deve ser tutelado o direito dos pais a escolherem
livremente o tipo de educação que querem oferecer aos filhos,
segundo as suas convicções, e sob condições acessíveis e de
qualidade. É necessário ajudá-los a viver a afetividade, inclusive
nos relacionamentos conjugais, como um caminho de amadurecimento,
no acolhimento cada vez mais profundo do outro e numa doação
sempre mais completa. Neste sentido, é preciso reiterar a
necessidade de propor caminhos formativos que alimentem a vida
conjugal e a importância de um laicado que ofereça um
acompanhamento feito de testemunho vivo. É de grande ajuda o
exemplo de um amor fiel e profundo, assente na ternura e no
respeito, capaz de crescer ao longo do tempo e que, no seu
abrir-se concreto à geração da vida, faz a experiência de um
mistério que nos transcende.
67.
Nas diferentes culturas, os adultos da família
conservam uma função educativa insubstituível. Contudo, em muitos
contextos continuamos a assistir a um progressivo debilitamento do
papel educativo dos pais, por causa de uma presença invasiva dos
meios de comunicação no seio da esfera familiar, mas também devido
à tendência a delegar ou a reservar esta tarefa a terceiros. Por
outro lado, os meios de comunicação (especialmente os social
media) unem os membros da família também à distância. O uso do
e-mail e de outros social media pode manter unidos no tempo os
membros da família. Além disso, os meios de comunicação podem
constituir uma ocasião para a evangelização dos jovens. Pede-se
que a Igreja encoraje e apoie as famílias na sua obra de
participação vigilante e responsável em relação aos programas
escolares e educacionais que dizem respeito aos seus filhos. Há
unanimidade quando se afirma que a primeira escola de educação é a
família, e que a comunidade cristã se apresenta como ajuda e
integração deste papel formativo insubstituível. Considera-se
necessário identificar espaços e momentos de encontro para
encorajar a formação dos pais e a partilha de experiências entre
famílias. É importante que os pais participem ativamente nos
caminhos de preparação para os sacramentos da iniciação cristã,
como primeiros educadores e testemunhas de fé para os seus filhos.
68.
As escolas católicas desempenham uma função vital
na assistência aos pais, no seu dever de educar os filhos. A
educação católica favorece o papel da família: assegura uma boa
preparação, educa para as virtudes e os valores, orienta nos
ensinamentos da Igreja. As escolas católicas deveriam ser
encorajadas na sua missão de ajudar os alunos a crescer como
adultos maduros que podem ver o mundo através do olhar de amor de
Jesus e que compreendem a vida como um chamamento ao serviço de
Deus. Por isso, as escolas católicas são relevantes para a missão
evangelizadora da Igreja. Em muitas regiões as escolas católicas
são as únicas que garantem oportunidades autênticas às crianças de
famílias pobres, de maneira especial às jovens, oferecendo-lhes
uma alternativa à pobreza e um caminho para dar uma verdadeira
contribuição para a vida da sociedade. As escolas católicas
deveriam ser animadas a levar em frente a sua obra nas comunidades
mais pobres, servindo os membros menos afortunados e mais
vulneráveis da nossa sociedade.
Capítulo III
Família e acompanhamento pastoral
Situações complexas
69.
O sacramento do matrimónio, como união fiel e
indissolúvel entre um homem e uma mulher, chamados a acolher-se
reciprocamente e a acolher a vida, é uma grande graça para a
família humana. A Igreja tem a alegria e o dever de anunciar esta
graça a todas as pessoas e em todos os contextos. Hoje ela sente,
de modo ainda mais urgente, a responsabilidade de levar os
batizados a descobrir de novo como a graça de Deus age na sua vida
– até nas situações mais difíceis – a fim de os conduzir à
plenitude do sacramento. Enquanto aprecia e encoraja as famílias
que honram a beleza do matrimónio cristão, o Sínodo tenciona
promover o discernimento pastoral das situações em que o
acolhimento deste dom tem dificuldade de ser estimado, ou então
está de algum modo comprometido. Manter vivo o diálogo pastoral
com estes fiéis, para permitir o amadurecimento de uma abertura ao
Evangelho do matrimónio e da família na sua plenitude, é uma grave
responsabilidade. Os pastores devem identificar os elementos que
podem favorecer a evangelização e o crescimento humano e
espiritual daqueles que o Senhor confia aos seus cuidados.
70.
A pastoral proponha com clareza a mensagem
evangélica e reconheça os elementos positivos presentes naquelas
situações que ainda não, ou já não, lhe correspondem. Em muitos
países, um número crescente de casais convivem sem matrimónio
algum, nem canónico, nem civil. Nalguns países existe o matrimónio
tradicional, arranjado entre famílias e frequentemente celebrado
em diversas etapas. Noutros países, ao contrário, aumenta o número
de quantos, depois de ter vivido juntos durante muito tempo, pedem
a celebração do seu matrimónio na igreja. A simples convivência é,
não raro, escolhida por causa da mentalidade geral contrária às
instituições e aos compromissos definitivos, mas também motivada
pela espera de uma segurança existencial (trabalho e salário
fixo). Finalmente, em determinados países as uniões de facto
tornam-se cada vez mais numerosas, não somente devido à
rejeição dos valores da família e do matrimónio, mas inclusive
porque o casamento é sentido como um luxo, devido às condições
sociais, de tal forma que a miséria material impele a viver uniões
de facto. Todas estas situações devem ser enfrentadas de
maneira construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de
caminho de conversão rumo à plenitude do matrimónio e da família à
luz do Evangelho.
71.
A escolha do matrimónio civil ou, em diversos
casos, da simples convivência, muitas vezes é motivada não por
preconceitos nem por resistências no que se refere à união
sacramental, mas por situações culturais ou contingentes. Em
muitas circunstâncias, a decisão de viver juntos é sinal de um
relacionamento que quer realmente orientar-se para uma perspetiva
de estabilidade. Esta vontade, que se traduz num vínculo
duradouro, confiável e aberto à vida pode considerar-se um
compromisso no qual inserir um caminho rumo ao sacramento nupcial,
descoberto como o desígnio de Deus para a própria vida. O caminho
de crescimento, que pode levar ao matrimónio sacramental, será
incentivado pelo reconhecimento dos traços próprios do amor
generoso e duradouro: o desejo de procurar o bem do outro, antes
do que o próprio; a experiência do perdão pedido e oferecido; a
aspiração a constituir uma família não fechada em si mesma, mas
aberta ao bem da comunidade eclesial e da sociedade inteira. Ao
longo deste percurso poderão ser valorizados os sinais de amor que
propriamente correspondem ao reflexo do amor de Deus num autêntico
projeto conjugal.
72.
As problemáticas relativas aos matrimónios mistos
exigem uma atenção específica. Os matrimónios entre católicos e
outros batizados «na sua fisionomia particular, apresentam
numerosos elementos que convêm valorizar e desenvolver, quer pelo
seu valor intrínseco, quer pela ajuda que podem dar ao movimento
ecuménico». Com esta finalidade, «procure-se [...] uma colaboração
cordial entre o ministro católico e o não católico, desde o
momento da preparação para o matrimónio e para as núpcias» (FC,
78). A respeito da partilha eucarística, recorda-se que «a decisão
de admitir ou não a parte não católica do matrimónio à comunhão
eucarística deve ser tomada em conformidade com as normas gerais
existentes em matéria, tanto para os cristãos orientais como para
os outros cristãos, e tendo em consideração esta situação
particular, ou seja, que recebem o sacramento do matrimónio
cristão dois cristãos batizados. Embora os esposos de um
matrimónio misto tenham em comum os sacramentos do batismo e do
matrimónio, a partilha da Eucaristia não pode deixar de ser
extraordinária e, contudo, devem ser observadas as disposições
indicadas [...]» (Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade
dos Cristãos, Diretório para a Aplicação dos Princípios e das
Normas para o Ecumenismo, 25 de março de 1993, 159-160).
73.
Os matrimónios com disparidade de culto representam
um lugar privilegiado de diálogo inter-religioso na vida
quotidiana, e podem constituir um sinal de esperança para as
comunidades religiosas, especialmente onde existem situações de
tensão. Os componentes do casal compartilham as respetivas
experiências espirituais, ou então um caminho de busca religiosa,
se um dos dois não for crente (cf. 1 Cor 7, 14). Os
matrimónios com disparidade de culto comportam algumas
dificuldades específicas, tanto no que se refere à identidade
cristã da família, como no que diz respeito à educação religiosa
dos filhos. Os esposos são chamados a transformar cada vez mais o
sentimento inicial de atração, com o desejo sincero do bem do
outro. Esta abertura transforma também a diferente pertença
religiosa numa oportunidade de enriquecimento da qualidade
espiritual do relacionamento. O número de famílias compostas por
uniões conjugais com disparidade de culto, em aumento nos
territórios de missão e inclusive nos países de antiga tradição
cristã, solicita a urgência de prover a um cuidado pastoral em
conformidade com os diferentes contextos sociais e culturais. Em
determinados países, onde a liberdade de religião não existe, o
cônjuge cristão é obrigado a passar para outra religião para poder
casar, e não lhe é permitido celebrar o matrimónio canónico em
disparidade de culto, nem batizar os seus filhos. Por conseguinte,
devemos reiterar a necessidade de que a liberdade religiosa seja
respeitada em relação a todos.
74.
Os matrimónios mistos e os matrimónios com
disparidade de culto apresentam aspetos de fecundas
potencialidades e de múltiplas criticidades, de não fácil solução,
mais a nível pastoral do que normativo, como a educação religiosa
dos filhos, a participação na vida litúrgica do cônjuge, a
partilha da experiência espiritual. Para enfrentar de modo
constitutivo as diversidades em ordem à fé, é necessário prestar
uma atenção particular às pessoas que se unem em tais matrimónios,
e não somente no período precedente às bodas. Desafios peculiares
são enfrentados pelos casais e pelas famílias nas quais um dos
parceiros é católico e o outro é não-crente. Nestes casos, é
necessário dar testemunho da capacidade que o Evangelho tem de se
inserir em tais situações, de modo a tornar possível a educação
para a fé cristã dos filhos.
75.
Particular dificuldade apresentam as situações que
se referem ao acesso ao batismo por parte de pessoas que se
encontram numa condição matrimonial complexa. Trata-se de pessoas
que contraíram uma união matrimonial estável numa época em que
ainda pelo menos uma delas não conhecia a fé cristã. Nestes casos,
os Bispos são chamados a exercer um discernimento pastoral
consentâneo ao seu bem espiritual.
76.
A Igreja conforma a sua atitude ao Senhor Jesus
que, num amor sem confins, se ofereceu por cada pessoa, sem
exceções (cf. MV, 12). Em relação às famílias que vivem a
experiência de ter no seu âmbito pessoas com tendência
homossexual, a Igreja confirma que cada pessoa, independentemente
da sua tendência sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e
acolhida com respeito, com o cuidado de evitar «qualquer atitude
de injusta discriminação» (Congregação para a Doutrina da Fé,
Considerações sobre os projetos de reconhecimento
legal das uniões entre pessoas homossexuais,
4). Reserve-se uma atenção específica também ao acompanhamento das
famílias em que vivem pessoas com tendência homossexual. No que se
refere aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre
pessoas homossexuais, «não existe fundamento algum para equiparar
ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões
homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família» (Ibidem).
Contudo, o Sínodo considera totalmente inaceitável que as Igrejas
locais padeçam pressões nesta matéria, e que os organismos
internacionais condicionem as ajudas financeiras aos países
pobres, à introdução de leis que instituam o «matrimónio» entre
pessoas do mesmo sexo.
Acompanhamento em diferentes situações
77.
Numa partilha afetuosa, a Igreja faz suas as
alegrias e as esperanças, as dores e as angústias de cada família.
Para a Igreja, permanecer próxima da família como companheira de
caminho significa assumir uma atitude sabiamente diferenciada:
algumas vezes, é necessário permanecer ao lado e ouvir em
silêncio; outras vezes, deve-se preceder para indicar o caminho a
percorrer; e outras vezes ainda, é oportuno seguir, apoiar e
encorajar. «A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes,
religiosos e leigos – nesta “arte do acompanhamento”, para que
todos aprendam a tirar sempre as sandálias diante da terra sagrada
do outro (cf. Êx 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o
ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de
compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a
amadurecer na vida cristã» (EG, 169). A principal
contribuição pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é
família de famílias, onde se harmonizam os contributos de pequenas
comunidades, movimentos e associações eclesiais. O acompanhamento
exige sacerdotes especificamente preparados e a instituição de
centros especializados em que sacerdotes, religiosos e leigos
aprendam a cuidar de cada família, com uma atenção particular
àquelas que vivem em dificuldade.
78.
Um ministério dedicado àqueles, cuja relação
matrimonial se interrompeu, parece particularmente urgente. O
drama da separação muitas vezes chega no final de longos períodos
de conflito, que fazer recair sobre os filhos os maiores
sofrimentos. A solidão do cônjuge abandonado, ou que foi obrigado
a interromper uma convivência caracterizada por maus-tratos
contínuos e graves, exige uma atenção especial da parte da
comunidade cristã. Prevenção e cuidado nos casos de violência
familiar requerem uma colaboração estreita com a justiça, para
agir contra os responsáveis e proteger adequadamente as vítimas.
Além disso, é importante promover a salvaguarda dos menores contra
o abuso sexual. Que na Igreja se tenha tolerância zero em tais
casos, juntamente com o acompanhamento das famílias. Além disso,
pareceria oportuno ter em consideração as famílias nas quais
alguns membros desempenham atividades que comportam exigências
particulares, como os militares que se encontram numa situação de
separação material e de uma prolongada distância física da
família, com todas as consequências que isto implica. Voltando dos
ambientes de guerra, não raro eles sofrem de uma síndrome
pós-traumática e sentem-se perturbados na consciência, que lhes
dirige graves interrogações morais. Aqui é necessária uma peculiar
atenção pastoral.
79.
A experiência do fracasso matrimonial é sempre
dolorosa para todos. Por outro lado, a própria falência pode
tornar-se ocasião de reflexão, de conversão e de confiança em
Deus: adquirindo a consciência das próprias responsabilidades,
cada um pode voltar a encontrar confiança e esperança nele. «Do
coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus,
brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia.
Esta fonte nunca poderá esgotar-se, por maior que seja o número
daqueles que dela se abeirem. Sempre que alguém tiver necessidade
poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus não tem fim» (MV,
25). O perdão pela injustiça padecida não é fácil, mas constitui
um caminho que a graça torna possível. Por isso é necessária uma
pastoral da conversão e da reconciliação, também através de
centros de escuta e de mediação especializados, que se devem criar
nas Dioceses. Contudo, é preciso promover a justiça em relação a
todas as partes atingidas pela falência matrimonial (cônjuges e
filhos). A comunidade cristã e os seus Pastores têm o dever de
pedir aos cônjuges separados e divorciados que se tratem com
respeito e misericórdia, sobretudo para o bem dos filhos, aos
quais não se deve provocar ulterior sofrimento. Os filhos não
podem ser um objeto de competição, e devem ser procuradas as
melhores formas para que consigam superar o trauma da separação
familiar e crescer da maneira mais tranquila possível. De qualquer
forma, a Igreja deverá pôr sempre em evidência a injustiça, que
muitas vezes deriva da situação de divórcio.
80.
As famílias monoparentais têm origens diferentes:
mães ou pais biológicos que nunca quiseram integrar-se na vida
familiar, situações de violência das quais um dos pais teve que
fugir com os filhos, morte de um dos pais, além de outras
situações. Qualquer que seja a causa, quem mora com o próprio
filho deve encontrar apoio e consolação junto das outras famílias
que formam a comunidade cristã, assim como junto dos organismos
pastorais paroquiais. Estas famílias são muitas vezes
ulteriormente afligidas pela gravidade dos problemas económicos,
pela incerteza de um trabalho precário, pela dificuldade
enfrentada para a manutenção dos filhos e pela falta de uma casa.
A mesma solicitude pastoral deverá ser manifestada também em
relação às pessoas viúvas, às mães solteiras e aos seus filhos.
81.
Quando os esposos experimentam problemas nos seus
relacionamentos, devem poder contar com a ajuda e o acompanhamento
da Igreja. A experiência demonstra que, com uma ajuda adequada e
com a ação de reconciliação da graça do Espírito Santo, uma
elevada percentagem de crises matrimoniais são superadas de
maneira satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado constitui
uma experiência fundamental na vida familiar. O perdão entre os
esposos permite descobrir de novo a verdade de um amor que é para
sempre, que nunca passa (cf. 1 Cor 13, 8). No âmbito dos
relacionamentos familiares, a necessidade de reconciliação é
praticamente quotidiana. As incompreensões devidas às relações com
as famílias de origem, o conflito entre diferentes hábitos
culturais e religiosos, a divergência a respeito da educação dos
filhos, a ansiedade pelas dificuldades económicas, a tensão que
surge por causa de dependências ou da perda do trabalho. São
alguns dos recorrentes motivos de tensões e de conflitos. A
cansativa arte da reconciliação, que tem necessidade da ajuda da
graça, precisa da colaboração generosa de parentes e amigos, e às
vezes inclusive de um apoio externo e profissional. Nos casos mais
dolorosos, como o da infidelidade conjugal, é necessária uma
verdadeira obra de reparação, à qual é preciso tornar-se
disponível. Um pacto ferido pode ser curado: para esta esperança é
necessário educar-se desde a preparação para o matrimónio. No
cuidado das pessoas e das famílias feridas são fundamentais a ação
do Espírito Santo, a frequência do sacramento da Reconciliação e a
necessidade de caminhos espirituais acompanhados por ministros
especialistas.
82.
Para muitos fiéis que viveram uma experiência
matrimonial infeliz, a averiguação da nulidade do seu matrimónio
representa um caminho a percorrer. Os recentes Motu Proprio
Mitis Iudex Dominus Iesus
e
Mitis et Misericors Iesus
levaram a uma simplificação dos procedimentos para a eventual
declaração de nulidade matrimonial. Com estes textos, o Santo
Padre quis também «evidenciar que o próprio Bispo na sua Igreja,
da qual está constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no
meio dos fiéis a ele confiados» (MI, preâmbulo, III). Por
conseguinte, a prática destes documentos constitui uma grande
responsabilidade para os Ordinários diocesanos, chamados a julgar
eles mesmos algumas causas e, de qualquer modo, a assegurar um
acesso mais fácil dos fiéis à justiça. Isto comporta a preparação
de pessoal suficiente, composto por clérigos e leigos, que se
consagre de forma prioritária a este serviço eclesial. Portanto,
será necessário pôr à disposição das pessoas separadas ou dos
casais em crise, um serviço de informação, de aconselhamento e de
mediação, ligado à pastoral familiar, que também poderá receber as
pessoas em vista da investigação preliminar ao processo
matrimonial (cf. MI, arts. 2-3).
83.
O testemunho daqueles que inclusive em condições
difíceis não contraem uma nova união, permanecendo fiéis ao
vínculo matrimonial, merece o apreço e o apoio por parte da
Igreja. Ela quer mostrar-lhes o rosto de um Deus fiel ao seu amor
e sempre capaz de dar força e esperança renovadas. As pessoas
separadas ou divorciadas mas não recasadas, que são frequentemente
testemunhas da fidelidade matrimonial, devem ser encorajadas a
encontrar na Eucaristia o alimento que as sustenha na sua
situação.
Discernimento e integração
84.
Os batizados que são divorciados e recasados devem
ser integrados em maior medida nas comunidades cristãs, de várias
maneiras possíveis, evitando todas as ocasiões de escândalo. A
lógica da integração constitui a chave do seu acompanhamento
pastoral, para que não somente saibam que pertencem ao Corpo de
Cristo, que é a Igreja, mas também possam fazer uma experiência
jubilosa e fecunda da mesma. São batizados, são irmãos e irmãs, e
o Espírito Santo derrama sobre eles dons e carismas para o bem de
todos. A sua participação pode manifestar-se em diferentes
serviços eclesiais: por isso, é necessário discernir quais das
diversas formas de exclusão atualmente praticadas nos âmbitos
litúrgico, pastoral, educativo e institucional, podem ser
superadas. Eles não apenas não devem sentir-se excomungados, mas
podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja, sentindo-a
como uma mãe que os recebe sempre, que cuida deles com carinho e
que os anima no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é
necessária também em ordem ao cuidado e à educação dos seus
filhos, que devem ser considerados os mais importantes. Para a
comunidade cristã, cuidar destas pessoas não é um debilitamento da
própria fé e do testemunho acerca da indissolubilidade
matrimonial: aliás, é precisamente neste cuidado que a Igreja
manifesta a sua caridade.
85.
São João Paulo II ofereceu um critério global, que
permanece a base para a avaliação destas situações: «Saibam os
pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem
as situações. Há, na realidade, diferença entre aqueles que
sinceramente se esforçaram por salvar o primeiro matrimónio e
foram injustamente abandonados, e aqueles que por sua grave culpa
destruíram um matrimónio canonicamente válido. Há ainda aqueles
que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos
e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o
precedente matrimónio, irreparavelmente destruído, nunca tinha
sido válido» (FC, 84). Portanto, é tarefa dos presbíteros
acompanhar as pessoas interessadas no caminho do discernimento, em
conformidade com o ensinamento da Igreja e com as orientações do
Bispo. Neste processo, será útil fazer um exame de consciência,
através de momentos de reflexão e de arrependimento. Os
divorciados recasados deveriam interrogar-se como se comportaram
em relação aos seus filhos, quando a união conjugal entrou em
crise; se houve tentativas de reconciliação; qual é a situação do
parceiro abandonado; quais são consequências da nova relação sobre
o restante da família e sobre a comunidade dos fiéis; e que
exemplo ela oferece aos jovens que se devem preparar para o
matrimónio. Uma reflexão sincera pode fortalecer a confiança na
misericórdia de Deus, que a ninguém deve ser rejeitada.
Além disso, não se pode negar
que, nalgumas circunstâncias, «a imputabilidade e responsabilidade
de um ato podem ser diminuídas e até anuladas» (CIC, 1735)
por causa de diversos condicionamentos. Por conseguinte, o juízo
sobre uma situação objetiva não deve levar a um julgamento sobre a
«imputabilidade subjetiva» (Pontifício Conselho para os Textos
Legislativos, Declaração, 24 de junho de 2000, 2a). Em
determinadas circunstâncias, as pessoas encontram grandes
dificuldades de agir de maneira diversa. Por isso, não obstante
seja necessário promover uma norma geral, é preciso reconhecer que
a responsabilidade em relação a certas ações ou decisões não é a
mesma em todos os casos. Embora tenha em consideração a
consciência retamente formada pelas pessoas, o discernimento
pastoral deve assumir a responsabilidade por tais situações.
Também as consequências dos gestos realizados não são
necessariamente as mesmas em todos os casos.
86.
O percurso de acompanhamento e de discernimento
orienta estes fiéis para a tomada de consciência da sua situação
perante Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre
para a formação de um juízo reto sobre aquilo que impede a
possibilidade de uma participação mais plena na vida da Igreja e
sobre os passos que podem favorecê-la e levá-la a crescer. Visto
que na própria lei não existe graduação (cf. FC, 34), este
discernimento nunca poderá prescindir da verdade e da caridade do
Evangelho, propostas pela Igreja. Para que isto se verifique,
devem ser garantidas as necessárias condições de humildade,
discrição, amor à Igreja e ao seu ensinamento, na busca sincera da
vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita
sincera à mesma.
Capítulo IV
Família e evangelização
A espiritualidade familiar
87.
Na sua vocação e missão, a família é
verdadeiramente um tesouro da Igreja. Todavia, como afirma São
Paulo em relação ao Evangelho, «temos este tesouro em vasos de
barro» (2 Cor 4, 7). Na porta de entrada da vida da
família, afirma o Papa Francisco, «estão escritas três palavras
[...]: “com licença”, “obrigado”, “desculpa”. Estas palavras
realmente abrem o caminho para viver bem na família, para viver em
paz. Trata-se de palavras simples, mas não são tão fáceis de pôr
em prática! Elas encerram em si uma grande força: o vigor de
proteger o lar, até no meio de inúmeras dificuldades e provações;
ao contrário, a sua falta gradualmente abre fendas que até o podem
fazer ruir» (Francisco,
Audiência geral, 13 de
maio de 2015). O ensinamento dos
Pontífices convida a aprofundar a dimensão espiritual da vida
familiar a partir da nova descoberta da oração em família e da
escuta em comum da Palavra de Deus, da qual nasce o compromisso de
caridade. O alimento principal da vida espiritual da família é a
Eucaristia, especialmente no dia do Senhor, como sinal do seu
profundo arraigar-se na comunidade eclesial (cf. João Paulo II,
Dies Domini, 52.66).
A oração doméstica, a participação na liturgia e a prática das
devoções populares e marianas são eficazes meios de encontro com
Jesus Cristo e de evangelização da família. Isto porá em evidência
a especial vocação dos esposos a alcançar, com a graça do Espírito
Santo, a sua santidade através da vida matrimonial, também
participante no mistério da cruz de Cristo, que transforma as
dificuldades e os sofrimentos em oferenda de amor.
88.
Na família, a ternura constitui o vínculo que une
os pais entre si, e eles aos filhos. Ternura quer dizer dar com
alegria e suscitar no outro a alegria de se sentir amado. Ela
exprime-se de modo particular prestando atenção delicada aos
limites do outro, especialmente quando eles sobressaem de maneira
evidente. Tratar com esmero e respeito significa curar as feridas
e restituir esperança, de modo a reavivar no outro a confiança. A
ternura nos relacionamentos familiares é a virtude de todos os
dias, que ajuda a ultrapassar os conflitos interiores e
relacionais. A tal propósito, o Papa Francisco convida-nos a
refletir: «Temos a coragem de acolher, com ternura, as situações
difíceis e os problemas de quem vive ao nosso lado, ou preferimos
as soluções impessoais, talvez eficientes mas desprovidas do calor
do Evangelho? Quão grande é a necessidade que o mundo tem hoje de
ternura! Paciência de Deus, proximidade de Deus, ternura de Deus»
(Homilia
por ocasião da Santa Missa na Noite da Solenidade do Natal do
Senhor, 24 de dezembro de 2014).
A
família protagonista da pastoral
89.
Se a família cristã quiser ser fiel à sua missão,
deverá compreender bem de onde ela nasce: não pode evangelizar,
sem ser evangelizada. A missão da família abrange a união fecunda
dos esposos, a educação dos filhos, o testemunho do sacramento, a
preparação de outros casais para o matrimónio e o acompanhamento
amistoso daqueles casais ou famílias que encontram dificuldades.
Por isso, é importante um esforço evangelizador e catequético
orientado para o núcleo da família. A este respeito, tenha-se o
cuidado de valorizar os casais, as mães e os pais, como
protagonistas ativos da catequese, especialmente em relação aos
filhos, em colaboração com sacerdotes, diáconos, pessoas
consagradas e catequistas. Este esforço tem início a partir dos
primeiros encontros sérios do casal. A catequese familiar serve de
grande ajuda, como método eficaz para formar os jovens pais e para
os tornar conscientes da sua missão de evangelizadores da própria
família. Além disso, é muito importante sublinhar o nexo entre
experiência familiar e iniciação cristã. No seu conjunto, a
comunidade cristã deve tornar-se o lugar onde as famílias nascem,
se encontram e se confrontam em conjunto, caminhando na fé e
compartilhando percursos de crescimento e de intercâmbio
recíproco.
90.
A Igreja deve infundir nas famílias um sentido de
pertença eclesial, um sentido do «nós», no qual nenhum membro é
esquecido. Todos sejam animados a desenvolver as respetivas
capacidades e a realizar o projeto da sua vida, ao serviço do
Reino de Deus. Cada família, inserida no contexto eclesial, volte
a descobrir a alegria da comunhão com outras famílias, para servir
o bem comum da sociedade, promovendo uma política, uma economia e
uma cultura ao serviço da família, também através da utilização
dos social networks e dos meios de comunicação. Formulam-se
votos a fim de que haja a possibilidade de criar pequenas
comunidades de famílias, como testemunhas vivas dos valores
evangélicos. Sente-se a necessidade de preparar, formar e
responsabilizar algumas famílias, que possam acompanhar outras a
viver de maneira cristã. É preciso recordar e encorajar também as
famílias que se tornam disponíveis a viver a missão «ad gentes».
Finalmente, evoca-se a importância de unir a pastoral juvenil à
pastoral familiar.
A relação com as culturas e com as instituições
91.
A Igreja, «vivendo no decurso dos tempos em
diversos condicionalismos, empregou os recursos das diversas
culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo,
para a explicar, investigar e penetrar mais profundamente e para
lhe dar melhor expressão na celebração da Liturgia e na vida da
multiforme comunidade dos fiéis» (GS, 58). Por conseguinte,
é importante ter em consideração estas culturas e respeitar cada
uma delas nas suas particularidades. É oportuno também recordar
aquilo que já o Beato Paulo VI escrevia: «A ruptura entre o
Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o
foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os
esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou
mais exatamente das culturas» (EN, 20). A pastoral
matrimonial e familiar tem necessidade de valorizar aqueles
elementos positivos que se encontram nas diferentes experiências
religiosas e culturais, e que representam uma «praeparatio
evangelica». Contudo, no encontro com as culturas, uma
evangelização atenta às exigências da promoção humana da família
não poderá subtrair-se à denúncia franca dos condicionamentos
culturais, sociais, políticos e económicos. A hegemonia crescente
da lógica do mercado, que mortifica os espaços e os tempos de uma
autêntica vida familiar, concorre também para agravar
discriminações, pobrezas, exclusões e violências. Entre as
diversas famílias que vivem em condições de indigência económica,
por causa do desemprego, ou da precariedade do trabalho, ou ainda
da falta de assistência social e médica, não raro acontece que
alguns, incapazes de aceder ao crédito, caem vítimas da usura e às
vezes são obrigados a abandonar as suas casas e até os próprios
filhos. A este propósito, sugere-se que sejam criadas estruturas
económicas de apoio adequado para ajudar estas famílias, ou então
capazes de promover a solidariedade familiar e social.
92.
A família é «a primeira célula vital da sociedade»
(AA, 11). Ela deve voltar a descobrir a sua vocação, em
benefício do viver social em todos os seus aspetos. É
indispensável que as famílias, através do seu agregar-se,
encontrem as modalidades para interagir com as instituições
políticas, económicas e culturais, com a finalidade de edificar
uma sociedade mais justa. Por isso, é necessário desenvolver o
diálogo e a cooperação com as estruturas sociais, e há que
encorajar e ajudar os leigos que, como cristãos, se comprometem
nos âmbitos cultural e sociopolítico. A política tem o dever de
respeitar de modo particular o princípio da subsidiariedade, sem
limitar os direitos das famílias. A tal propósito, é importante
ter em consideração a «Carta dos Direitos da Família» (cf.
Pontifício Conselho para a Família, 22 de outubro de 1983) e a
«Declaração Universal dos Direitos do Homem» (10 de dezembro de
1948). Para os cristãos que trabalham na política, o compromisso
em prol da vida e da família deve ter a prioridade, dado que uma
sociedade que descuida a família já perdeu a sua abertura ao
futuro. As associações familiares, comprometidas no trabalho comum
juntamente com grupos de outras tradições cristãs, têm como suas
principais finalidades, entre outras, a promoção e a defesa da
vida e da família, da liberdade de educação e da liberdade
religiosa, da harmonização entre o tempo para o trabalho e o tempo
para a família, a defesa das mulheres no trabalho e a tutela da
objeção de consciência.
A abertura à missão
93.
A família dos batizados é missionária por sua
natureza e aumenta a sua fé no ato de a proporcionar aos outros,
antes de tudo aos filhos. O seu próprio viver a comunhão familiar
é já a sua primeira forma de anúncio. Com efeito, a evangelização
começa a partir da família, na qual não se transmite unicamente a
vida física, mas inclusive a vida espiritual. Não se deve esquecer
o papel dos avós na transmissão da fé e das práticas religiosas:
eles são as testemunhas do vínculo entre as gerações, guardiões de
tradições de sabedoria, oração e bom exemplo. Assim, a família
constitui-se como protagonista da ação pastoral através do anúncio
explícito do Evangelho e da herança de múltiplas formas de
testemunho: a solidariedade para com os pobres, a abertura à
diversidade das pessoas, a preservação da criação, a solidariedade
moral e material para com as demais famílias, principalmente para
com as mais necessitadas, o esforço pela promoção do bem comum,
também mediante a transformação das estruturas sociais injustas, a
partir do território no qual ela vive, pondo em prática as obras
de misericórdia corporal e espiritual.
CONCLUSÃO
94.
Durante esta Assembleia nós, Padres sinodais,
congregados ao redor do Papa Francisco, pudemos experimentar a
ternura e a oração da Igreja inteira, caminhar como os discípulos
de Emaús e reconhecer a presença de Cristo na fração do pão na
mesa eucarística, na comunhão fraternal e na partilha das
experiências pastorais. Fazemos votos a fim de que o fruto deste
trabalho, agora entregue nas mãos do Sucessor de Pedro,
proporcione esperança e alegria a numerosas famílias no mundo,
orientação aos pastores e aos agentes no campo da pastoral, bem
como estímulo à obra de evangelização. Concluindo este Relatório,
pedimos humildemente ao Santo Padre que avalie a oportunidade de
oferecer um documento sobre a família para que nela, igreja
doméstica, resplandeça cada vez mais Cristo, luz do mundo.
Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José
em vós nós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
a vós dirigimo-nos com confiança.
Sagrada Família de Nazaré,
faz também das nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
nunca mais nas famílias se vivam experiências
de violência, fechamento e divisão:
quem quer que tenha sido ferido ou escandalizado
receba depressa consolação e cura.
Sagrada Família de Nazaré,
desperta de novo em todos a consciência
da índole sagrada e inviolável da família,
a sua beleza no desígnio de Deus.
Jesus, Maria e José
escutai, atendei a nossa súplica.
Amém.
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