HOLOCAUSTOS
A morte é sempre o fim de uma aventura. A singular vida humana — como a animal, a vegetal e a mineral — é um milagre raro. Somos de areia, de barro, de porcelana, de cristal. De uma fragilidade assombrosa. Assolados pela doença, marionetas do acaso, vítimas das taras e dos caprichos de poderes mil.
Levinas, com a experiência pessol dos campos de concentração como horizonte reflexivo de fundo, buscou fundar uma ética de resgate total da vida, afirmando o Rosto do Outro como uma proibição absoluta de infligir sofrimento e de assassinar. Os homicidas, psicopatas ou institucionais, não desconhecem a sacralidade do rosto e do corpo do outro. O velar da face dos condenados, no momento da forca ou do fuzilamento, não representa um ato final de piedade para os que vão morrer. Significa, antes, da parte do carrasco, o conhecimento da insuportabilidade moral do seu crime. Da incapacidade de fitar, olhos nos olhos, um rosto à beira de uma desaparição.
O capuz das vítimas assume hoje, no limpo mundo tecnológico das racionalidades iluministas, a assepsia teleguiada e anónima dos drones, das bombas, dos mísseis.
Hitler compreendeu-o, antes dos demais. As câmaras de gás inauguraram o tempo da morte limpa. Limpa, é bom de ver, apenas para os assassinos, desonerados do incómodo espetáculo do desespero dos condenados. Nesse sentido, também branca foi a morte pela fome decretada por Estaline aos ideologicamente relutantes camponeses ucranianos. Como branca foi a cansada e extenuada morte destinada aos arménios, nos longos, inóspitos e desérticos trilhos de forçada caminhada desenhados pela jovem Turquia.
Limpa e branca é a morte na Palestina. E na Ucrânia. E no Ruanda. E nas injeções letais das penitenciárias norte americanas. E em todo o lado, afinal.
Num mundo dessacralizado é fácil a qualquer poder legitimar a morte. Daí as retóricas justificantes, quando não glorificantes, do “morrer pela Pátria”, do “morrer pelo Partido”, do “morrer pelo Gang”, do morrer por qualquer outro coletivo deificado.
O tempo pascal mostra o erro de Nietzsche: o cristianismo não é apologia da morte e do sofrimento. É a celebração pura da vida. E da alegria da vida. À mesa, na partilha do pão e do vinho.
E na cruz, pessoal e intransmissível. Onde morrer tem um valor ontológico. Não o de eliminar o outro. Antes o de dar a vida para que o outro não morra.
Na cruz, e apenas na cruz, morrer é viver.
Manuel Castelo Branco
Comissão Diocesana Justiça e Paz.