DOMINGO DE RAMOS NA PAIXÃO DO SENHOR
MISSA NA SÉ NOVA – COIMBRA 2022
Caríssimos irmãos e irmãs!
Ouvimos na narração do Evangelho as multidões gritarem diante de Pilatos: “Crucifica-O, crucifica-O”. Pedem a morte de Jesus que, depois de flagelado e escarnecido, acaba por ser crucificado. Ali está a paixão de Jesus, o Filho de Deus, e ali se consuma a paixão de toda a humanidade, que Ele assume. O Senhor da vida sofre a Sua paixão e morte e continuam a sofrer a sua paixão e morte aqueles a quem veio dar a vida em abundância.
As palavras da narração bíblica são profundamente dramáticas e, mais ainda, dramática é a realidade que, ao longo dos tempos, e também hoje, continua presente na nossa história. A paixão e morte de Jesus continua presente na paixão e na história da humanidade que nós somos.
As multidões pedem a morte de Jesus por Ele ser Filho de Deus, por Ele ser o Messias prometido por Deus e esperado pelos profetas. Já não encontrara lugar na hospedaria aquando do seu nascimento, sente-se rejeitado ao longo da Sua vida pública, apesar de ter palavras de vida eterna e realizar obras de libertação e verdadeiro amor em favor de todos, não encontra lugar no coração da humanidade quando se aproxima o seu fim. Estamos diante do mistério do amor de Deus pela humanidade, que não encontra acolhimento, reconhecimento da nossa parte, o mistério do amor não correspondido que fere e mata mais do quer qualquer outra realidade.
Quando Jesus Se oferece por nós, para salvar o que anda perdido nos enredos da vida, encontra insensibilidade e recusa. Agimos como se fôssemos os senhores de nós mesmos, os salvadores do mundo. Agimos sem humildade e sem fé quando nos juntamos às multidões e, com as nossas infidelidades e faltas de amor, gritamos a Deus e aos homens: “crucifica-O, crucifica-O”.
As multidões pedem a morte de Jesus por Ele ser Homem. Continuam a pedir a morte dos outros, simplesmente por serem pessoas a ocupar o seu espaço e a viver a sua vida com percursos bons e maus. A paixão da humanidade tem muito a ver com o simples facto de nos tomarmos como concorrentes uns dos outros, por ocuparmos o espaço que reclamamos uns aos outros, por desejarmos a bem-aventurança dos outros, os bens dos outros.
Em todas as guerras, injustiças e pecados contra os outros está bem presente esta cegueira humana de não nos termos por irmãos, apesar de essa ser a nossa condição e a maior riqueza que encontramos sobre a terra que pisamos. Se não somos nada sem Deus, nada somos sem os outros que partilham a nossa condição humana.
Na narração do Evangelho, ouvimos uma palavra pronunciada junto à cruz de Jesus, cheia de significado, apesar de ter sido pronunciada num marcado tom irónico: “Salvou os outros: salve-se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito”. E mais adiante, os soldados voltam a insistir: “Salva-Te a Ti mesmo”.
Estas palavras fazem saltar a abissal diferença entre o amor de Deus e a nossa capacidade humana de amar. Jesus revela o amor eterno, a doação completa, o desprendimento total, as entranhas de misericórdia de Deus. Ele não veio para salvar-Se a Si mesmo, mas para os seus irmãos, de tal modo que a insistência daquela expressão surge como uma provocação, como um sinal da incredulidade acerca da Sua condição divina, como uma tentação, como uma lança mais dolorosa do que as que penetram na carne.
Deus volta-se com amor para a humanidade e o seu único desejo é salvar a humanidade. Não impõe condições, simplesmente oferece e espera aceitação.
Facilmente encontramos lugares da nossa vida pessoal e comunitária, da vida política e social, da vida das comunidades cristãs e das instituições que contrastam radicalmente com esta proposta de Jesus, que lhe custou o seu próprio sangue. Nesta atitude de Jesus radica aquilo a que podemos chamar o mais profundo sentido ético, humano e social da sua mensagem: não se salva a si mesmo, morre para salvar os outros. Desses outros faço parte eu e tu, fazemos parte nós e a humanidade inteira, pois não quis deixar ninguém de parte.
Enquanto contemplamos a paixão de Jesus neste tempo favorável, entremos também na paixão da humanidade, que tem muitos e variados traços, todos eles, dramáticos e reveladores da nossa debilidade. Procuremos colher a entranha do Evangelho do amor de Deus, que não se salva a sai mesmo, mas veio para dar a vida pela humanidade e tomemos a decisão de uma conversão que nos ponha nessa mesma estrada.
Coimbra, 2022.04.10
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra