Pontos de vista com

Pontos de vista com…
Clara Almeida Santos entrevista D. Virgílio Antunes

O “Correio” inicia nesta edição e neste novo formato um espaço de reflexão e diálogo com dois convidados, o entrevistador e o entrevistado… Convidámos a Doutora Clara Almeida Santos, Vice-reitora da Universidade de Coimbra, para entrevistar D. Virgílio Antunes. Nesta entrevista, o Bispo de Coimbra explica como surgiu a sua vocação, levando o leitor ou ouvinte a uma viagem de Roma a Jerusalém, de Jerusalém a Fátima e de Fátima a Coimbra. O prelado, em conversa amena com Clara Almeida Santos, realça as suas linhas orientadores para a diocese, o seu desejo de estar com as pessoas e de comunicar... a alegria do Evangelho.

Clara Almeida Santos é Doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade de Coimbra. É actualmente professora auxiliar no Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Jornalista de formação, trabalhou no Canal de Notícias de Lisboa e na SIC, onde exerceu funções fundamentalmente na SIC Online. Directora da UCV – televisão Web da Universidade de Coimbra – foi editora da revista  Rua Larga. Trabalhou ainda como directora de comunicação da Interacesso e foi assistente convidada na Escola Superior de Educação de Coimbra.

Virgílio do Nascimento Antunes foi ordenado presbítero a 29 de Setembro de 1985. Frequentou, entre 1992 e 1996, o Instituto Bíblico Pontifício em Roma, obtendo a licenciatura em Exegese Bíblica. Frequentou em 1996 a Escola Bíblica de Jerusalém. Foi docente de Teologia Bíblica no ISEC (Instituto Superior de Estudos Teológicos de Coimbra) de cuja Direcção fez parte. Foi igualmente docente do Centro de Formação e Cultura de Leiria e do Seminário Diocesano e, ocasionalmente, da Universidade Católica Portuguesa. Foi reitor do Seminário de Leiria entre 1996 e 2005, director do semanário diocesano “O Mensageiro” entre 2000 e 2005. Em 2005 foi nomeado capelão do Santuário de Fátima, sendo nomeado reitor em 2008. A 28 de Abril de 2011 foi nomeado para Bispo de Coimbra.


Clara Almeida Santos (CAS) – Vamos começar pelo princípio. Gostaria que nos contasse um pouco a história da sua vocação. Não sei se em criança sonhava em ser bispo, não sei se lembra algum episódio da sua infância… Como sentiu na sua vida este chamamento, esta vocação?

Virgílio do Nascimento Antunes (VA) – Eu em criança sempre sonhei ser padre. Logo a partir dos meus 9/10 anos sonhei ser padre e comecei a falar do assunto, de tal maneira que, tanto na escola primária, como em casa, conheceram esse meu desejo infantil e trataram de fazer progredir e avançar este sonho de criança. Fui muito cedo para o Seminário de Leiria, uma vez que era a minha diocese, e aí fiz o percurso normal de quem estuda. Estudávamos nas escolas públicas, no liceu, e fiz esse trajecto naquele tempo conturbado do pós 25 de Abril em que as escolas nacionais foram foco de grande turbulência política e turbulência no modo como funcionavam, nas aulas, etc. Mas o meu desejo de avançar, de ser padre, parece que nunca esmoreceu, embora tivesse períodos de maior dúvida, sobretudo entre os meus 15/18 anos. Estes foram anos mais turbulentos do ponto de vista das dúvidas, das incertezas, como é próprio da idade. Depois vim para Coimbra estudar teologia; continuava de alguma forma essa dúvida, mas fortaleci-me bastante. Havia um desejo que eu tinha - penso que era um desejo espiritual e penso que foi o grande sinal de Deus na minha vida! - que foi considerar que Deus estava em primeiro lugar.

CAS – Tem algum registo biográfico que o tivesse marcado, algum exemplo de vida…

VA – Sim, tive algumas pessoas, alguns grupos ligados à Igreja. Lembro-me da minha participação em muitos encontros ligados ao movimento dos Focolares. Foi um movimento que na altura estava cheio de vida. Penso que pode ter sido uma ideia que tivesse vindo daí…, esta de “Deus é tudo na tua vida”. Assumi de tal maneira essa realidade que só faltava saber como é que viveria a minha vida, como concretizaria a vocação, mas mantendo sempre esta certeza que Deus seria tudo na minha vida. Tem piada que, quando, agora, vou fazer os crismas, conto um pouco esta história aos crismandos, que são gente dos 16/20 anos, e alguns ficam admirados por alguém com a mesma idade crer que Deus é tudo na sua vida e que o resto terá de acomodar-se de alguma forma a esta convicção primeira.

CAS – Sabendo que conhece muito bem a Bíblia, pois fez a sua licenciatura em Exegese Bíblica e foi professor dessa matéria, gostava de lhe perguntar o que acha que é actualmente mais mal interpretado na Bíblia… Acha que a interpretação das pessoas é demasiado literal?

VA – A questão da interpretação da Bíblia é um grande problema na Igreja. Normalmente as pessoas recebem duas ou três ideias que são doutrina da Igreja e depois procuram encaixá-las e submeter a Bíblia a esse conjunto de ideias. Isto é um processo que está do modo inverso, porque da Bíblia é que decorre um conjunto de doutrina, a própria teologia, etc. Mas são desenvolvimentos que se fazem. De facto, há os dois extremos: um deles, é esta interpretação doutrinal que não tem em conta quase o texto, nem a sua mensagem, nem o seu contexto histórico, nem literário…; o outro é o tal literalismo de quem continua a ler a Bíblia hoje como se estivéssemos no século XIV ou XV, ainda sem dar este salto para o conhecimento dos géneros literários, para o conhecimento da cultura, sem capacidade de ler, de interpretar... É uma literatura antiga, que tem que ser lida como uma literatura antiga, sabendo que não perde a sua condição de texto inspirado pelo facto de ser portadora de todos os sinais e marcas próprias de um tempo datado.

CAS – E como se pode colmatar este défice?

VA – Só com muita formação. Naturalmente algumas pessoas podem estudar as Sagradas Escrituras de uma maneira mais aprofundada, científica, fazendo o estudo da exegese bíblica, mas depois as conclusões têm que poder chegar de alguma modo ao povo de Deus, aos leitores ou ouvintes nas mais variadas circunstâncias em que aborda o texto bíblico. A formação, informação e estudo são a única via para isso, marcada evidentemente pelo sentido teológico, pelo sentido da fé, pelo sentido espiritual que é o sinal maior da Bíblia.

CAS – Se lhe pedisse um excerto da Bíblia que fosse o mais mal interpretado entre todos…

VA – Eu penso que continua a ser o livro do Génesis, a questão dos primeiros capítulos, a criação, a queda, etc. Muitas vezes utilizam-se estes textos no contexto actual de uma forma absolutamente desadequada e até em lugares e por pessoas que nós esperaríamos que tivessem uma capacidade já de leitura e interpretação muito diferente…

CAS – Fizemos aqui um percurso de Roma para Jerusalém. Vamos agora para Fátima, onde esteve muitos anos, primeiro como capelão e depois como Reitor do Santuário… Desses anos em que exerceu essas funções, com que ideia ficou do significado de Fátima para Portugal e para o mundo…

VA – Sabe que Fátima é um lugar de sensações únicas e quem está ali a acompanhar por dentro, e ao mesmo tempo procurando mergulhar na questão da teologia, da espiritualidade e até da história, acaba por ter uma oportunidade ímpar de perceber aquilo que são as suas próprias sensações, e muitas vezes também as sensações dos outros… E dos outros, é o mundo! Fátima é do mundo, não é da região Centro, não é de Portugal, não é da Europa, mas sim do mundo. Quando se está lá e quando se viaja e se vai a muitos lugares e se contacta com os peregrinos que chegam ali, percebe-se isso. Nós, cá em Portugal, na generalidade das pessoas, mesmo daquelas que vão à Fátima, não temos a percepção da universalidade do fenómeno. Fátima provoca emoção nas pessoas, não é como pronunciar outra palavra qualquer, provoca emoção porque tem a ver com aquilo que há de mais íntimo nos sentimentos mais profundos, nas alegrias, nas tristezas, nos problemas da vida, na fé, na espiritualidade…

A minha experiência foi muito gratificante quer como capelão, quer, nos últimos anos, como reitor. Naturalmente, como reitor, também tinha que ter um olhar sobre os espaços físicos (que nos últimos anos mudaram imenso) e sobre os programas que se oferecem aos peregrinos. Fátima é um lugar que deixa marcas na história e na vida de uma pessoa.

CAS – Estamos quase a celebrar o centenário em 2017. Espera-se a visita do Papa Francisco…

VA – Com certeza que se espera a visita do Papa Francisco! Quanto ao programa das celebrações, foi elaborado ainda quando eu estava lá. Foi elaborado para sete anos, evocando as sete aparições e também do livro do Apocalipse, uma vez que a mensagem de Fátima também tem um certo simbolismo apocalíptico. O grosso da celebração é de carácter espiritual, embora tenha também algumas acções de carácter cultural. Fátima também é um fenómeno cultural que envolve as artes, a música, a escultura, a pintura, a arquitectura… Mas o centro nevrálgico desta celebração é sem dúvida a dimensão espiritual do fenómeno histórico e teológico de Fátima. Nesse sentido tem havido desenvolvimentos muito importantes, sobretudo no campo da espiritualidade e da teologia.

CAS – Fez parte da comissão da organização da viagem do Papa Bento XVI a Portugal. Tem pena de agora não fazer parte da organização da viagem do Papa Francisco?

VA – Cada coisa no seu tempo! Foi, de facto, uma experiência muito bonita, muito gratificante…, mas aconteceu naquela altura. Foram sobretudo os contactos com o Estado português, uma vez que era uma visita de Estado, e depois a organização interna, sobretudo no que diz respeito ao Santuário de Fátima, onde ficou quase três dias, e onde pude ter um contacto directo com o Papa Bento XVI, aquela figura silenciosa, introvertida, com uma atitude muito espiritual, um homem com muita profundidade, onde as suas palavras eram quase todas medidas... Foi para mim uma experiência muito gratificante que hoje seria muito diferente com a vinda do Papa Francisco...

CAS - Partilha de uma forma particular a visão do Papa Francisco. A sua recente Nota Pastoral vai ao encontro da Exortação Apostólica "Evangelii Gaudium" (A alegria do Evangelho)...

VA - Eu fiquei muito feliz quando começámos a idealizar o nosso projecto pastoral da Diocese e fomos vendo que há muitas coincidências com a Exortação do Papa Francisco. Naturalmente são as coincidências próprias do Espírito de Deus que anima a Igreja toda, nos seus diferentes lugares. Mas esta Exortação apostólica é uma maravilha de texto porque toca muitos aspectos prementes para a vida da Igreja, mas também muitos aspectos que vão ao encontro dos não crentes, da sociedade no seu todo. Há ali uma sabedoria fundamental de humanismo, de espiritualidade, que pode ser muito importante para qualquer pessoa, para pessoas de várias orientações, de vários credos, agnósticas, que se sentem tocadas e que sentem que aquele texto também lhes diz respeito porque diz respeito à sociedade em que estão...

CAS - Acha que a questão da alegria é uma maneira feliz de tentar mudar de algum modo a ideia de uma Igreja mais austera, de maior inflexibilidade?

VA – A alegria decorre do Evangelho. Mas apesar de decorrer do Evangelho, houve algumas épocas em que ficou mais na sombra, em que se salientaram mais os aspectos da dureza da vida, em que se insistiu mais na cruz (que é central na vida do cristão!...) e não se ressaltou tanto esta dimensão da alegria. Até porque os cristãos, mais concretamente os católicos, têm vivido um período de uma certa amargura interior, com algumas manifestações exteriores de um certo cepticismo... Estão a ver o desmoronar de um edifício que parecia inabalável e que a certa altura se começou a ver que afinal tudo isto tem muito de humano, tem pés de barro…; e alguns cristãos deixaram-se desfalecer e passaram a ser pessoas sem esperança, pessoas tristes. Eu acho que esta Exortação Apostólica veio no momento exacto, e não terá sido por ocaso, depois daquela grande turbulência que foram na vida da Igreja os escândalos em diferentes aspectos da vida do clero, da própria Igreja...

CAS - Coisas que o próprio Papa não tem receio de falar...

VA - Evidentemente, mas esta mensagem de alegria que ajuda a levantar o ânimo dos cristãos católicos tem a ver também com as decepções que temos vivido no mundo todo, nas mais diferentes escalas. A sociedade, a política, a economia, etc., também precisam desta injecção de optimismo e de esperança.

CAS - Esta ideia de chegar aos outros também tem sido uma constante preocupação na sua vida, uma vez que trabalhou em vários órgãos de comunicação social ligados à Igreja, como "o Mensageiro", "A Voz de Fátima"... Acha que a Igreja tem comunicado melhor com os seus fiéis e também com a sociedade? Como é que o faz?

VA - A Igreja ainda está num grande processo de aprendizagem relativamente à comunicação e tem feito um esforço muito grande para que a comunicação interna dê os seus resultados, não só com os meios humanos, mas também recorrendo a outros tipos de meios, novas tecnologias, etc. Para dentro, penso que houve já um salto muito grande. Para fora é a dificuldade! A Igreja não tem conseguido fazer chegar a sua mensagem, mesmo quando falam as Conferências episcopais, ou quando fala Igreja com a sua autoridade, dificilmente tem eco, ou eco positivo, pelo menos nalguma grande comunicação social. Se calhar tem a ver com o nosso próprio modo de falar, o nosso modo de comunicar. Eu penso que a nossa linguagem ainda é muito hermética, porventura é muito teológica, muito doutrinal, e, portanto, não utilizamos frequentemente aquilo que é a linguagem do dia-a-dia da vida das pessoas, aquela a que todos têm acesso. É uma linguagem muito específica, muito própria, e penso que não temos tido esta capacidade de chegar onde era necessário chegar. 

CAS - Por falar em chegar onde é necessário chegar, houve uma noite, há uns meses, quando eu estava a sair de um café da Baixa de Coimbra, em que vi passar alguém na rua com um blusão de cabedal e pensei: “conheço esta cara!” Era o Sr. D. Virgílio, que estava às dez e meia da noite a passear... E eu habituada a ver o Bispo de mitra, nas celebrações oficiais... Retomando essa ideia de proximidade, procura conhecer assim a cidade, a região?...

VA - Eu sinto-me bem a passear, indo à Baixa ou a outro lugar. Não me sinto constrangido, sinto-me bem em qualquer lugar, qualquer ambiente e penso que isso é uma forma importante de comunicar com as pessoas e de elas perceberem que há uma aproximação e que afinal o Bispo não é alguém que está fechado num reduto. É a mesma questão da linguagem. Se na linguagem não pode haver esses redutos, no nosso modo de contactar, de estar com as pessoas, de ir ao lugar onde as pessoas estão, também não pode haver. Não é uma estratégia, mas é algo que deve fazer parte do nosso modo de estar com as pessoas, na Igreja e na sociedade.

CAS – Estamos a poucos dias de celebrar o seu aniversário. Que prenda é gostaria de receber?

VA - Eu gostava que na nossa Diocese houvesse uma maior comunhão de pessoas, sobretudo daquelas que vivem na fé. Uma união de esforços entre todos nós que somos membros da Igreja e nos sentamos a trabalhar em conjunto. Que não haja divisões, mas sim um reflectir de programas, definindo objectivos, e agindo depois, todos, em conformidade, em unidade e em comunhão. Este é o desejo que eu tenho, para estarmos ao serviço da evangelização, que é aquilo que me faz estar em Coimbra, aquilo que me faz estar na Igreja e aquilo que me faz estar na vida.

 

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