Peregrinação Internacional Aniversária ao Santuário de Fátima
12 e 13 de agosto de 2024
VIGÍLIA DE 12 DE AGOSTO
HOMILIA NA CELEBRAÇÃO DA PALAVRA
Caríssimos irmãos e irmãs!
Esta vigília da noite no Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, traz-nos à memória pessoal as noites da nossa vida, que procuramos compreender a partir do mistério da morte de Cristo e iluminar com a luz do Ressuscitado. As mais escuras são os momentos de sofrimento causados pela doença, pela divisão familiar, pela ausência da fé e pelo sentimento de impotência face aos males do mundo.
Trazemos também as memórias coletivas, da família, da Igreja e da comunidade humana. A guerra, as perseguições, a discriminação de pessoas e de povos por muitas e diversas razões sem sentido, os atentados contra a vida e a integridade dos irmãos, fazem-nos chorar com os que sofrem, fazem-nos desejar uma humanidade nova, fazem-nos suplicar à Virgem de Fátima que não permita se adense mais a noite escura da humanidade, mas brilhe já a claridade do futuro.
A vigília de Fátima com as multidões que se reúnem, concentra aqui as memórias pessoais e, por nosso intermédio, as memórias da humanidade. Aqui sente-se pulsar o coração do nosso mundo na diversidade de rostos e de experiências de vida. Aqui chegam as maiores alegrias e as maiores dores, aqui se agradece e se suplica, aqui aflora a revolta interior e se pacifica o coração. Acreditamos que foi por tudo isso que a Virgem Maria, Mãe de todos os povos, aqui apareceu mais brilhante que o sol e aqui deixou ao mundo uma réstia de claridade, promissora de esperança.
A fé da Virgem Maria é, para os crentes, um sinal inequívoco das esperanças de pessoas e povos, porque orienta sempre para Jesus, a nossa esperança. A condição de mãe, que em Maria encontra o seu maior expoente, é, para nós, um reservatório do amor, da fraternidade e da alegria, únicos, eternos e inextinguíveis, revelados por Jesus e que se encontram no coração de Deus.
Viemos a esta vigília com a memória das noites escuras pessoais e de toda a humanidade. Pedimos a graça de sair dela com mais brilho, mais amor, fraternidade e alegria, porque a fé de Maria e o seu amor de mãe nos falam ao coração e nos apontam para Deus Santíssima Trindade, a esperança e a salvação do mundo.
Acolhemos nesta noite o testemunho dos três Pastorinhos de Fátima que, apesar de crianças, já carregavam em si as dores da humanidade pecadora e dilacerada pela guerra, mas encontraram no Coração Imaculado de Maria, refúgio, fé, alegria e esperança, que os animaram a fazer brilhar no mundo a chama ardente do amor de Deus.
De entre as sombras que obscurecem pessoas e povos, sobressai na atualidade a experiência dramática dos refugiados e exilados, devido à guerra, à fome, às perseguições, às injustiças, às políticas totalitárias, às condições de vida desumanas.
O facto de, ao longo de todos os períodos da história, sempre ter havido fenómenos semelhantes, não diminui a magnitude do problema nem a responsabilidade da comunidade humana. Hoje, temos uma responsabilidade acrescida por conhecermos a experiência do passado e por estarmos no topo, pelo menos do ponto de vista cronológico, do nosso percurso civilizacional, embora tenhamos de reconhecer em alguns aspetos muitos retrocessos.
Em Portugal, na Europa e em tantos outros lugares do mundo, conhecemos esta realidade das migrações forçadas, dos refugiados e exilados, já não somente pelos meios de comunicação social, mas direta e pessoalmente. Todos os dias contactamos com pessoas – homens, mulheres e crianças – que não são somente migrantes por vontade própria e livre ou pelo desejo legítimo de procurar melhores condições de vida para as famílias. Temos vizinhos que são refugiados e exilados, trabalhamos com eles, encontramo-nos com eles nos mesmos bancos das igrejas e nas mesmas enfermarias dos hospitais, as crianças sentam-se às mesmas carteiras das salas de aula e brincam nos mesmos recreios das escolas.
Em Fátima, podemos todos juntos reconhecer que “temos Mãe”, como aqui repetiu com voz forte e doce o Papa Francisco, e renovamos a certeza de fé segundo a qual Deus é Pai de toda a humanidade, a fé de que em Jesus Cristo somos todos irmãos, chamados a viver em harmonia e paz.
A Sagrada Escritura relembra-nos que para Deus não há estrangeiros, mas somente homens e mulheres que caminham sobre esta terra, uns beneficiados pelas possibilidades de uma vida pacífica e com condições normais para a sua peregrinação, e outros que fogem do passado e almejam um presente e um futuro mais felizes.
O Livro do Deuteronómio, com a linguagem própria do tempo e espelhando a realidade das vivências de uma sociedade em caminho entre o nomadismo, a ruralidade e a sedentarização, proclama o direito do estrangeiro e do pobre. Hoje afirmamos a igual dignidade de todos, sabendo que é ainda sonho por concretizar.
O Evangelho segundo São João, ao mesmo tempo que proclama a glória de Jesus manifestada no seu primeiro milagre em Caná da Galileia, leva-nos a concluir que o banquete do Reino é para toda a humanidade, pois, como disse Paulo, para Deus “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher” (Gl 3, 28). Não temos outro milagre para pedir senão o do amor e o da fraternidade entre os povos, sabendo que é dom de Deus e fruto da nossa oração e da nossa conversão. O vinho novo do Reino é oferecido aos convidados e, segundo outras páginas do Evangelho, os convidados são os que habitam nos lugares de paz, mas também os que jazem nos lugares de pobreza e à beira dos caminhos, em todas as periferias da nossa sociedade.
Irmãos e irmãs, trabalhemos e rezemos para que o vinho novo do Reino seja partilhado com amor. O batismo que recebemos e a fé cristã que nos foi dada possam transformar-se em sinal vivo e eloquente da realização, já realizada na Sua Páscoa, da obra de Deus, que nos chama a sermos todos irmãos – fratelli tutti.
Que a Virgem Maria, estenda o seu manto protetor sobre a humanidade, pois para ela somos filhos e filhas convidados para o banquete de Jesus Cristo, a nossa esperança e a nossa paz.
Santuário de Fátima, 12 de agosto de 2024
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra