Peregrinação Internacional Aniversária ao Santuário de Fátima
12 e 13 de agosto de 2024
13 DE AGOSTO
HOMILIA DA CELEBRAÇÃO DA MISSA
Irmãos e irmãs, caros migrantes, estimados peregrinos!
A migração dos portugueses de meados do século passado é rica de histórias que os filhos das gerações seguintes ouviram contar com paixão, seja pelo que acarretaram de dificuldades, seja pelos sucessos obtidos depois de começos conturbados e pouco esperançosos. Homens e mulheres das primeiras gerações e das gerações sucessivas, estão aqui, para agradecer a proteção de Deus e a confiança na Virgem Maria no momento da mudança e no percurso de uma vida longe da sua terra natal.
Fátima continua a ser para os migrantes, reduto de fé, lugar de súplica e de gratidão a Deus, símbolo de confiança na Virgem Maria e compromisso com o Evangelho, acolhido e testemunhado frequentemente com verdadeiro espírito de missão e autêntico heroísmo. Por isso, tínhamos saudades e viemos hoje, vimos sempre e partimos sempre com saudades, mas levando novo ânimo para continuar a peregrinação da vida sob a proteção da Mãe de Deus e nossa querida Mãe.
O nosso povo migrante, mesmo em contexto de secularismo, nunca deixou de invocar e honrar Nossa Senhora de Fátima em todos os cantos do mundo e sempre encontrou no seu Coração Imaculado um refúgio e um caminho para Deus. O povo migrante crê que Nossa Senhora de Fátima o ajudou a aguentar a dureza da vida e foi o auxílio sem o qual não conseguiria guardar a fé, mesmo que, frequentemente, sofra por não conseguir transmiti-la aos seus filhos e aos seus netos.
Agradecemos à Virgem Maria por ter indicado o caminho da fé aos Pastorinhos de Fátima e agradecemos aos Pastorinhos por nos mostrarem o Coração Imaculado de Maria como o nosso refúgio, o lugar em que encontramos a consolação de Deus e em que se guarda a fé como o mais precioso tesouro.
A atualidade continua marcada pelas migrações dos portugueses, embora, em muitos casos, as modalidades e motivações sejam bem diferentes. É sempre difícil sair da sua terra, mesmo que se saiba que as novas gerações, os jovens, têm outras perspetivas de vida, estão menos presos ao território em que nasceram e cresceram. Os jovens assumem que a sua casa é o mundo e, no dinamismo da mobilidade que os carateriza, dispõem-se a estar em cada momento onde a vida os levar.
No entanto, a mobilidade humana nem sempre acontece por estes motivos ou por uma decisão livre e isenta de constrangimentos. Persiste, nos nossos jovens, a necessidade da mudança não desejada por motivo de estudo, de investigação, de trabalho em condições favoráveis, de procura de realização mais adequada aos seus ideais de vida.
Por sua vez, chegam ao nosso país populações provenientes de outros lugares e contextos culturais e religiosos, uns pelos mesmos motivos que levam os portugueses a sair, e outros, muitos outros, a fugir dos flagelos da pobreza ou da guerra, à busca de novas oportunidades de vida que não encontram nas suas origens.
Também para estes que chegam, o desenraizamento e a entrada numa realidade nova são motivos de não poucas dificuldades. Também os que chegam trazem saudades da sua terra, da sua família, dos lugares e pessoas que lhes asseguram proteção e segurança, cuidado e aconchego, elementos indispensáveis para o equilíbrio pessoal, familiar e comunitário, emocional e social. Também os que chegam, têm de enfrentar a novidade do desconhecido em terra estrangeira como fonte de apreensões e, não raro, de imensa solidão.
Na sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o Papa Francisco faz alusão à experiência do povo bíblico como imagem da nossa vida de peregrinos. Refere-se à certeza de fé que levavam na mente e no coração: Deus caminha com o Seu Povo! Depois fala de duas condições necessárias para que esta peregrinação ou migração sejam caminho de bem-estar e felicidade: uma luz que nos guia e uma casa para habitar. Segundo a narração bíblica, o Povo de Deus era conduzido pela coluna de fogo no meio da desorientação e via na tenda da reunião o sinal da presença e da companhia de Deus, o sinal do encontro.
Estas imagens, a da luz e a da tenda ou da casa, continuam a falar-nos das condições essenciais para a feliz peregrinação humana e para o percurso mais livre ou menos livre, porventura mesmo indesejado e forçado, de todos os migrantes.
No princípio há sempre um sonho, uma luz: ele pode nascer da ousadia pessoal, do desejo de chegar mais longe, da ânsia de melhorar a vida e do desejo de realização humana mais plena; esse sonho pode também nascer no meio das situações deploráveis diante das quais não é possível a resignação, por porem em causa o bem das pessoas e das famílias. Há sempre uma luz que se acende, que leva a iniciar um novo caminho e a desejar percorrê-lo com segurança.
Enquanto no passado, migrar era ir para o desconhecido, devido à falta de informação, hoje, o desenvolvimento dos meios de comunicação num mundo global, ajuda a tornar mais clara esta luz, e permite conhecer situações, condições, culturas, lugares e formas de sonhar com os pés mais assentes na terra. Recordamos exemplos de migrantes que foram à frente e tudo fizeram para abrir caminho a outros, mandando cartas de chamada, arranjando trabalho, preparando habitação – e foram autênticas luzes de esperança para familiares e conterrâneos.
No entanto, conhecemos também o fenómeno das fugazes pequenas luzes de esperança que se acendem diante dos mais pobres e indefesos nas regiões mais esquecidas ou mais martirizadas do planeta. Algumas dessas luzes transformam-se em negras sombras. O mundo tem notícia da existência de muitos rostos escondidos que, sem escrúpulos, prometem paraísos aos pobres das periferias do mundo. Por detrás de uns milhares de euros ou de dólares, os rostos dos que inicialmente se apresentam como bons samaritanos, acabam por revelar-se rostos de cruéis malfeitores, que abandonam homens, mulheres e crianças caídos à beira do caminho ou os entregam à sua sorte nas vagas do mar, sem esperança e sem futuro, prelúdio de morte ou de embate contra a dura realidade que os espera na praia.
Todos precisamos de uma luz. A luz de Deus vai à frente, acompanha e guia a partir da fé e do amor derramado nos nossos corações. Os seus reflexos hão de ser as pequenas luzes dos homens e dos Estados, que acompanham, protegem e ajudam a rasgar horizontes de esperança aos mais vulneráveis, como são os exilados, refugiados e migrantes.
A segunda imagem é a da tenda ou a da casa. Esta, a casa, é a habitação digna e necessária essencial à família, mas é também a inserção na sociedade, o acolhimento e respeito mútuos; inclui o trabalho, o mundo das relações humanas e sociais que dão novo sabor à vida. A casa é o lugar do encontro, da amizade, da partilha, da família e do amor; é o lugar onde nos sentimos bem, onde somos considerados e nos sentimos pessoas.
Quantas vezes ouvimos dizer aos migrantes: já tenho casa, já tenho trabalho, já conheço pessoas que estimo e me querem bem, já estou integrado, já me sinto em casa! Porém, aquilo que se espera, por vezes não acontece: a casa, a sociedade, torna-se um lugar de rejeição; a comunidade, um lugar de discriminação; o trabalho, um meio de exploração.
A casa dos homens é também casa de Deus, lugar de encontro e de partilha dos dons recebidos; a casa é também este planeta criado pelo Altíssimo por amor e que deve oferecer a todos a concretização da esperança que alimenta a vida. Mesmo que dentro ou fora se extingam estes sinais, nunca faltará o apelo a edificarmos uma casa comum de encontro, de fraternidade e de paz, porque Deus não desiste de acompanhar aqueles que criou.
Deus caminha com o Seu povo e nós, que somos seus membros, recebemos a missão de caminhar com Ele e com os irmãos, na justiça e na caridade, no respeito pela liberdade religiosa, ancorados na justa legalidade e sempre com a mais profunda humanidade.
A Palavra de Deus há pouco escutada falava-nos da peregrinação de Jesus sobre a terra. Depois de morrer e ressuscitar, manifestou a luz da Sua glória, elevou-se à vista dos discípulos e deixou-lhes a missão de serem suas testemunhas até aos confins da terra. Naquele momento iniciou a peregrinação universal dos discípulos de Cristo, animados pelo Espírito Santo que desceria sobre eles e fortalecidos pela oração em que perseveravam com Maria.
Ao longo do tempo da Igreja, Cristo foi apresentado e oferecido ao mundo como a luz dos povos, tal como afirmou o Concílio Vaticano II. Esse anúncio constitui a vocação e a missão da Igreja ainda hoje: revelar o rosto luminoso de Cristo, porventura escondido aos nossos olhos pela nuvem da incredulidade e dos obstáculos culturais que se interpõem entre Ele e nós.
O Apóstolo Paulo aludia à complementaridade de todos os que receberam a luz de Cristo e acolhem os dons do Espírito Santo, quando se trata de edificar o Corpo de Cristo. Elenca muitos aspetos que havemos de ter em conta, pondo ao serviço uns dos outros os dons que recebemos, e conclui pedindo-nos que pratiquemos generosamente a hospitalidade.
Quem tem Cristo como luz e lhe confia a condução da sua vida, trabalha em favor da hospitalidade, ou seja, dispõe-se a receber com alegria os irmãos na casa que é a sua terra, a sua cultura, a sua Igreja, a sua economia, o seu trabalho, a sua convivência e a sua amizade.
A comunidade dos discípulos ficou no mundo para anunciar Cristo como a luz dos povos e para abrir as portas da casa de Deus aos que precisam de esperança, de amor e de paz e, livremente, queiram entrar nela. Nessa casa têm lugar Maria e têm lugar os irmãos, os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática. Não temos ideal maior do que o de habitar na casa de Deus, com Maria como Mãe e com os homens como irmãos.
Nossa Senhora do Rosário de Fátima, elevamos para vós o nosso hino de louvor e gratidão por nos oferecerdes Jesus como a luz do mundo e a luz da humanidade; nós vos bendizemos nos acompanhardes na Igreja, casa de Deus e casa da humanidade.
Pedimos que acompanheis os nossos caminhos, guiados pela luz de Deus, que nos acolhais no vosso regaço de Mãe da Humanidade e que nos ajudeis a ser irmãos dos que chegam e dos que partem, pois nesta vida somos todos migrantes, somos todos peregrinos.
Pedimos finalmente que nos ajudeis a acabar com a guerra que destrói e mata, e que nos ajudeis a construir um mundo de paz, vós que sois a Rainha da Paz.
Santuário de Fátima, 13 de agosto de 2024
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra