1.
Atravessamos uma época de profundas e rápidas transformações, de renovação
e, por vezes, inversão de valores, de alteração dos comportamentos, de
mudança de instituições e, tantas vezes, de confusão de ideias e de
ideais.
Nunca, no entanto, se viveu à face da Terra, com tanta liberdade e com
tanta abundância; nunca também circulou tamanha torrente de informação...
Vivemos, por isso um tempo em que fervilham contradições várias.
Mas na qual, com avanços e recuos, vamos, creio, evoluindo caminho à
perfeição.
2. Muitas vezes se afirma que a presente época é de crise, sobretudo crise
de valores. Talvez estejamos perante um recuo conjuntural e passageiro.
Talvez a evolução implique sempre precipitações, dúvidas, erros,
ajustamentos.
É certo que, em geral, e no domínio da natureza, não surgem problemas de
valores, de moralidade ou de justiça.
Na Natureza, as regras são imutáveis e perpétuas, claras e coerentes. Tudo
flui com naturalidade. Mesmo a patologia.
Contudo, é relativamente ao próprio Homem que surge algo de
verdadeiramente novo; a aferição emocional e racional do sentido ético dos
seus actos em particular e dos comportamentos humanos em geral.
E a ética, se bem que imutável nos seus esteios fundamentais, é sempre
referida a um concreto e determinado contexto cultural, social e temporal.
Por isso, e na ética, as regras são flexíveis, progressivas, muitas vezes
obscuras, mal formuladas ou incompreendidas, tantas vezes inconsequentes,
incómodas ou simplesmente desprezadas
3. As duas perspectivas, natural e moral, interpenetram-se e são, hoje,
indissociáveis.
Queiramos ou não, somos solidários com o Universo e dele participamos.
Por muito que queiramos ou tentemos isolar-nos ou esquecer, vivemos e
coexistimos todos no mesmo ecossistema.
Daí o reflexo das nossas pequenas acções na camada do ozono, na poluição
dos mares e da atmosfera, na preservação das espécies, no possível
esgotamento das reservas do globo, enfim, na preservação da Natureza em
geral e do Humanidade em particular.
Vivemos numa permanente tensão entre a capacidade criadora e a
potencialidade destruidora do Homem em si mesmo considerado ou como animal
social, inserido que está hoje num espaço limitado e cada vez menos
considerado como ilimitado, inesgotável ou indestrutível.
3. As leis, as normas instituídas pelos Homens, pelos seus poderes,
constituem um elemento indispensável à existência, organização e
funcionamento, enfim à subsistência e sobrevivência de qualquer indivíduo
e sociedade.
Porém, essas normas, essas leis, tanto podem servir o campo da justiça, da
segurança e da eficácia, como o da injustiça, o do caos, o da inércia.
Daí que se justificou inteiramente a discussão pública, que se prolongou
nos últimos tempos– e que não se esgotou com o resultado do primeiro
referendo realizado em Portugal, da admissibilidade ou não do aborto
livre, recente e eufemisticamente redenominado interrupção voluntária da
gravidez.
4. Toda a problemática do aborto é extremamente complexa, sobretudo se se
partir da perspectiva do drama concreto de cada caso.
Mas também será extremamente simples de compreender se se perspectivarem
os valores em confronto: a vida, direito fundamental sem o qual todos os
restantes são mera letra morta, e os demais.
E como foi dito por Fernando Maymone Martins “a vida do bebé tem sido a
grande ausente da querela mediática, quando devia ser o centro...
Retirando de cena o protagonista, é lógico que se instale a confusão”.
Com que coerência se permite e incentiva, a morte de um ser humano em
gestação quando, por outro lado, se pretende proteger a biodiversidade e a
preservação das espécies? Como se defende o aborto e ao mesmo tempo se
estabelecem defesos para a caça ou limitações à actividade da pesca e se
guerreia para “salvar o lince da Serra da Malcata” ou proteger a
“nidificação das aves do Estuário do Tejo”? Como é que se aceita que um
golfinho ou uma baleia, uma perdiz ou uma cegonha, um salmão ou um atum,
valha mais que uma vida humana única e irrepetível?
Se estas questões talvez não venham de todo a despropósito, já a pergunta
que o referendo nos colocou era, na minha modesta opinião, capciosa e
induzia a resposta afirmativa.
Talvez para surpresa de muitos ganhou o “Não” ao aborto livre. Que foi um
“Sim” à Vida. E isto apesar de muitos mais terem considerado que a Vida,
apesar de tudo, não era, afinal, referendável.
Até porque como foi dito por António Gentil Martins “biologicamente a
vida é um todo contínuo, de que a permanência no ventre materno não é mais
do que um estádio, ao qual se seguirão os da infância e da adolescência,
até se atingir a maturidade e a idade adulta, tudo terminando,
naturalmente, na velhice e na morte”.
5. A Vida vive-se. A Vida respeita-se. A Vida protege-se.
As ameaças à Vida repudiam-se. As afrontas concretas à Vida punem-se.
As violações da Vida, sobretudo da Vida Humana, são intoleráveis e não
devem ser ilibadas ou menosprezadas, muito menos liberalizadas, porque são
a manifestação mais grave do egoísmo e do ímpeto destruidor do Homem, da
sua falta de respeito pela liberdade do Outro.
E o Homem só vale pelo que vale ao Homem.
6. Por isso, a não punição do aborto é uma porta aberta à violação da
vida. A permissão do aborto é um livre trânsito para a morte.
O aborto provocado é, numa palavra, morte, morte intencionalmente
infligida, morte quase sempre injustificada, morte muitas vezes
indesculpável.
O aborto como direito é um absurdo e um contra-senso, um violento recuo na
protecção dos Direitos do Homem, bem mais subtil, mais grave e mais
perverso que a instituição e a manutenção da eutanásia, da pena de morte e
do regime de escravatura.
Mais subtil porque à evidência científica de vida humana antes do
nascimento contrapõem os defensores da barbárie pseudo razões de saúde
pública, fracos argumentos de natureza económica, tristes desculpas de
cariz social, irreais projecções estatísticas, intrincados raciocínios de
índole jurídica e verdadeiras imbecilidades como a de que “a mulher é dona
do seu corpo”, como se fosse isso que estivesse aqui em causa.
Mais grave, porque, sendo unanimemente aceite que toda a vida humana é
inviolável, o aborto permite a matança de vidas humanas inocentes e
indefesas, pois que lhes é aplicada pena capital injusta e irreversível a
que são sujeitos sem que nada possam fazer em sua defesa e sem qualquer
argumento sério ou pelo menos mais forte que o justifique.
Mais perverso, porque avilta a liberdade de quem a invoca e a não concede
a quem dela tem um direito absoluto e inalienável.
7. O aborto é, por isso, o mais grave dos atentados aos mais fundamentais
Direitos do Homem. E ao Estado cabe prevenir e reprimir as ofensas à
pessoa humana e proteger os direitos fundamentais de todos, especialmente
dos mais fracos.
É que o feto, mesmo nas primeiras dez semanas, é um ser humano em
gestação, único e irrepetível. Com a sua individualidade genética e
autonomia pessoal, bem marcada face aos progenitores que o geraram,
responsavelmente ou não, intencionalmente ou não.
É beleza e inocência, é também fragilidade e dependência, mas é por certo
diferença e pujança, crescimento e esperança; é, enfim, Vida no que a Vida
tem de mais alegre e mais puro.
O feto é pessoa, é Vida Humana; não é Homem ou Mulher em potência, é Homem
ou Mulher em crescimento.
Tem toda a legitimidade para ver a sua sobrevivência assegurada. É a
viabilidade e a dignidade da pessoa humana que está em causa. Tão-só.
Feto fui eu, feto foste tu, feto fomos todos e cada um de nós.
Respeitemo-nos, pois, respeitando o Outro.
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