Estou sentada a olhar para uma fotografia dos meus
filhos e sobrinhos tirada há quase dezoito anos. São treze ao todo.
O meu filho mais velho tem um bebé nos braços, a mais nova nessa
altura. Hoje a minha mãe tem vinte e um netos e seis bisnetos.
Durante vários anos o Pedro aparece nas fotografias que a minha mãe
insistia em tirar sempre que os conseguia juntar, com um bebé nos
braços. Tudo isto é normal em famílias grandes, mas o que não é tão
comum é que estão todos a rir e transmitem, através das posições e
da maneira como estão encostados uns aos outros, uma alegria em
estarem juntos, uma solidariedade que felizmente perdura ainda
hoje. Se uma família é uma célula da sociedade podíamos esperar
que esse sentimento de solidariedade, de entreajuda, essa alegria de
pertencer à mesma grande família de portugueses, também existisse no
país. Claro que todas as famílias têm os seus desencontros, nenhuma
é “ideal”, mas nalgumas a vontade de resolver esses desencontros,
nunca esquecer que somos irmãos, como diz o Vasco, meu marido, acaba
por se sobrepor às zangas. Durante este último ano a grande
família portuguesa tem vivido momentos particularmente difíceis;
problemas financeiros, desemprego, escândalos, segredos de justiça
que não são respeitados e agora toda a discussão à volta desse tema
tão pesado que é o aborto. A família que já se sentia tão insegura
ficou dividida, seus membros virados uns contra os outros com
posições extremadas, e esqueceu-se dos laços de irmandade que a
unia. Mas será que a família está tão dividida ou será que é essa a
imagem transmitida por alguns elementos da comunicação social que
exploram o tema de uma maneira superficial, encorajando o conflito e
não o diálogo sério, de tal maneira que muitos desligam a TV e o
rádio e fecham os jornais quando ouvem ou vêem a palavra
aborto. No tempo dos romanos o aborto era prática livre e, após o
nascimento, uma criança só adquiria identidade quando o pai lhe
pegasse ao colo. Se isso não acontecesse a criança era posta de lado
para morrer. Hoje parece que nos querem convencer que o bebé ainda
por nascer só tem identidade, e direito à vida, se a mãe o aceita.
Fala-se pouco ou nada no pai. Aflige-me que nas escolas e nos
colégios, muitos deles católicos, onde costumo fazer acções de
educação sexual, a maior parte dos alunos dizem abertamente e com
convicção, que basta que uma criança não seja desejada para se
justificar o aborto. O direito à relação sexual e ao prazer não se
questiona, mas não se admite que a vida fique “estragada” por uma
gravidez. O que será de uma geração que só faz aquilo que
deseja? Aflige-me que, mil e quinhentos anos após os romanos, se
continue a ver o aborto como uma solução para uma gravidez
problemática, que em nome da liberdade da mulher se crie uma
clivagem entre mãe e filho, entre pai e filho, entre homem e mulher.
Aflige-me a esquizofrenia que muitos são obrigados a sofrer ao
negarem a existência de vida quando o filho não é desejado, para
depois vibrarem com a primeira ecografia do filho
desejado. Aflige-me a manipulação da opinião pública que ocorre
em torno de julgamentos, tornando impossível um diálogo sereno,
sensato, fundamentado na ciência e em reflexões éticas e
filosóficas. O aborto por si não resolve o problema que levou a
mulher a abortar; a pobreza, a relação complicada continuam. Basta
olhar para os países onde o aborto foi liberalizado para ver que os
problemas sociais que o aborto livre supostamente resolvia,
continuam a existir. Muitos dos países que liberalizaram o aborto há
anos, discutem agora a legalização da eutanásia. As propostas de
liberalização do aborto (aborto a pedido) pedem que este seja livre
até às dez ou doze semanas. E depois? Porque não até às dezasseis ou
até às vinte e quatro semanas (seis meses)? Uma família que não
cuida dos seus membros mais novos e mais fracos não investe no seu
futuro.
Mary Anne d’Avillez
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