2. Só em Jesus Cristo a corporeidade de Deus se torna clara e
acessível. “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós e nós
vimos a Sua glória” (Jo. 1,14). A corporeidade de Deus, em
Jesus Cristo, é decisiva para que o homem atinja a plenitude
da comunhão de amor, porque a sua união ao Corpo de Deus, em
Jesus Cristo, eleva e transforma a sua própria corporeidade. A
encarnação de Deus, em Jesus Cristo, que ao acontecer no
tempo, constitui a plenitude do tempo humano, está suposta e
subjacente em toda a revelação do amor de Deus pelos homens. O
próprio Antigo Testamento é incompreensível sem o mistério da
corporeidade de Deus.
A
História da Salvação é a revelação do desígnio insondável de
amor de Deus pelos homens, que se manifestou e radicalizou em
Jesus Cristo. Mas a realidade de Jesus Cristo ilumina todo
esse desígnio eterno, em acção desde a criação do mundo. São
Paulo chama-lhe um “mistério escondido, desde sempre, em Deus,
o criador de todas as coisas” (Ef. 5,9) e não hesita em situar
Jesus Cristo, Verbo divino feito Homem, como agindo no início
da criação (cf. Col. 1,15). A possibilidade de Deus amar,
corporalmente, em Jesus Cristo, está subjacente a toda a
História da Salvação.
É
o sentido profundo da simbologia do “Deus esposo”. Nos
profetas, a imagem mais expressiva do amor de Deus pelo seu
povo, é o amor esponsal. É por isso que a Páscoa de Jesus, já
na plenitude da capacidade expressiva da corporeidade de Deus,
no Corpo de Jesus cristo, é apresentada como a plena
realização dessa aliança nupcial entre Deus e o Seu Povo,
porque aí o dom do próprio Corpo, na Eucaristia e na Cruz, é a
expressão definitiva do amor salvífico de Deus.
A
encarnação de Deus em Jesus Cristo é a única forma de
corporeidade de Deus admitida no Antigo Testamento. É
totalmente proibido fazer figurações humanas de Deus, porque a
única figura humana de Deus será o Seu Verbo encarnado. Os
“ídolos” são rejeitados, não por serem representações de
Deus, mas por não serem vivos. “Têm boca e não falam, têm
olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem” (Ps.113). Só Cristo
será o Vivo. “Ele era a vida de todos os seres e a vida era a
luz dos homens” (Jo. 1,4). A Sua ressurreição constituirá a
manifestação plena da vida divina num corpo humano. Nela
readquire sentido toda a corporeidade humana.
O Corpo como sacramento do amor
3.
Em Cristo o corpo humano atinge a plenitude do seu
significado: ele exprime o dom total da pessoa. E essa
plenitude de sentido acontece na Páscoa de Jesus. Nela, o
nosso corpo atinge, também, a sua plenitude de sentido. A
Páscoa consiste nisso: a plenitude do dom de amor do próprio
Cristo, a Deus Pai e aos homens seus irmãos. E isso exprime-se
no dom total e radical do Seu próprio corpo, expressão da sua
vida. Cristo tinha de morrer; tinham de Lhe tirar a vida para
se tornar claro que Ele a oferecia. E no seu drama, Ele
exorcizou o drama humano da morte. Esta pode ser o dom total
do próprio corpo, como semente de uma vida definitiva. Em
Cristo, a morte e a ressurreição constituem uma unidade
inseparável. O Seu corpo de ressuscitado, primícias da nova
humanidade, é o princípio da redenção do nosso próprio corpo,
tornando-o definitivamente capaz do amor.
A
Eucaristia, sacramento da morte e da ressurreição de Jesus, é
a expressão perene deste dom contínuo que Cristo faz do Seu
corpo, por amor e para o amor. E porque unidos a Ele, fazendo
com Ele um só corpo, podemos oferecer, por amor, os nossos
próprios corpos a Deus e aos irmãos. “Isto é o Meu Corpo, que
vai ser entregue por vós” (Lc. 22,19). Ou no relato de Paulo:
“Isto é o Meu Corpo, que é para vós” (1Cor. 11,24). A
experiência eucarística permite aos homens consciencializar
que os seus corpos se unem ao Corpo de Cristo ressuscitado
fazendo um só corpo: “O Pão que comemos não é uma comunhão no
Corpo de Cristo? Porque há um só pão, nós formamos um só
corpo” (1Cor. 10,16). A Eucaristia reúne todos os cristãos num
só corpo, que é o Corpo de Cristo, tal como o matrimónio une o
homem e a mulher num só corpo: “é por isso que o homem deixa o
seu pai e a sua mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois
um só corpo”. No sacramento do matrimónio, esta união dos
esposos num só corpo é feita no Corpo de Cristo ressuscitado.
À
oferta do Senhor que nos diz: isto é o Meu Corpo que é para
vós, toda a Igreja e cada cristão devem responder: eis o nosso
corpo que é para Ti. Isto di-lo a Igreja em cada Eucaristia;
dizem-no os esposos em cada expressão da sua união de amor;
di-lo cada cristão em tantos momentos da sua vida. São Paulo
lembra aos cristãos de Corinto, que mesmo na sua expressão
sexual, “o corpo é para o Senhor e o Senhor é para o corpo”
(1Cor. 6,13). O amor conjugal e a expressão sexual do amor
são, apenas, mais uma expressão da caridade; e esta reúne
todas as expressões de dom da nossa vida, ao Senhor e aos
irmãos. Dom do Espírito, ela exprime-se no corpo, ele próprio
transformado pela semente da ressurreição. Entre o amor
conjugal e a Eucaristia há um traço comum misterioso: ambos se
tornam possíveis pelo dom que Cristo nos faz do seu próprio
corpo, convidando-nos a fazermos dom do nosso: eis Senhor, o
meu corpo, que é para vós.
As múltiplas expressões corporais da caridade
4.
Não reduzamos à expressão sexual a capacidade do nosso corpo
exprimir a caridade. São incontáveis os momentos e as
circunstâncias em que o nosso corpo se torna sacramento do
amor e expressão da caridade. Lembremos apenas algumas delas,
pela universalidade de que se revestem na experiência humana:
*
A ternura: é a expressão do amor que mais valoriza a
contemplação e a solicitude pelo outro. Trata-se de olhar o
outro, de o tocar para o sentir, perceber e acolher. Só num
amor terno se penetra o insondável mistério do outro. Sem
ternura, o outro continuará a ser, para mim, um desconhecido.
Toda a revelação, enquanto abertura ao outro do mais profundo
do ser, é expressão de ternura e só é possível na ternura. Só
esta constrói intimidade. É mais universal do que a
conjugalidade, pois eu posso amar com ternura todas as pessoas
com quem me cruzo. É na ternura que o amor toca a beleza.
É
por isso que ela exprime a solicitude atenciosa pelo outro. Na
Sagrada Escritura esta é uma das descrições possíveis do amor
de Deus, sobretudo quando Ele se compara ao pastor, na sua
solicitude pelas ovelhas. A ternura é simples nas suas
expressões, intensa na intimidade que gera, gratuita e
generosa nas intenções, é experiência de encantamento pela
beleza do outro.
* A oração e o louvor: manifestações dos sentimentos
mais íntimos da minha relação com Deus, elas têm uma expressão
corpórea, em que cada gesto ou atitude exprimem um sentimento.
Se me calo, procuro o recolhimento; se canto ou danço,
manifesto a minha alegria; se toco ou me deixo embalar pela
música, desejo a harmonia; se me prostro, manifesto a total
submissão ao meu Deus; se elevo os braços, é porque brota do
meu coração uma súplica; se ponho as mãos, exprimo a humildade
de quem pede com confiança; se choro, declaro a minha dor; se
sorrio com todo o ser, é sinal de que a alegria me inundou o
coração. Como poderíamos exprimir tudo isto sem corpo? Mas
poderia o nosso corpo ter expressões tão belas, sem a
intensidade do espírito?
* O sofrimento e a dor. Se há algo que se sente no
corpo é a dor. Mas só a densidade espiritual transforma a dor
humana em sofrimento. Oh! como é possível amar, sofrendo, se a
dor é oferecida por amor. A dor sente-se no corpo e
proporciona-nos a circunstância de o oferecer a Deus, dizendo
ao Senhor: este é o meu corpo, que é para Vós. É insondável a
força transformadora do sofrimento oferecido e amado. Talvez
ele seja a alavanca silenciosa que sustenta o mundo.
* A morte oferecida e vivida. A morte é, também, uma
expressão corporal de amor, de confiança, de abandono. É por
isso que, na tradição cristã, ela é a porta que nos introduz
na vida e na harmonia definitivas. Também aí eu digo ao
Senhor, em união com Cristo: eis o meu corpo, toma-o para Ti.
Esta dimensão ganha um relevo sublime, no martírio como vida
oferecida. Cito-vos, a este propósito, o testemunho de um
Mártir Judeu, Aquiba, no ano 135 depois de Cristo. Antes de
ser morto exclama: “Amei-O com todo o meu coração, com toda a
minha fortuna; mas não tinha tido ainda a ocasião de O amar
com toda a minha alma. Chegou esse momento”. Toda a morte
cristã se pode revestir da grandeza do martírio, se morrermos
em Cristo.
Poderíamos referir, ainda, todas as lutas movidas pelo amor:
pela paz e pela justiça, pela honestidade e pela verdade, pela
defesa dos oprimidos e alívio dos que sofrem. Só com o dom do
próprio corpo se edificará um mundo novo. Quem quiser salvar a
sua vida, acabará por perdê-la, quem aceitar perdê-la,
salvá-la-á. O dom do corpo significa o dom da vida e a
radicalidade do dom será sempre a expressão da plenitude do
amor.
5. A união conjugal é, apenas, uma expressão desta
aprendizagem da caridade, tornada possível pela ressurreição
de Cristo. É uma expressão de amor que assume e resume todas
as possíveis expressões corpóreas do amor. Tornada possível
pela graça pascal (sacramento do matrimónio), os esposos
aprendem com o Senhor a dizer um ao outro: eis o meu corpo, é
para ti, para podermos ser um só corpo, que é para o Senhor.
Conduzida pela ternura, força criadora de toda a intimidade,
ela pode incluir o sofrimento e a dor, a oração e a
contemplação, e desabrochar em dinamismo de amor fraterno e de
construção de um mundo novo. A própria experiência de êxtase
que ela proporciona é o anúncio de uma plenitude de amor, que
agora é apenas prometida e desejada.
Neste mistério do amor não podemos ficar prisioneiros das
análises culturais: saber quantos noivos guardam a virgindade
para o seu esposo, quantos esposos são infiéis, em que idade
os jovens iniciam a sua vida sexual, num objectivo escondido
de mostrar que o ideal cristão falhou. Todas essas realidades
são sintomas de uma sociedade que procura a vida, mas ainda
não descobriu o caminho que leva a ela. É que o nosso corpo,
se exprime o amor, pode também exprimir, dolorosamente, o
fracasso e a desilusão. Oxalá ele possa ser, ao menos, a
linguagem de um desejo e de um ideal.
Lisboa, 29 de Novembro de 2003
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca