Veneráveis Irmãos e caríssimos Filhos e
Filhas, saúde e Benção Apostólica!
I
INTRODUÇÃO
Um sinal dos tempos
1. A DIGNIDADE DA MULHER e a sua vocação —
objecto constante de reflexão humana e cristã — têm
assumido, em anos recentes, um relevo todo especial. Isso
é demonstrado, entre outras coisas, pelas intervenções
do Magistério da Igreja, reflectidas nos vários
documentos do Concílio Vaticano II, que afirma em
sua Mensagem final: «Mas a hora vem, a hora chegou, em que
a vocação da mulher se realiza em plenitude, a hora em que
a mulher adquire no mundo uma influência, um alcance, um
poder jamais alcançados até agora. Por isso, no momento em
que a humanidade conhece uma mudança tão profunda, as
mulheres iluminadas do espírito do Evangelho tanto podem
ajudar para que a humanidade não decaia».(1) As
palavras desta Mensagem retomam o que já fora expresso
no Magistério conciliar, especialmente na Constituição
pastoral Gaudium et Spes (2) e no Decreto sobre o
apostolado dos leigos, Apostolicam Actuositatem.(3)
Tomadas de posição semelhantes
verificaram-se no período pré-conciliar, por exemplo em
não poucos discursos do Papa Pio XII (4)e na
Encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII.(5)
Após o Concílio Vaticano II, o meu predecessor Paulo VI
explicitou o significado deste «sinal dos tempos»,
conferindo o título de Doutor da Igreja a Santa Teresa de
Jesus e a Santa Catarina de Sena, (6) e instituindo, além
disso, a pedido da Assembleia do Sínodo dos Bispos em
1971, uma
Comissão especial cuja finalidade era estudar os
problemas contemporâneos concernentes à «promoção
efectiva da dignidade e da responsabilidade das mulheres».
(7) Num de seus Discursos, o Papa Paulo VI declarou, entre
outras coisas «No cristianismo, de fato, mais que em
qualquer outra religião, a mulher tem, desde as origens,
um estatuto especial de dignidade, do qual o Novo
Testamento nos atesta não poucos e não pequenos aspectos
(...); aparece com evidência que a mulher é destinada a
fazer parte da estrutura viva e operante do cristianismo
de modo tão relevante, que talvez ainda não tenham sido
enucleadas todas as suas virtualidades».(8)
Os Padres da recente Assembleia do Sínodo
dos Bispos (Outubro de 1987), dedicada à «vocação e missão
dos leigos na Igreja e no mundo vinte anos após o Concílio
Vaticano II», voltaram a ocupar-se da dignidade e da
vocação da mulher. Auspiciaram, entre outras coisas, o
aprofundamento dos fundamentos antropológicos e teológicos
necessários para resolver os problemas relativos ao
significado e à dignidade do ser mulher e do ser homem.
Trata-se de compreender a razão e as consequências da
decisão do Criador de fazer existir o ser humano sempre e
somente como mulher e como homem. Somente a partir destes
fundamentos, que consentem colher em profundidade a
dignidade e a vocação da mulher, é possível falar da sua
presença activa na Igreja e na sociedade.
É disso que entendo tratar no presente
Documento. A Exortação pós-sinodal, a ser publicada a
seguir, apresentará as propostas de índole pastoral
relativas ao lugar da mulher na Igreja e na sociedade,
sobre as quais os Padres sinodais teceram importantes
considerações, tendo avaliado também os testemunhos dos
Auditores leigos — mulheres e homens — provenientes das
Igrejas particulares de todos os continentes.
O Ano Mariano
2. O último Sínodo realizou-se durante
o Ano Mariano, que oferece um incentivo particular
para tratar do tema presente, como o indica também a
Encíclica
Redemptoris Mater. (9) Esta Encíclica desenvolve e
actualiza o ensinamento do Concílio Vaticano II, contido
no capítulo VIII da Constituição dogmática sobre a Igreja,
Lumen Gentium. Esse capítulo traz um título
significativo: «A Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de
Deus, no mistério de Cristo e da Igreja». Maria — esta
«mulher» da Bíblia (cf. Gen 3, 15; Jo
2, 4; 19, 26) — pertence intimamente ao mistério salvífico
de Cristo, e por isso está presente de modo especial
também no mistério da Igreja. Porque «a Igreja é em Cristo
como que o sacramento... da íntima união com Deus e da
unidade de todo o género humano», (10) a presença
especial da Mãe de Deus no mistério da Igreja nos consente
pensar no vínculo excepcional entre esta «mulher» e
toda a família humana. Trata-se aqui de cada um e de
cada uma, de todos os filhos e de todas as filhas do
género humano, nos quais se realiza, no curso das
gerações, aquela herança fundamental da humanidade
inteira que está ligada ao mistério do «princípio»
bíblico: «Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de
Deus o criou, homem e mulher os criou» (Gen 1, 27).
(11)
Esta verdade eterna sobre o
homem, homem e mulher — verdade que está imutavelmente
fixada também na experiência de todos — constitui ao
mesmo tempo o mistério que só «se torna claro
verdadeiramente no Verbo encarnado... Cristo manifesta
plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua
altíssima vocação», como ensina o Concílio. (12) Neste
«manifestar o homem ao próprio homem» não será talvez
preciso descobrir um lugar especial para a «mulher» que
foi a Mãe de Cristo? A «mensagem» de Cristo,
contida no Evangelho e que tem como pano de fundo toda a
Escritura, Antigo e Novo Testamentos, não poderá talvez
dizer muito à Igreja e à humanidade sobre a dignidade e a
vocação da mulher?
Este quer ser precisamente o fio condutor
do presente Documento, que se enquadra no amplo contexto
do Ano Mariano, enquanto nos encaminhamos para o final do
segundo milênio do nascimento de Cristo e o início do
terceiro. E parece-me que o melhor seja dar a este
texto o estilo e o carácter de uma meditação.
II
MULHER - MÃE DE DEUS
(THEOTÓKOS )
União com Deus
«Ao chegar a plenitude dos tempos,
enviou Deus o seu Filho, nascido duma mulher». Com
estas palavras da Carta aos Gálatas (4, 4), o
Apóstolo Paulo une entre si os momentos principais que
determinam essencialmente o cumprimento do mistério
«preestabelecido em Deus» (cf. Ef 1, 9). O Filho,
Verbo consubstancial ao Pai, nasce como homem de uma
mulher, quando chega a «plenitude dos tempos». Este
acontecimento conduz ao ponto chave da história do
homem sobre a terra, entendida como história da salvação.
É significativo que o Apóstolo não chame a Mãe de Cristo
com o nome próprio de «Maria», mas a defina como «mulher»:
isto estabelece uma concordância com as palavras do
Proto-Evangelho no Livro do Génesis (cf. 3, 15).
Precisamente essa «mulher» está presente no evento
salvífico central, que decide da «plenitude dos tempos»:
esse evento realiza-se nela e por seu meio.
Inicia-se assim o evento central, o
evento chave na história da salvação, a Páscoa do
Senhor. Contudo, vale talvez a pena reconsiderá-lo a
partir da história espiritual do homem entendida no
sentido mais amplo, tal como se exprime nas diversas
religiões do mundo. Recorremos aqui às palavras do
Concílio Vaticano II: «Por meio de religiões diversas
procuram os homens uma resposta aos profundos enigmas
para a condição humana, que tanto ontem como hoje afligem
intimamente os espíritos dos homens, quais sejam: que é o
homem, qual o sentido e fim de nossa vida, que é bem e que
é pecado, qual a origem dos sofrimentos e qual sua
finalidade, qual o caminho para obter a verdadeira
felicidade, que é a morte, o julgamento e retribuição após
a morte e, finalmente, que é aquele supremo e inefável
mistério que envolve nossa existência,
donde nos originamos e para o qual caminhamos. (13)
«Desde a antiguidade até à época atual, encontra-se entre
os diversos povos certa percepção daquela força misteriosa
que preside o desenrolar das coisas e acontecimentos da
vida humana, chegando mesmo às vezes ao conhecimento duma
suprema divindade ou até do Pai. (14)
Sobre o pano de fundo desse vasto
panorama, que põe em evidência as aspirações do espírito
humano em busca de Deus — às vezes a caminhando quase às
apalpadelas» (cf.
At 17, 27) — a «plenitude dos tempos», de que fala
Paulo na sua Carta, põe em relevo a resposta do próprio
Deus, daquele «em quem vivemos, nos movemos e somos»
(cf. At 17, 28). Este é o Deus que «muitas vezes e
de muitos modos falou outrora a nossos pais, nos profetas;
nestes últimos tempos, falou a nós no Filho» (cf. Hebr
1, 1-2). O envio deste Filho, consubstancial ao Pai, como
homem «nascido de mulher», constitui o ponto
culminante e definitivo da autorevelação de Deus à
humanidade. Esta auto-revelação possui um carácter
salvífico, como ensina em outra parte o Concílio
Vaticano II: «Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria,
revelar-Se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério de Sua
vontade (cf. Ef
1, 9), pelo qual os homens, por intermédio do Cristo,
Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai
e se tornam participantes da natureza divina (cf. Ef
2, 18; 2 Pdr 1, 4)». (15)
A mulher encontra-se no coração deste
evento salvífico. A auto-revelação de Deus, que é a
imperscrutável unidade da Trindade, está contida, nas suas
linhas fundamentais, na Anunciação de Nazaré. «Eis
que conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o
nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do
Altíssimo». — «Como se realizará isso, pois não conheço
homem?» — «Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do
Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo
o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus... A
Deus nada é impossível» (cf. Lc. 1, 31-37). (16)
É fácil pensar neste evento na
perspectiva da história de Israel, o povo eleito do
qual Maria descende; mas é fácil também pensá-lo na
perspectiva de todos aqueles caminhos pelos quais a
humanidade desde sempre procura resposta às interrogações
fundamentais e, ao mesmo tempo, definitivas que mais a
afligem. Não se encontra, talvez, na Anunciação de Nazaré,
o início daquela resposta definitiva, mediante a qual
Deus mesmo vem ao encontro das inquietudes do coração
humano?
(17) Aqui não se trata apenas de palavras de Deus
reveladas através dos Profetas; mas da resposta pela qual
realmente «o Verbo se faz carne» (cf. Jo 1, 14).
Maria alcança assim uma tal união com Deus que
supera todas as expectativas do espírito humano.
Supera até mesmo as expectativas de todo Israel e,
particularmente, das filhas deste povo escolhido; estas,
tendo por base a promessa, podiam esperar que uma delas se
tornasse um dia Mãe do Messias. Qual delas, todavia, podia
supor que o Messias prometido seria o «Filho do
Altíssimo»? A partir da fé monoteísta do Antigo
Testamento, isto se tornava dificilmente conjecturável. Só
pela força do Espírito Santo, que «estendeu a sua sombra»
sobre ela, Maria podia aceitar o que é «impossível para os
homens, mas possível para Deus» (cf. Mc 10, 27).
Theotókos
4. Assim a «plenitude dos tempos»
manifesta a extraordinária dignidade da «mulher». Esta
dignidade consiste, por um lado, na elevação
sobrenatural à união com Deus, em Jesus Cristo, que
determina a profundíssima finalidade da existência de todo
homem, tanto na terra, como na eternidade. Deste ponto de
vista, a «mulher» é a representante e o arquétipo de todo
o género humano: representa a humanidade que
pertence a todos os seres humanos, quer homens quer
mulheres. Por outro lado, porém, o evento de Nazaré põe em
relevo uma forma de união com o Deus vivo que pode
pertencer somente à «mulher», Maria: a união entre
mãe e filho. A Virgem de Nazaré torna-se, de facto, a
Mãe de Deus.
Esta verdade, recebida desde o início da
fé cristã, foi solenemente formulada no Concílio de Éfeso
(a. 431). (18) Contrapondo-se à opinião de Nestório, que
considerava Maria exclusivamente mãe de Jesus-homem, este
Concílio salientou o significado essencial da maternidade
da Virgem Maria. No momento da Anunciação, respondendo com
o seu «fiat», Maria concebeu um homem que era Filho
de Deus, consubstancial ao Pai. Portanto, é
verdadeiramente a Mãe de Deus, uma vez que a maternidade
diz respeito à pessoa inteira, e não apenas ao corpo,
nem tampouco apenas à «natureza» humana. Deste modo o nome
«Theotókos» — Mãe de Deus — tornou-se o nome
próprio da união com Deus, concedida à Virgem Maria.
A união singular da «Theotókos» com Deus,
que realiza do modo mais eminente a predestinação
sobrenatural à união com o Pai prodigalizada a todo homem
(«filii in Filio»), é pura graça e, como tal, um
dom do Espírito.
Ao mesmo tempo, porém, mediante a resposta de fé,
Maria exprime a sua livre vontade e, portanto, a plena
participação do «eu» pessoal e feminino no evento da
Encarnação. Com o seu «fiat», Maria torna-se o sujeito
autêntico da união com Deus que se realizou no
mistério da Encarnação do Verbo consubstancial ao Pai.
Toda acção de Deus na história dos homens
respeita sempre a vontade livre do «eu» humano. O mesmo
acontece na Anunciação em Nazaré.
«Servir quer dizer reinar»
5. Este evento possui um carácter
nitidamente
interpessoal: é um diálogo. Não o compreendemos
plenamente se não enquadrarmos toda a conversação entre o
Anjo e Maria na saudação: «cheia de graça». (19) Todo o
diálogo da Anunciação revela a dimensão essencial do
evento: a dimensão sobrenatural (**). Mas a graça
nunca dispensa nem anula a natureza, antes a aperfeiçoa e
enobrece. Portanto, a «plenitude de graça»,
concedida à Virgem de Nazaré, em vista do seu tornar-se «Theotókos»,
significa, ao mesmo tempo, a
plenitude da perfeição daquilo «que é característico da
mulher», daquilo «que é feminino». Encontramo-nos
aqui, em certo sentido, no ponto culminante, no arquétipo
da dignidade pessoal da mulher.
Quando Maria responde às palavras do
mensageiro celeste com o seu «fiat», a «cheia de graça»
sente necessidade de exprimir a sua relação pessoal, a
respeito do dom que lhe foi revelado, dizendo: «Eis a
serva do Senhor» (Lc 1, 38). Esta frase não pode ser
privada nem diminuída do seu sentido profundo, tirando-a
artificialmente de todo o contexto do evento e de todo o
conteúdo da verdade revelada sobre Deus e sobre o homem.
Na expressão «serva do Senhor» transparece toda a
consciência de Maria de ser criatura em relação a Deus.
Todavia, a palavra «serva», quase no fim do diálogo da
Anunciação, se inscreve na perspectiva integral da
história da Mãe e do Filho. Na verdade, este Filho,
que é verdadeiro e consubstancial «Filho do Altíssimo»,
dirá muitas vezes de si, especialmente no momento
culminante de sua missão: «o Filho do homem ... não veio
para ser servido, mas para servir» (Mc 10, 45).
Cristo está sempre consciente de ser
«servo do Senhor», segundo a profecia de Isaías
(cf. 42, 1; 49, 3. 6; 52, 13), na qual se encerra o
conteúdo essencial da sua missão messiânica: a consciência
de ser o Redentor do mundo. Maria, desde o primeiro
instante da sua maternidade divina, da união com o seu
Filho que «o Pai enviou ao mundo, para que o mundo fosse
salvo por ele» (cf. Io 3, 17), insere-se no
serviço messiânico de Cristo.. (20) É precisamente
este serviço que constitui o fundamento próprio do Reino,
no qual «servir ... quer dizer reinar». (21) Cristo,
«Servo do Senhor», manifestará a todos os homens a
dignidade real do serviço, com a qual anda estreitamente
ligada a vocação de todo homem.
Assim, considerando a realidade mulher-Mãe
de Deus, entramos da maneira mais oportuna na presente
meditação do Ano Mariano. Essa realidade determina
também o
horizonte essencial da reflexão sobre a dignidade e sobre
a vocação da mulher. Ao pensar, dizer ou fazer algo em
ordem à dignidade e à vocação da mulher, não se devem
separar deste horizonte o pensamento, o coração e
as obras. A dignidade de todo homem e a vocação que a ela
corresponde encontram a sua medida definitiva na união
com Deus. Maria — a mulher da Bíblia — é a expressão
mais acabada desta dignidade e desta vocação. De fato, o
ser humano, homem ou mulher, criado à imagem e semelhança
de Deus, não pode realizar-se fora da dimensão desta
imagem e semelhança.
III
IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS
O Livro do Génesis
6. Devemos colocar-nos no contexto do
«princípio» bíblico, no qual a verdade revelada sobre o
homem como «imagem e semelhança de Deus» constitui a
base
imutável de toda a antropologia cristã. (22) «Deus
criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou,
homem e mulher os criou» (Gen 1, 27). Esta passagem
concisa contém as verdades antropológicas fundamentais: o
homem é o ápice de toda a ordem criada no mundo visível; o
género humano, que se inicia com a chamada à
existência do homem e da mulher, coroa toda a obra da
criação; os dois são seres humanos, em grau igual o
homem e a mulher, ambos criados à imagem de Deus.
Esta imagem e semelhança com Deus, essencial para o homem,
o homem e a mulher transmitem-na, como esposos e pais, aos
seus descendentes: «Sede fecundos e multiplicai-vos,
povoai a terra; submetei-a» (Gen 1, 28). O Criador
confia o «domínio» da terra ao género humano, a
todas as pessoas, a todos os homens e a todas as mulheres,
que haurem a sua dignidade e vocação do «princípio» comum.
No Génesis encontramos ainda uma
outra descrição da criação do homem — homem e mulher (cf.
2, 18-25) — à qual nos referiremos em seguida. Desde
agora, todavia, é preciso afirmar que da citação bíblica
emerge a verdade sobre o carácter pessoal do ser humano. O
homem é uma pessoa, em igual medida o homem e a mulher:
os dois, na verdade, foram criados à imagem e semelhança
do Deus pessoal. O que torna o homem semelhante a Deus é o
fato de — diferentemente de todo o mundo das criaturas
viventes, incluídos os entes dotados de sentidos (animalia)
— ser também racional (animal rationale). (23)
Graças a esta propriedade o homem e a mulher podem
«dominar» as outras criaturas do mundo visível (cf. Gen
1, 28).
Na segunda descrição da criação do
homem (cf.
Gen 2, 18-25), a linguagem em que se expressa a
verdade sobre a criação do homem e, especialmente, da
mulher é diversa; em certo sentido é menos precisa; é —
poder-se-ia dizer — mais descritiva e metafórica; mais
próxima da linguagem dos mitos então conhecidos. Todavia,
não se encontra contradição essencial alguma entre os dois
textos. O texto de Génesis 2, 18-25 ajuda a
compreender bem o que encontramos na passagem concisa de
Génesis 1, 27-28 e, ao mesmo tempo, se lido em
conjunção com este, ajuda a compreender de modo ainda
mais profundo a verdade fundamental aí contida
sobre o homem, criado à imagem e semelhança de Deus
como homem e mulher.
Na descrição de Génesis 2, 18-25, a
mulher é criada por Deus «da costela» do homem e é
colocada como um outro «eu», como um interlocutor junto ao
homem, o qual, no mundo circunstante das criaturas
animadas, está só e não encontra em nenhuma delas um
«auxiliar» que lhe seja conforme. A mulher, chamada desse
modo à existência, é imediatamente reconhecida pelo homem
«como carne da sua carne e osso dos seus ossos» (cf.
Gen 2, 23), e precisamente por isto é chamada
«mulher». Na linguagem bíblica este nome indica a
identidade essencial com referência ao homem: 'iš -
'iššah, o que, em geral, as línguas modernas
infelizmente não conseguem exprimir. «Ela chamar-se-á
mulher ('iššah), porque foi tirada do homem ('iš)» (Gen
2, 23).
O texto bíblico fornece bases suficientes
para reconhecer a igualdade essencial do homem e da mulher
do ponto de vista da humanidade. (24) Ambos, desde o
início, são pessoas, à diferença dos outros seres vivos do
mundo que os circunda. A mulher é um outro «eu» na
comum humanidade. Desde o início aparecem como
«unidade dos dois», e isto significa a superação da
solidão originária, na qual o homem não encontra um
«auxiliar que lhe seja semelhante» (Gen 2, 20).
Trata-se aqui do «auxiliar» só na acção, no «submeter a
terra» (cf.
Gen 1, 28)? Certamente se trata da companheira da
vida, com a qual o homem pode unir-se como a uma esposa,
tornando-se com ela «uma só carne» e abandonando por isso
«seu pai e sua mãe» (cf. Gen 2, 24).
A descrição bíblica, por conseguinte, fala da
instituição, por parte de Deus, do matrimónio
contextualmente com a criação do homem e da mulher como
condição indispensável para a transmissão da vida às novas
gerações dos homens, à qual o matrimónio e o amor conjugal
são, por sua natureza, ordenados: «Sede fecundos e
multiplicai-vos, povoai a terra; submetei-a» (Gen
1, 28).
Pessoa - Comunhão - Dom
7. Penetrando com o pensamento no conjunto
da descrição de Génesis 2, 18-25 e
interpretando-a à luz da verdade sobre a imagem e
semelhança de Deus (cf. Gen
1, 26-27),podemos compreender ainda mais
plenamente em que consiste o carácter pessoal do ser
humano, graças ao qual ambos — o homem e a mulher — são
semelhantes a Deus. Cada homem, com efeito, é à imagem de
Deus enquanto criatura racional e livre, capaz de
conhecê-lo e de amá-lo. Lemos também que o homem não pode
existir «só» (cf. Gen 2, 18); pode existir somente
como «unidade dos dois», e portanto em relação a uma
outra pessoa humana. Trata-se de uma relação
recíproca: do homem para com a mulher e da mulher para com
o homem. Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus
comporta, pois, também um existir em relação, em
referência ao outro «eu». Isto preludia a definitiva
autorevelação de Deus uno e trino: unidade viva na
comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
No início da Bíblia, não se ouve ainda
dizer isto directamente. Todo o Antigo Testamento é
sobretudo a revelação da verdade sobre a unicidade e
unidade de Deus. Nesta verdade fundamental sobre Deus o
Novo Testamento introduzirá a revelação do mistério
imperscrutável da vida íntima de Deus. Deus, que se
dá a conhecer aos homens por meio de Cristo, é unidade
na Trindade: é unidade na comunhão. Desse modo
lança-se uma nova luz também sobre a semelhança e imagem
de Deus no homem, de que fala o Livro do Génesis. O
fato de o homem, criado como homem e mulher, ser imagem de
Deus não significa apenas que cada um deles,
individualmente, é semelhante a Deus, enquanto ser
racional e livre; significa também que o homem e a mulher,
criados como «unidade dos dois» na comum humanidade, são
chamados a viver uma comunhão de amor e, desse modo, a
reflectir no mundo a comunhão de amor que é própria de
Deus, pela qual as três Pessoas se amam no íntimo mistério
da única vida divina. O Pai, o Filho e o Espírito Santo,
um só Deus pela unidade da divindade, existem como pessoas
pelas imperscrutáveis relações divinas. Somente assim se
torna compreensível a verdade que Deus em si mesmo é amor
(cf.
1 Jo 4, 16).
A imagem e semelhança de Deus no homem,
criado como homem e mulher (pela analogia que se pode
presumir entre o Criador e a criatura), exprime portanto
também a «unidade dos dois» na comum humanidade. Esta
«unidade dos dois», que é sinal da comunhão interpessoal,
indica que na criação do homem foi inscrita também uma
certa semelhança com a comunhão divina («communio»).
Esta semelhança foi inscrita como qualidade do ser pessoal
dos dois, do homem e da mulher, e, conjuntamente, como uma
chamada e um empenho. Na imagem e semelhança de Deus que o
género humano traz consigo desde o «princípio»,
radica-se o fundamento de todo o «ethos» humano:
o Antigo e o Novo Testamento irão desenvolver esse «ethos»,
cujo vértice é o mandamento do amor. (25)
Na «unidade dos dois», o homem e a mulher
são chamados, desde o início, não só a existir «um ao lado
do outro» ou «juntos», mas também a existir
reciprocamente «um para outro».
Assim se explica também o significado
daquele «auxiliar» de que se fala em Génesis 2,
18-25: «Dar-lhe-ei um auxiliar que lhe seja
semelhante». O contexto bíblico permite entendê-lo
também no sentido de que a mulher deve «auxiliar» o homem
— e que este, por sua vez, deve ajudar a ela — em primeiro
lugar por causa do seu idêntico «ser pessoa humana»: isto,
em certo sentido, permite a ambos descobrirem sempre de
novo e confirmarem o sentido integral da própria
humanidade. É fácil compreender que — neste plano
fundamental — se trata de um «auxiliar» de ambas as
partes e de um «auxiliar» recíproco. Humanidade
significa chamada à comunhão interpessoal. O texto de
Génesis 2,
18-25 indica que o matrimónio é a primeira e, num
certo sentido, a fundamental dimensão desta chamada. Não
é, porém, a única. Toda a história do homem sobre a terra
realiza-se no âmbito desta chamada. Na base do princípio
do recíproco ser «para» o outro, na «comunhão»
interpessoal, desenvolve-se nesta história a integração na
própria humanidade, querida por Deus, daquilo que é
«masculino» e daquilo que é «feminino». Os textos
bíblicos, começando pelo Génesis, permitem-nos
reencontrar constantemente o terreno no qual se enraíza a
verdade sobre o homem, um terreno sólido e inviolável em
meio a tantas transformações da existência humana.
Esta verdade refere-se também à
história da salvação. A este respeito, um enunciado do
Concílio Vaticano II é particularmente significativo. No
capítulo sobre a «comunidade dos homens» da Constituição
pastoral
Gaudium et Spes lemos: «Quando o Senhor Jesus reza ao
Pai que "todos sejam um... como nós somos um" (Jo
17, 21-22), abre perspectivas inacessíveis à razão humana
e sugere alguma semelhança entre a união das
Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e
na caridade. Esta semelhança manifesta que o homem, única
criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se
encontrar plenamente senão por um dom sincero de si
mesmo». (26)
Com estas palavras o texto conciliar
apresenta sinteticamente o conjunto da verdade sobre o
homem e sobre a mulher — verdade que se delineia já nos
primeiros capítulos do Livro do Génesis — como a
própria estrutura que sustenta a antropologia bíblica e
cristã. O
homem — tanto homem como mulher — é o único ser
entre as criaturas do mundo visível que Deus
Criador «quis por si mesmo»: é portanto uma pessoa. O
ser pessoa significa tender à própria realização (o texto
conciliar diz «se encontrar»), que não se pode alcançar «senão
por um dom sincero de si mesmo».
Modelo de tal interpretação da pessoa é Deus mesmo como
Trindade, como comunhão de Pessoas. Dizer que o homem é
criado à imagem e semelhança deste Deus quer dizer também
que o homem é chamado a existir «para» os outros, a
tornar-se um dom.
Isso diz respeito a todo ser humano, seja
homem, seja mulher; estes o atuam na peculiaridade própria
a cada um. No âmbito da presente meditação sobre a
dignidade e a vocação da mulher, esta verdade sobre o ser
humano constitui o ponto de partida indispensável.
Já o
Livro do Génesis permite entrever, como num primeiro
esboço, este carácter esponsal da relação entre as
pessoas, terreno sobre o qual se desenvolverá, a seguir, a
verdade sobre a maternidade, como também sobre a
virgindade, como duas dimensões particulares da vocação da
mulher à luz da Revelação divina. Estas duas dimenções vão
encontrar a sua expressão mais alta no advento da
«plenitude dos tempos» (cf. Gál 4, 4) na figura da
«mulher» de Nazaré:
Mãe-Virgem.
O antropomorfismo da linguagem
bíblica
8. A apresentação do homem como «imagem e
semelhança de Deus», logo no início da Sagrada Escritura,
reveste-se
também de outro significado. Este fato constitui a
chave para compreender a Revelação bíblica como um
discurso de Deus sobre si mesmo. Falando de si, seja
«pelos profetas, seja por meio do Filho» (cf. Hbr
1, 1-2) feito homem, Deus fala com linguagem humana,
faz uso de conceitos e imagens humanas. Se este modo
de exprimir-se é caracterizado por um certo
antropomorfismo, a razão está no fato de que o homem é
«semelhante» a Deus: criado à sua imagem e semelhança. E
então também Deus é, de algum modo, «semelhante ao
homem» e, precisamente com base nesta semelhança, ele pode
ser conhecido pelos homens. Ao mesmo tempo a linguagem da
Bíblia é suficientemente precisa para indicar os limites
da «semelhança», os limites da «analogia». Com efeito, a
revelação bíblica afirma que, se é verdadeira a
«semelhança» do homem com Deus, é
essencialmente mais verdadeira ainda a «não-semelhança»,
(27) que separa do Criador toda a criação. Em última
análise, para o homem criado à semelhança de Deus, Deus
não cessa de ser «aquele que habita numa luz inacessível»
( 1 Tim 6, 16): é o «Diverso» por essência, o
«totalmente Outro».
Esta observação sobre os limites da
analogia — limites da semelhança do homem com Deus na
linguagem bíblica — deve ser levada em consideração também
quando,em diversas passagens da Sagrada Escritura
(especialmente no Antigo Testamento), encontramos
comparações que atribuem a Deus qualidades «masculinas» ou
«femininas».
Encontramos nessas comparações a confirmação indireta da
verdade de que ambos, tanto o homem como a mulher, foram
criados à imagem e semelhança de Deus. Se existe
semelhança entre o Criador e as criaturas, é compreensível
que a Bíblia tenha usado, a esse respeito, expressões que
lhe atribuem qualidades quer «masculinas» quer
«femininas».
Lembramos aqui algumas passagens
características do profeta Isaías: «Dissera Sião: "Javé
abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim ". Pode,
acaso, uma mãe esquecer o próprio filhinho, não se
enternecer pelo fruto das suas entranhas? Pois bem; ainda
que tais mulheres dele se esqueçam, eu, porém,
não me esquecerei de ti» (49, 14-15). E noutra
passagem: «Como alguém que é consolado pela
própria mãe,
assim eu vos consolarei; e em Jerusalém recebereis
conforto» (Is 66, 13). Também nos Salmos
Deus é comparado a uma mãe pressurosa: «Como a criança
desmamada no regaço da mãe, como uma criança desmamada
está minh'alma. Espera, Israel, no Senhor» (Sl
131, 2-3). Em diversos trechos o amor de Deus, solícito
para com o seu povo, é apresentado como semelhante ao amor
de uma mãe: tal como uma mãe, Deus «carregou» a
humanidade e, particularmente, o seu povo escolhido no
próprio seio, deu-o à luz na dor, nutriu-o e consolou-o
(cf. Is 42, 14; 46, 3-4). O amor de Deus é
apresentado em muitos trechos como amor «masculino» de
esposo e pai (cf. Os 11, 1-4; Jer 3, 4-19),
mas, às vezes, também como amor a feminino» de mãe.
Esta característica da linguagem bíblica,
o seu modo antropomórfico de falar de Deus, indica
também indirectamente o mistério do eterno «gerar»,
que pertence à vida íntima de Deus. Todavia, este «gerar»
em si mesmo não possui qualidades «masculinas» nem
«femininas». É de natureza totalmente divina. É espiritual
do modo mais perfeito, pois «Deus é espírito» (Jo
4, 24) e não possui nenhuma propriedade típica do corpo,
nem «feminina» nem «masculina». Por conseguinte, também a
«paternidade» em Deus é totalmente divina,
livre da característica corporal «masculina», que é
própria da paternidade humana. Neste sentido, o Antigo
Testamento falava de Deus como de um Pai e se dirigia a
ele como a um Pai. Jesus Cristo, que pôs esta verdade no
próprio centro do seu Evangelho como norma da oração
cristã, e que se dirigia a Deus chamando-lhe: «Abá - Pai»
(Mc 14, 36), como Filho unigénito e consubstancial,
indicava a paternidade neste sentido ultra-corporal,
sobre-humano, totalmente divino. Falava como Filho, unido
ao Pai pelo mistério eterno do gerar divino, e o fazia
sendo ao mesmo tempo. Filho autenticamente humano da sua
Mãe Virgem.
Se à geração eterna do Verbo de Deus não
se podem atribuir qualidades humanas, nem a paternidade
divina possui caracteres «masculinos» em sentido físico,
contudo o modelo absoluto de toda «geração»
dos seres humanos no mundo deve ser procurado em Deus.
Nesse sentido — parece — lemos na Carta aos Efésios: «dobro
os joelhos diante do Pai, de quem recebe o nome toda a
paternidade quer nos céus, quer na terra» (3, 14-15). Todo
«gerar» na dimensão das criaturas encontra o seu primeiro
modelo no gerar que em Deus é de modo completamente
divino, isto é, espiritual. A este modelo absoluto,
não-criado, é assimilado todo «gerar» no mundo criado. Por
isso, tudo quanto no gerar humano é próprio do homem, como
também tudo quanto é próprio da mulher, isto é, a «paternidade»
e a «maternidade»
humanas, trazem em si a semelhança, ou seja, a analogia
com o «gerar» divino e com a «paternidade» que em
Deus é «totalmente diversa»: completamente espiritual e
divina por essência. Na ordem humana, ao invés, o gerar é
próprio da «unidade dos dois»: um e outro são «genitores»,
tanto o homem como a mulher.
IV
EVA - MARIA
O «princípio» e o pecado
9. «Constituído por Deus em estado de
justiça, o homem, porém, tentado pelo Maligno, desde o
início da história abusou de sua liberdade. Levanta-se
contra Deus desejando atingir o seu fim fora dele». (28)
Com estas palavras, o ensinamento do último Concílio
recorda a doutrina revelada sobre o pecado e, em
particular, sobre o primeiro pecado que é o pecado
original. O «princípio» bíblico — a criação do mundo e do
homem no mundo —
contém, ao mesmo tempo, a verdade sobre este
pecado, que pode ser chamado também o pecado do
«princípio» do homem sobre a terra. Embora o que está
escrito no Livro do Génesis venha expresso em forma
de narração simbólica, como no caso da descrição da
criação do homem como homem e mulher (cf. Gen 2,
18-25), mesmo assim revela aquilo a que é preciso chamar
«o mistério do pecado» e, mais plenamente ainda, «o
mistério do mal» existente no mundo criado por Deus.
Não é possível ler «o mistério do pecado»
sem fazer referência a toda a verdade sobre a «imagem e
semelhança» com Deus, que está na base da antropologia
bíblica. Esta verdade apresenta a criação do homem como
uma doação especial por parte do Criador, na qual estão
contidos não só o fundamento e a fonte da dignidade
essencial do ser humano — homem e mulher — no mundo
criado, mas também o início do chamamento dos dois a
participarem da vida íntima do próprio Deus. A luz da
Revelação, criação significa ao mesmo tempo início da
história da salvação.
Exactamente neste início o pecado se inscreve e se
configura como contraste e negação.
Pode-se dizer paradoxalmente que o pecado,
apresentado em Génesis (c. 3), é a confirmação da
verdade sobre a imagem e semelhança de Deus no homem, se
esta verdade significa a liberdade, isto é, o livre
arbítrio, com o uso da qual o homem pode escolher o bem,
mas pode também abusar escolhendo, contra a vontade de
Deus, o mal. No seu significado essencial, todavia, o
pecado é a negação daquilo que Deus é—como Criador—em
relação ao homem, e daquilo que Deus quer, desde o início
e para sempre, para o homem. Criando o homem e a mulher à
sua imagem e semelhança, Deus quer para eles a plenitude
do bem, ou seja a felicidade sobrenatural, que deriva da
participação na sua própria vida. Cometendo o pecado, o
homem rejeita este dom e, ao mesmo tempo, quer
tornar-se «como Deus, conhecendo o bem e o mal» (Gen
3, 5), isto é, decidindo do bem e do mal independentemente
de Deus, seu Criador. O pecado das origens tem a sua
«medida» humana, a sua dimensão interior na vontade livre
do homem e juntamente traz em si uma certa característica
«diabólica», (29) como é claramente posto em relevo no
Livro do Génesis (3, 1-5). O pecado opera a ruptura da
unidade originária, da qual o homem gozava no estado de
justiça original: a união com Deus como fonte da unidade
no interior do próprio «eu», na relação recíproca do homem
e da mulher («communio personarum») e, enfim, face
ao mundo exterior e à natureza.
A descrição bíblica do pecado original em
Génesis (c. 3) de certo modo «distribui os papéis» que
nele desempenharam a mulher e o homem. A isto farão
referência ainda mais tarde algumas passagens da Bíblia,
como, por exemplo, a Carta de São Paulo a Timóteo: «Adão
foi formado primeiro e depois Eva. E não foi Adão o
seduzido; mas a mulher». (1 Tim 2, 13-14). Não há
dúvida, porém, que, independentemente desta «distribuição
das partes» na descrição bíblica, esse primeiro pecado
é o pecado do homem, criado por Deus homem e mulher.
Esse é também o pecado dos «primeiros pais», ao
qual se prende o seu carácter hereditário. Neste sentido
chamamo-lo «pecado original».
Esse pecado, como já foi dito,
não pode ser entendido adequadamente se não se referir ao
mistério da criação do ser humano — homem e mulher —
à imagem e semelhança de Deus. Através dessa
referência se pode entender também o mistério da «não-semelhança»
com Deus, na qual consiste o pecado, e que se manifesta no
mal presente na história do mundo; da «não-semelhança» com
Deus, o único que é bom (cf. Mt 19, 17) e que é a
plenitude do bem. Se esta «não-semelhança» do pecado com
Deus, a própria Santidade, pressupõe a «semelhança» no
campo da liberdade, do livre arbítrio, pode-se dizer então
que, precisamente por esta razão, a «não-semelhança»
contida no pecado é tanto mais dramática e tanto mais
dolorosa. É preciso também admitir que Deus, como Criador
e Pai, é aqui atingido, «ofendido» e, obviamente, ofendido
no coração mesmo da doação que faz parte do desígnio
eterno de Deus sobre o homem.
Ao mesmo tempo, porém, também o ser
humano — homem e mulher — é atingido pelo mal do pecado,
do qual é autor.
O texto bíblico de Génesis (c. 3)
mostra-o com as palavras que descrevem claramente a nova
situação do homem no mundo criado. Ele mostra a
perspectiva da «fadiga» com que o homem há de procurar os
meios para viver (cf. Gen 3, 17-19), bem como a das
grandes «dores» em meio às quais a mulher dará à luz seus
filhos (cf. Gen 3, 16). Tudo isto, depois, é
marcado pela necessidade da morte, que constitui o termo
da vida humana sobre a terra. Deste modo o homem, como pó,
«voltará à terra, porque dela foi tirado»: «porque és pó,
e em pó te hás de tornar» (cf. Gen 3, 19).
Estas palavras confirmam-se de geração em
geração. Elas não significam que a imagem e a
semelhança de Deus no ser humano, quer mulher quer
homem, foi destruída pelo pecado; significam, ao invés,
que foi «ofuscada» (30) e, em certo sentido,
«diminuída». Na verdade, o pecado «diminui» o homem, como
recorda também o Concílio Vaticano II. (31) Se o homem, já
pela sua própria natureza de pessoa, é imagem e semelhança
de Deus, então a sua grandeza e dignidade se realizam na
aliança com Deus, na união com ele, no fato de procurar a
unidade fundamental que pertence à «lógica» interior do
mistério próprio da criação. Essa unidade corresponde à
verdade profunda de todas as criaturas dotadas de
inteligência e, em particular, do homem, o qual, entre as
criaturas do mundo visível, desde o início foi elevado,
mediante a eleição eterna por parte de Deus em Jesus: «Em
Cristo ... ele nos elegeu antes da criação do mundo... Por
puro amor ele nos predestinou a sermos por ele adoptados
por filhos, por intermédio de Jesus
Cristo, segundo o beneplácito da sua
vontade (cf. Ef
1,4-6). O ensinamento bíblico, no seu conjunto,
consente-nos dizer que a predestinação diz respeito a
todas as pessoas humanas, a homens e mulheres, a cada um e
cada uma, sem excepção.
«Ele te dominará»
10. A descrição bíblica do Livro do
Génesis
delineia a verdade sobre as consequências do pecado do
homem, como indica também a perturbação da relação
original entre o homem e a mulher que corresponde à
dignidade pessoal de cada um deles. O ser humano, tanto
homem como mulher, é uma pessoa e, por conseguinte, «a
única criatura na terra que Deus quis por si mesma»; e, ao
mesmo tempo, precisamente esta criatura única e
irrepetível «não pode se encontrar plenamente senão por um
dom sincero de si mesma». (32) Daqui se origina a relação
de «comunhão», na qual se exprimem a «unidade dos dois» e
a dignidade pessoal tanto do homem como da mulher. Quando
lemos, pois, na descrição bíblica, as palavras dirigidas à
mulher: «sentir-te-ás atraída para o teu marido, e ele
te dominará» (Gen 3, 16), descobrimos uma ruptura e
uma constante ameaça precisamente a respeito desta
«unidade dos dois», que corresponde à dignidade da imagem
e da semelhança de Deus em ambos. Tal ameaça resulta,
porém, mais grave para a mulher. Com efeito, ao ser um dom
sincero, e por isso ao viver «para» o outro, sucede o
domínio: «ele te dominará». Este «domínio» indica a
perturbação e a perda da estabilidade da
igualdade fundamental,
que na «unidade dos dois» possuem o homem e a mulher: e
isto vem sobretudo em desfavor da mulher, porquanto
somente a igualdade, resultante da dignidade de ambos como
pessoas, pode dar às relações recíprocas o carácter de uma
autêntica «communio personarum» (comunhão de
pessoas). Se a violação desta igualdade, que é
conjuntamente dom e direito que derivam do próprio Deus
Criador, comporta um elemento em desfavor da mulher, ao
mesmo tempo tal violação diminui também a verdadeira
dignidade do homem. Tocamos aqui um ponto extremamente
sensível na dimensão do «ethos» inscrito
originariamente pelo Criador, já no fato mesmo da criação
de ambos à sua imagem e semelhança.
Esta afirmação de Génesis 3, 16 tem
um grande e significativo alcance. Ela implica uma
referência à relação recíproca entre o homem e a mulher
no matrimónio . Trata-se do desejo nascido no clima do
amor esponsal, que faz com que «o dom sincero de si mesmo»
da parte da mulher encontre resposta e complemento num
«dom» análogo da parte do marido. Somente apoiados neste
princípio podem os dois, e em particular a mulher,
«encontrar-se» como verdadeira «unidade dos dois» segundo
a dignidade da pessoa. A união matrimonial exige o
respeito e o aperfeiçoamento da verdadeira subjectividade
pessoal dos dois. A mulher não pode tornar-se «objecto»
de «domínio» e de «posse» do homem. Mas as palavras do
texto bíblico referem-se directamente ao pecado original e
às suas consequências duradouras no homem e na mulher.
Onerados pela pecaminosidade hereditária, carregam em si a
constante «causa do pecado», ou seja a tendência a
ferir a ordem moral, que corresponde à própria natureza
racional e à dignidade do ser humano como pessoa. Esta
tendência exprime-se na tríplice concupiscência,
que o texto apostólico precisa como concupiscência dos
olhos, concupiscência da carne e fausto da vida (cf. 1
Jo 2, 16). As palavras do Génesis, acima
citadas (3, 16), indicam de que modo esta tríplice
concupiscência, como «causa do pecado», pesará sobre a
relação recíproca entre homem e mulher.
Essas mesmas palavras se referem
directamente ao matrimónio , mas indirectamente
abrangem os diversos campos da convivência social: as
situações em que a mulher permanece em desvantagem ou é
discriminada pelo fato de ser mulher. A verdade revelada
sobre a criação do homem como homem e mulher constitui o
principal argumento contra todas as situações que, sendo
objectivamente prejudiciais, isto é injustas, contêm e
exprimem a herança do pecado que todos os seres humanos
trazem em si. Os Livros da Sagrada Escritura confirmam em
vários pontos
a existência efectiva de tais situações e juntamente
proclamam a necessidade de converter-se, isto é, de
purificar-se do mal e de libertar-se do pecado: de tudo
aquilo que ofende o outro, que «diminui» o homem, não só
aquele a quem se ofende, mas também aquele que comete a
ofensa. Essa é a mensagem imutável da Palavra revelada de
Deus. Nisso se exprime o «ethos» bíblico até o fim. (33)
Nos nossos dias a questão dos «direitos da
mulher» tem adquirido um novo significado no amplo
contexto dos direitos da pessoa humana. Iluminando este
programa, constantemente declarado e de várias maneiras
recordado,
a mensagem bíblica e evangélica guarda a verdade sobre
a «unidade» dos «dois», isto é, sobre a dignidade e a
vocação que resultam da diversidade específica e
originalidade pessoal do homem e da mulher. Por isso,
também a justa oposição da mulher face àquilo que exprimem
as palavras bíblicas: «ele te dominará» (Gen 3, 16)
não pode sob pretexto algum conduzir à «masculinização»
das mulheres. A mulher—em nome da libertação do «domínio»
do homem—não pode tender à apropriação das características
masculinas, contra a sua própria «originalidade» feminina.
Existe o temor fundado de que por este caminho a mulher
não se «realizará», mas poderia, ao invés, deformar e
perder aquilo que constitui a sua riqueza essencial.
Trata-se de uma riqueza imensa. Na descrição bíblica, a
exclamação do primeiro homem à vista da mulher criada é
uma exclamação de admiração e de encanto, que atravessa
toda a história do homem sobre a terra.
Os recursos pessoais da feminilidade
certamente não são menores que os recursos da
masculinidade, mas são diversos. A mulher, portanto, —
como, de resto, também o homem — deve entender a sua
«realização» como pessoa, a sua dignidade e vocação, em
função destes recursos, segundo a riqueza da feminilidade,
que ela recebeu no dia da criação e que herda como
expressão, que lhe é peculiar, da «imagem e semelhança de
Deus». Somente por este caminho pode ser superada
também aquela herança do pecado que é sugerida nas
palavras da Bíblia: «sentir-te-ás atraída para o teu
marido, e ele te dominará». A superação desta má herança
é, de geração em geração, dever de todo homem, seja homem,
seja mulher. Efectivamente, em todos os casos em que o
homem é responsável de quanto ofende a dignidade pessoal e
a vocação da mulher, ele age contra a própria dignidade
pessoal e a própria vocação.
Proto-Evangelho
11. O Livro do Génesis atesta o
pecado, que é o mal do «princípio» do homem, as suas
consequências que desde então pesam sobre todo o género
humano, e juntamente contém o primeiro anúncio da
vitória sobre o mal,
sobre o pecado. Provam-no as palavras que lemos em
Génesis 3, 15, habitualmente ditas «Proto-Evangelho»:
«Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua
descendência e a dela; esta te esmagará a cabeça enquanto
tu te lanças contra o seu calcanhar». É significativo que
o anúncio do redentor, do salvador do mundo, contido
nestas palavras, se refira à «mulher». Esta é nomeada em
primeiro lugar no Proto-Evangelho como progenitora daquele
que será o redentor do homem. (34) E se a redenção deve
realizar-se mediante a luta contra o mal, por meio da
«inimizade» entre a estirpe da mulher e a estirpe daquele
que, como «pai da mentira» (Jo 8, 44), é o primeiro
autor do pecado na história do homem, esta será também
a inimizade entre ele e a mulher.
Nessas palavras desvela-se a perspectiva
de toda a Revelação, primeiro como preparação ao Evangelho
e depois como próprio Evangelho. Nesta perspectiva
convergem, sob o
nome da mulher, as duas figuras femininas: Eva
e Maria.
As palavras do Proto-Evangelho, relidas à
luz do Novo Testamento, exprimem adequadamente a missão da
mulher na luta salvífica do redentor contra o autor do mal
na história do homem.
O confronto Eva-Maria retorna
constantemente no curso da reflexão sobre o depósito da fé
recebida da Revelação divina, e é um dos temas retomados
frequentemente pelos Padres, pelos escritores
eclesiásticos e pelos teólogos. (35) Habitualmente, nesta
comparação surge à primeira vista uma diferença, uma
contraposição. Eva, como «mãe de todos os viventes»
(Gen 3, 20), é
testemunha do «princípio» bíblico, no qual estão
contidas a verdade sobre a criação do homem à imagem e
semelhança de Deus e a verdade sobre o pecado original.
Maria é testemunha do novo «princípio» e da
«nova criatura» (cf. 2 Cor 5, 17). Melhor, ela
mesma, como a primeira redimida na história da salvação, é
«nova criatura»: é a «cheia de graça». É difícil
compreender porque as palavras do Proto-Evangelho realcem
tão fortemente a «mulher», se não se admite que com ela
se inicia a nova e definitiva Aliança de Deus com a
humanidade, a Aliança no sangue redentor de Cristo.
Essa Aliança inicia-se com uma mulher, a «mulher», na
Anunciação em Nazaré. Esta é a novidade absoluta do
Evangelho: outras vezes no Antigo Testamento, Deus, para
intervir na história do seu Povo, se tinha dirigido a
mulheres, como a mãe de Samuel e de Sansão; mas para
estipular a sua Aliança com a humanidade se tinha dirigido
somente a homens: Noé, Abraão, Moisés. No
início da Nova Aliança, que deve ser eterna e irrevogável,
está a mulher: a Virgem de Nazaré. Trata-se de um sinal
indicativo de que «em Jesus Cristo» «não há homem
nem mulher» (Gál 3, 28). Nele a contraposição
recíproca entre homem e mulher — como herança do pecado
original — é essencialmente superada. «Todos vós sois
um só em Cristo Jesus», escreverá o Apóstolo
(Gál 3, 28).
Estas palavras tratam da originária
«unidade dos dois», que está ligada à criação do homem,
como homem e mulher, à imagem e semelhança de Deus,
segundo o modelo da comunhão perfeitíssima de Pessoas que
é o próprio Deus. As palavras paulinas constatam que o
mistério da redenção do homem em Jesus Cristo, filho de
Maria, retoma e renova aquilo que no mistério da criação
correspondia ao desígnio eterno de Deus Criador.
Precisamente por isso, no dia da criação do homem como
homem e mulher, «Deus contemplou tudo o que tinha feito, e
eis que estava tudo muito bem»
(Gen 1, 31). A redenção restitui, em certo
sentido, à sua própria raiz o bem que foi
essencialmente «diminuído» pelo pecado e pela sua herança
na história do homem.
A «mulher» do Proto-Evangelho é inserida
na perspectiva da redenção. O confronto Eva-Maria pode ser
entendido também no sentido de que Maria assume em
si mesma e abraça o mistério da «mulher», cujo
início é Eva, «a mãe de todos os viventes» (Gen 3,
20): antes de tudo o assume e abraça no interior do
mistério de Cristo — «novo e último Adão» (cf. 1 Cor
15, 45) — o qual assumiu na sua pessoa a natureza do
primeiro Adão. A essência da Nova Aliança consiste no fato
de que o Filho de Deus, consubstancial ao Pai eterno, se
torna homem: acolhe a humanidade na unidade da Pessoa
divina do Verbo. Aquele que opera a Redenção é, ao mesmo
tempo, verdadeiro homem. O mistério da Redenção do mundo
pressupõe que Deus-Filho tenha assumido a humanidade
como herança de Adão, tornando-se semelhante a
ele e a todo homem em tudo, «com excepção do pecado» (Hebr
4, 15). Deste modo, ele «manifesta plenamente o homem ao
próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação»,
como ensina o Concílio Vaticano II. (36) Em certo sentido,
ajudou-o a redescobrir «quem é o homem» (cf. Sl 8,
5).
Em todas as gerações, na tradição da fé e
da reflexão cristã sobre a mesma, a aproximação
Adão-Cristo é frequentemente acompanhada da de
Eva-Maria. Se Maria é descrita também como «nova Eva»,
quais podem ser os significados desta analogia? Certamente
são múltiplos. É preciso deter-se particularmente no
significado que vê em Maria a revelação plena de tudo o
que é compreendido na palavra bíblica «mulher»: uma
revelação proporcional ao mistério da Redenção. Maria
significa, em certo sentido, ultrapassar o limite de que
fala o Livro do Génesis (3, 16) e retornar ao
«princípio» no qual se encontra a «mulher» tal como foi
querida na criação,
portanto no pensamento eterno de Deus, no seio da
Santíssima Trindade. Maria é o «novo princípio» da
dignidade e da vocação da mulher, de todas e de cada
uma das mulheres. (37)
Para compreender isto podem servir de
chave, de modo particular, as palavras postas pelo
evangelista nos lábios de Maria depois da Anunciação,
durante a sua visita a Isabel: «grandes coisas fez em mim
o Todo-poderoso» (Lc
1, 49). Estas se referem certamente à concepção do
Filho, que é «Filho do Altíssimo» (Lc 1, 32), o
«santo» de Deus; conjuntamente, porém, elas podem
significar também a descoberta da própria humanidade
feminina. «Grandes coisas fez em mim»: esta é a
descoberta de toda a riqueza, de todos os recursos
pessoais da feminilidade, de toda a eterna
originalidade da «mulher», assim como Deus a quis, pessoa
por si mesma, e que se encontra contemporaneamente «por um
dom sincero de Si mesma».
Esta descoberta relaciona-se com
a clara consciência do dom, da dádiva oferecida por Deus.
O pecado já no «princípio» tinha ofuscado esta
consciência, em certo sentido a tinha sufocado, como
indicam as palavras da primeira tentação por obra do «pai
da mentira» (cf. Gen 3, 1-5). Com a chegada da
«plenitude dos tempos» (cf. Gál 4, 4), ao começar a
cumprir-se na história da humanidade o mistério da
redenção, esta consciência irrompe com toda a sua força
nas palavras da «mulher» bíblica de Nazaré. Em Maria,
Eva redescobre qual é a verdadeira dignidade da
mulher, da humanidade feminina. Esta descoberta deve
chegar continuamente ao coração de cada mulher e plasmar a
sua vocação e a sua vida.
V
JESUS CRISTO
«Ficaram admirados por estar ele a
conversar com uma mulher»
12. As palavras do Proto-Evangelho, no
Livro de Génesis, permitem que passemos ao âmbito do
Evangelho. A redenção do homem, ali anunciada, aqui se
torna realidade na pessoa e na missão de Jesus Cristo, nas
quais reconhecemos também aquilo que a realidade da
redenção significa para a dignidade e a vocação da
mulher.
Este significado é-nos esclarecido em grau maior pelas
palavras de Cristo e por todo o seu comportamento, em
relação às mulheres, que é extremamente simples e,
exactamente por isso, extraordinário, se visto no
horizonte do seu tempo: é um comportamento que se
caracteriza por uma grande transparência e profundidade.
Diversas mulheres aparecem no itinerário da missão de
Jesus de Nazaré, e o encontro com cada uma delas é uma
confirmação da «novidade de vida» evangélica, de que já se
falou.
Admite-se universalmente — e até por parte
de quem se posiciona criticamente diante da mensagem
cristã — que
Cristo se constituiu, perante os seus contemporâneos,
promotor da verdadeira dignidade da mulher e da
vocação correspondente a tal dignidade. Às vezes, isso
provocava estupor, surpresa, muitas vezes raiando o
escândalo: «ficaram admirados por estar ele a conversar
com uma mulher» (Jo 4, 27), porque este
comportamento se distinguia daquele dos seus
contemporâneos. «Ficaram admirados» até os próprios
discípulos de Cristo. O fariseu, a cuja casa se dirigiu a
mulher pecadora para ungir os pés de Jesus com óleo
perfumado, «disse consigo: "Se este homem fosse um
profeta, saberia quem é e de que espécie é a mulher
que o toca: é uma pecadora"» (Lc 7, 39). Estranheza
ainda maior ou até «santa indignação» deviam provocar nos
ouvintes satisfeitos de si as palavras de Cristo: «Os
publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no reino
de Deus» (Mt 21, 31).
Aquele que falava e agia assim fazia
compreender que os «mistérios do Reino» lhe eram
conhecidos até o fundo. Ele também «sabia o que há em cada
homem» (Jo 2, 25), no seu íntimo, no seu «coração».
Era testemunha do desígnio eterno de Deus a respeito do
homem por ele criado à sua imagem e semelhança, como homem
e mulher. Era também profundamente consciente das
consequências do pecado, do «mistério de iniquidade» que
opera nos corações humanos come fruto amargo do
ofuscamento da imagem divina. Como é significativo o fato
de que, no colóquio fundamental sobre o matrimónio e
sobre a sua indissolubilidade, Jesus, diante de seus
interlocutores, «os escribas», que eram por ofício os
conhecedores da Lei, faça referência ao «princípio».
A questão colocada é a do direito «masculino» de «repudiar
a própria mulher por qualquer motivo» (Mt 19, 3);
e, portanto, também do direito da mulher, da sua justa
posição no matrimónio , da sua dignidade. Os
interlocutores consideram ter a seu favor a legislação
mosaica vigente em Israel «Moisés mandou dar-lhe libelo de
repúdio e despedi-la» (Mt 19, 7). Responde Jesus:
«por causa da dureza do vosso coração permitiu-vos Moisés
repudiar as vossas mulheres; mas no princípio não era
assim» (Mt 19, 8). Jesus apela para o «princípio»,
para a criação do homem como homem e mulher e para o
ordenamento de Deus que se fundamenta no fato de que os
dois foram criados «à sua imagem e semelhança». Por
isso, quando o homem «deixa seu pai e sua mãe» unindo-se à
sua esposa, de modo a formarem os dois «uma só carne»,
permanece em vigor a lei que provém de Deus mesmo: «Não
separe, pois, o homem o que Deus uniu» (Mt 19, 6).
O princípio desse «ethos», que desde o
início foi inscrito na realidade da criação, é agora
confirmado por Cristo contra a tradição, que comportava a
discriminação da mulher. Nesta tradição, o homem
«dominava», não considerando adequadamente a mulher e a
dignidade que o «ethos» da criação colocou como
base das relações recíprocas das duas pessoas unidas em
matrimónio . Este «ethos» é recordado e confirmado
pelas palavras de Cristo: é o «ethos» do Evangelho e
da redenção.
As mulheres do Evangelho
13. Folheando as páginas do Evangelho,
passa diante de nossos olhos um grande número de
mulheres, de idade e condições diversas. Encontramos
mulheres atingidas pela doença ou por sofrimentos físicos,
como a mulher que tinha «um espírito que a mantinha
enferma, andava recurvada e não podia de forma alguma
endireitar-se» (cf.
Lc 13, 11); ou como a sogra de Simão que estava «de
cama com febre» (Mc 1, 30); ou como a mulher que
«sofria de um fluxo de sangue» (cf. Mc 5, 25-34),
que não podia tocar ninguém, porque se pensava que o seu
toque tornasse o homem «impuro». Cada uma delas foi curada
e a última, a hemorroíssa, que tocou o manto de Jesus «no
meio da multidão» (Mc 5, 27), foi por ele louvada
pela sua grande fé: «a tua fé te salvou» (Mc 5,
34). Há, depois, a filha de Jairo, que Jesus
faz voltar à vida, dirigindo-se a ela com ternura:
«Menina, eu te mando, levanta-te!» (Mc 5, 41). E há
ainda a viúva de Naim, para quem Jesus faz voltar à
vida o filho único, fazendo acompanhar o seu gesto de uma
expressão de terna piedade: «compadeceu-se dela e
disse-lhe: "Não chores"» (Lc 7, 13). E há, enfim, a
Cananéia, uma mulher que merece da parte de Cristo
palavras de especial estima pela sua fé, sua humildade e
pela grandeza de espírito, de que só um coração de mãe é
capaz: «Ó Mulher, é grande a tua fé! Faça-se como desejas»
(Mt 15, 28). A mulher cananéia pedia a cura de sua
filha.
Às vezes as mulheres, que Jesus encontrava
e que dele recebiam tantas graças, o acompanhavam,
enquanto com os apóstolos peregrinava pelas cidades e
aldeias, anunciando o Evangelho do Reino de Deus; e elas
«os assistiam com os seus bens». O Evangelho cita entre
elas Joana, esposa do administrador de Herodes, Susana e
«muitas outras» (Lc 8, 1-3).
Às vezes, figuras de mulheres
aparecem nas parábolas, com que Jesus de Nazaré
ilustrava aos seus ouvintes a verdade sobre o Reino de
Deus. Assim é nas parábolas da dracma perdida (cf. Lc
15, 8-10), do fermento (cf. Mt 13, 33), das virgens
prudentes e das virgens estultas (cf. Mt 25, 1-13).
É particularmente eloquente o relato do óbulo da viúva.
Enquanto «os ricos ... colocavam as suas ofertas na caixa
do templo ... uma viúva ... deitou lá duas moedinhas».
Então Jesus disse: «essa viúva pobre deitou mais do
que todos... foi da sua penúria que tirou tudo quanto
possuía» (cf. Lc 21, 1-4). Deste modo Jesus a
apresenta como modelo para todos e a defende, pois no
sistema sócio-jurídico da época, as viúvas eram seres
totalmente indefesos (cf. também Lc 18, 1-7).
Em todo o ensinamento de Jesus, como
também no seu comportamento, não se encontra nada que
denote a discriminação, própria do seu tempo, da mulher.
Ao contrário, as suas palavras e as suas obras exprimem
sempre o respeito e a honra devidos à mulher. A mulher
recurvada é chamada «filha de Abraão» (Lc 13,16),
enquanto em toda a Bíblia o título «filho de Abraão» é
atribuído só aos homens. Percorrendo a via dolorosa rumo
ao Gólgota, Jesus dirá às mulheres: «Filhas de Jerusalém,
não choreis por mim» (Lc 23, 28). Este modo de
falar às mulheres e sobre elas, assim como o modo de
tratá-las, constitui uma clara «novidade» em relação aos
costumes dominantes do tempo.
Isso se torna ainda mais explícito no
tocante àquelas mulheres que a opinião comum apontava com
desprezo como pecadoras, pecadoras públicas e adúlteras.
Por exemplo, a Samaritana, a quem Jesus mesmo diz:
«tiveste cinco maridos e aquele que agora tens não é teu
marido». E ela, percebendo que ele conhecia os segredos da
sua vida, reconhece nele o Messias e corre a anunciá-lo
aos seus conterrâneos. O diálogo que precede este
reconhecimento é um dos mais belos do Evangelho (cf. Jo
4, 7-27).
Eis, depois, uma pecadora pública que, não
obstante a condenação por parte da opinião comum, entra na
casa do fariseu para ungir com óleo perfumado os pés de
Jesus. Ao anfitrião que se escandalizava deste fato, Jesus
dirá dela: «São perdoados os seus muitos pecados, visto
que muito amou» (cf. Lc 7, 37-47).
Eis, enfim, uma situação que é talvez a
mais eloquente:
uma mulher surpreendida em adultério é conduzida a
Jesus. A pergunta provocatória: «Ora Moisés, na Lei,
mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu que dizes?», Jesus
responde: «Aquele de vós que estiver sem pecado, lance-lhe
por primeiro uma pedra». A força de verdade, contida nesta
resposta, é tão grande que «se foram embora um após o
outro, a começar pelos mais velhos». Permanecem só Jesus e
a mulher. «Onde estão? Ninguém te condenou?» — «Ninguém,
Senhor». — «Nem eu te condenarei: — vai e doravante não
tornes a pecar» (cf. Jo 8, 3-11).
Estes episódios constituem um quadro de
conjunto muito transparente. Cristo é aquele que «sabe o
que há no homem» (cf.Jo 2, 25), no homem e na
mulher. Conhece a dignidade do homem, o seu
valor aos olhos de Deus.
Ele mesmo, Cristo, é a confirmação definitiva deste
valor. Tudo o que diz e faz tem o seu cumprimento
definitivo no mistério pascal da redenção. O comportamento
de Jesus a respeito das mulheres, que encontra ao longo do
caminho do seu serviço messiânico, é o reflexo do desígnio
eterno de Deus, o qual, criando cada uma delas, a escolhe
e ama em Cristo (cf. Ef 1, 1-5). Por isso, cada
mulher é aquela «única criatura na terra que Deus quis por
si mesma». Cada mulher herda do «princípio» a dignidade
de pessoa precisamente como mulher. Jesus de Nazaré
confirma esta dignidade, recorda-a, renova-a e faz dela um
conteúdo do Evangelho e da redenção, para a qual é enviado
ao mundo. É preciso, pois, introduzir na dimensão do
mistério pascal toda palavra e todo gesto de Cristo que se
referem à mulher. Desta maneira tudo se explica
completamente.
A mulher surpreendida em adultério
14. Jesus entra na situação concreta e
histórica da mulher, situação sobre a qual pesa a
herança do pecado. Esta herança exprime-se, entre
outras coisas, no costume que discrimina a mulher em favor
do homem, e está enraizada também dentro dela. Deste ponto
de vista, o episódio da mulher «surpreendida em adultério»
(cf.
Jo 8, 3-11) parece ser particularmente eloquente. No
fim Jesus lhe diz: «não tornes a pecar»; mas,
primeiro ele desperta a consciência do pecado nos
homens que a acusam para apedrejá-la, manifestando assim a
sua profunda capacidade de ver as consciências e as obras
humanas segundo a verdade. Jesus parece dizer aos
acusadores: esta mulher, com todo o seu pecado, não é
talvez também, e antes de tudo, uma confirmação das vossas
transgressões, da vossa injustiça «masculina», dos vossos
abusos?
Esta é uma verdade válida para todo o
género humano.
O fato narrado no Evangelho de João pode apresentar-se
em inúmeras situações análogas em todas as épocas da
história. Uma mulher é deixada só, é exposta diante da
opinião pública com «o seu pecado», enquanto por detrás
deste «seu» pecado se esconde um homem como pecador,
culpado pelo «pecado do outro», antes, co-responsável do
mesmo. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa
sob silêncio: aparece como não responsável pelo «pecado do
outro»! Às vezes ele passa a ser até acusador, como no
caso descrito, esquecido do próprio pecado. Quantas vezes,
de modo semelhante, a mulher paga pelo próprio
pecado (pode acontecer que seja ela, em certos casos, a
culpada pelo pecado do homem como «pecado do outro»), mas
paga ela só e paga sozinha! Quantas vezes ela fica
abandonada na sua maternidade, quando o homem, pai da
criança, não quer aceitar a sua responsabilidade? E ao
lado das numerosas «mães solteiras» das nossas sociedades,
é preciso tomar em consideração também todas aquelas que,
muitas vezes, sofrendo diversas pressões, inclusive da
parte do homem culpado, «se livram» da criança antes do
seu nascimento. «Livram-se»: mas a que preço? A opinião
pública de hoje tenta, de várias maneiras, «anular» o mal
deste pecado; normalmente, porém, a consciência da
mulher não consegue esquecer
que tirou a vida do próprio filho, porque não consegue
apagar a disponibilidade a acolher a vida, inscrita no seu
«ethos» desde o «princípio».
É significativo o comportamento de Jesus
no fato descrito no Evangelho de João 8, 3-11. Talvez em
poucos momentos como neste se manifesta o seu poder — o
poder da verdade — a respeito das consciências humanas.
Jesus está tranquilo, recolhido, pensativo. A sua
consciência, aqui como no colóquio com os Fariseus (cf.
Mt 19, 3-9), não estará talvez em contato com o
mistério do «princípio», quando o homem foi criado
homem e mulher, e a mulher foi confiada ao homem com a sua
diversidade feminina, e também com a sua potencial
maternidade? Também o homem foi confiado pelo Criador à
mulher. Foram
reciprocamente confiados um ao outro como pessoas
feitas à imagem e semelhança do próprio Deus. Nesse ato de
confiança está a medida do amor, do amor esponsal: para
tornar-se «um dom sincero» um para o outro, é preciso que
cada um dos dois se sinta responsável pelo dom. Esta
medida destina-se aos dois — homem e mulher — desde o
«princípio». Após o pecado original, forças opostas operam
no homem e na mulher, por causa da tríplice
concupiscência, «fonte do pecado». Essas forças agem no
interior do homem. Por isso Jesus dirá no Sermão da
montanha: «todo aquele que olhar para uma mulher
com mau desejo, já com ela cometeu adultério no seu
coração» (Mt 5, 28). Estas palavras, dirigidas
directamente ao homem, mostram a verdade fundamental da
sua responsabilidade em relação à mulher: pela sua
dignidade, pela sua maternidade, pela sua vocação. Mas,
indirectamente, elas se referem também à mulher. Cristo
fazia tudo o que estava ao seu alcance para que — no
âmbito dos costumes e das relações sociais daquele tempo —
as mulheres reconhecessem no seu ensinamento e no seu agir
a subjectividade e dignidade que lhes são próprias. Tendo
por base a eterna «unidade dos dois», esta dignidade
depende directamente da própria mulher, como sujeito
responsável por si, e é ao mesmo tempo «dada como
responsabilidade» ao homem. Coerentemente Cristo apela
para a responsabilidade do homem. Na presente meditação
sobre a dignidade e a vocação da mulher, hoje, é preciso
referir-se necessariamente à atitude que encontramos no
Evangelho. A dignidade da mulher e a sua vocação — como,
de resto, a do homem — encontram a sua vertente eterna no
coração de Deus e, nas condições temporais da existência
humana, estão estreitamente conexas com a «unidade dos
dois». Por isso, cada homem deve olhar para dentro de si e
ver se aquela que lhe é confiada como irmã na mesma
humanidade, como esposa, não se tenha tornado objecto de
adultério no seu coração; se aquela que, sob diversos
aspectos, é o co-sujeito da sua existência no mundo, não
se tenha tornado para ele «objecto»: objecto de prazer, de
exploração.
Custódias da mensagem evangélica
15. O modo de agir de Cristo, o
Evangelho de suas obras e palavras é um protesto
coerente contra tudo quanto ofende a dignidade da mulher.
Por isso, as mulheres que se encontram perto de Cristo
reconhecem-se a si mesmas na verdade que ele «ensina» e
que ele «faz», também quando esta verdade versa sobre a «pecaminosidade»
delas. Sentem-se «libertadas» por esta verdade,
restituídas a si mesmas: sentem-se amadas de «amor
eterno», por um amor que encontra directa expressão no
próprio Cristo. No raio da ação de Cristo, a posição
social delas se transforma. Sentem que Jesus lhes fala de
questões sobre as quais, naquele tempo, não se discutia
com uma mulher. O exemplo, em certo sentido, mais
significativo a este respeito é o da Samaritana,
junto ao poço de Siquém. Jesus — que sabe que é
pecadora e disto lhe fala — conversa com ela sobre os
mistérios mais profundos de Deus. Fala-lhe do dom
infinito do amor de Deus, que é como uma «fonte de água
que jorra para a vida eterna» (Jo 4, 14). Fala-lhe
de Deus que é Espírito e da verdadeira adoração que o Pai
tem direito de receber em espírito e verdade (cf. Jo 4,
24).
Revela-lhe, enfim, ser ele o Messias prometido a Israel
(cf. Jo 4, 26).
Este é um evento sem precedentes: essa
mulher, e além do mais «mulher-pecadora», torna-se
«discípula» de Cristo; mais ainda, uma vez instruída,
anuncia Cristo aos habitantes da Samaria, de modo que
também eles o acolhem com fé (cf. Jo 4, 39-42). Um
evento sem precedentes, se se tem presente o modo comum de
tratar as mulheres, próprio de quantos ensinavam em
Israel, enquanto no modo de agir de Jesus de Nazaré, tal
evento se faz normal. A este propósito, merecem uma
recordação particular também as irmãs de Lázaro: a Jesus
amava Marta, Maria, irmã dela e Lázaro» (cf. Jo 11,
5). Maria «escutava a palavra» de Jesus. Quando vai
visitá-los em casa, ele mesmo define o comportamento de
Maria como «a melhor parte» em relação à preocupação de
Marta com os afazeres domésticos (cf. Lc 10,
38-42). Noutra ocasião, também Marta — depois da morte
de Lázaro —
se torna interlocutora de Cristo e o colóquio se refere às
mais profundas verdades da revelação e da fé. «Senhor, se
estivesses aqui, não teria morrido meu irmão» — «Teu irmão
ressuscitará» — «Sei que há de ressuscitar no último dia».
Disse-lhe Jesus: «Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele
que crê em mim, ainda que venha a morrer, viverá; e todo
aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais. Crês
nisto?» — «Sim, Senhor, creio que és o Cristo, o Filho de
Deus, que deve vir ao mundo» (Jo 11, 21-27). Depois
desta profissão de fé, Jesus ressuscita Lázaro. Também
o colóquio com Marta é um dos mais importantes do
Evangelho.
Cristo fala com as mulheres sobre as
coisas de Deus, e elas compreendem-nas: uma autêntica
ressonância da mente e do coração, uma resposta de fé. E
por esta resposta marcadamente «feminina» Jesus exprime
apreço e admiração, como no caso da mulher cananéia (cf.
Mt
15, 28). Por vezes, Ele propõe como exemplo essa fé viva,
permeada de amor: ensina, portanto, tomando como
ponto de referência essa resposta feminina da mente e do
coração. Assim acontece no caso da mulher «pecadora»,
cujo modo de agir, na casa do fariseu, é tomado por Jesus
como ponto de partida para explicar a verdade sobre a
remissão dos pecados: «são perdoados os seus muitos
pecados visto que muito amou. Mas aquele a quem pouco se
perdoa pouco ama» (Lc 7, 47). Por ocasião de outra
unção, Jesus toma a defesa, diante dos discípulos e
particularmente diante de Judas, da mulher e da sua acção:
«por que molestais esta mulher? Foi por certo uma boa
obra que ela praticou comigo... Ao derramar este
unguento perfumado sobre o meu corpo, fê-lo para
preparar-me para a sepultura. Em verdade vos digo que em
todo o mundo, onde quer que seja pregada esta boa-nova,
também o que ela fez será dito para seu louvor» (Mt
26, 6-13).
Na realidade, os Evangelhos não só
descrevem o que fez aquela mulher em Betânia, na casa de
Simão o leproso, mas colocam também em destaque como, no
momento da prova definitiva e determinante para toda a
missão messiânica de Jesus de Nazaré, aos pés da Cruz
se encontram, primeiras entre todos, as mulheres. Dos
apóstolos, somente João permaneceu fiel. As mulheres, ao
invés, são muitas. Estavam presentes não só a Mãe de
Cristo e a «irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas, e
Maria Madalena» (Jo 19, 25), mas «muitas mulheres
que observavam de longe: isto é, aquelas que tinham
seguido a Jesus desde a Galiléia, prestando-lhe
assistência» (Mt 27, 55). Como se vê, naquela que
foi a mais dura prova da fé e da fidelidade, as mulheres
demonstraram-se mais fortes que os apóstolos: nesses
momentos de perigo, aquelas que «amam muito» conseguem
vencer o medo. Antes, havia as mulheres na via
dolorosa, «que batiam no peito e se lamentavam por
ele» (Lc 23, 27). Antes ainda, havia a mulher de
Pilatos que advertira o marido: «Não te encarregues
desse justo, pois que hoje padeci muito em sonhos por
causa dele» (Mt 27, 19).
Primeiras testemunhas de
Ressurreição
16. Desde o início da missão de Cristo, a
mulher demonstra para com Ele e seu mistério uma
sensibilidade
especial que corresponde a uma característica
da sua feminilidade. É preciso dizer, além do mais,
que uma confirmação particular disso se verifica em
relação ao mistério pascal, não só no momento da Cruz, mas
também na manhã da Ressurreição. As mulheres são as
primeiras junto à sepultura. São as primeiras a
encontrá-la vazia. São as primeiras a ouvir: «não está
aqui, porque ressuscitou, como tinha dito» (Mt
28, 6). São as primeiras a abraçar-lhe os pés (cf.
Mt 28, 9). São também as primeiras a serem chamadas a
anunciar esta verdade aos apóstolos (cf. Mt 28,
1-10; Lc 24, 8-11). O Evangelho de João (cf. também
Mc 16, 9) coloca em destaque a função particular
de Maria Madalena. É a primeira a encontrar o Cristo
ressuscitado.
De início, supõe tratar-se do jardineiro;
reconhece-o só quando ele a chama pelo nome: «"Maria!"
diz-lhe Jesus. Ela, voltando-se, exclama em hebraico: «Rabbuni!",
que quer dizer "Mestre!" Diz-lhe Jesus: "não me retenhas,
porque ainda não subi para o Pai; mas vai ter com meus
irmãos e diz-lhes que vou subir para meu Pai e vosso Pai,
meu Deus e vosso Deus". E Maria Madalena foi logo anunciar
aos discípulos: "Vi o Senhor" e também o que lhe tinha
falado» (Jo 20, 16-18).
Por isso ela é chamada também «a apóstola
dos apóstolos» (38) Maria Madalena foi a testemunha ocular
do Cristo ressuscitado antes dos apóstolos e, por essa
razão, foi também a primeira a dar-lhe testemunho
diante dos apóstolos. Este acontecimento, em certo
sentido, coroa tudo o que foi dito em precedência sobre o
ato de Cristo de confiar as verdades divinas às mulheres,
de igual maneira que aos homens. Pode-se dizer que assim
se cumpriram as palavras do Profeta: «Derramarei o meu
espírito sobre todo homem, e tornar-se-ão profetas
os vossos filhos e as vossas filhas» (J1 3, 1).
Cinquenta dias depois da ressurreição de Cristo, estas
palavras confirmam-se mais uma vez no cenáculo de
Jerusalém, durante a vinda do Espírito Santo, o Paráclito
(cf. At 2, 17).
Tudo o que se disse até aqui sobre o
comportamento de Cristo em relação às mulheres confirma e
esclarece, no Espírito Santo, a verdade sobre a igualdade
dos dois — homem e mulher. Deve-se falar de uma «paridade»
essencial: dado que os dois — a mulher e o homem — são
criados à imagem e semelhança de Deus, ambos são em igual
medida susceptíveis de receber a dádiva da verdade divina
e do amor no Espírito Santo. Um e outro acolhem as suas
«visitas» salvíficas e santificantes.
O fato de ser homem ou mulher não comporta
aqui nenhuma limitação, como não limita em absoluto a
acção salvífica e santificante do Espírito no homem o fato
de ser judeu ou grego, escravo ou livre, segundo as
palavras bem conhecidas do apóstolo: «todos vós sois um só
em Cristo Jesus» (Gál 3, 28). Esta unidade não
anula a diversidade. O Espírito Santo, que opera essa
unidade na ordem sobrenatural da graça santificante,
contribui em igual medida para o fato que se «tornem
profetas os vossos filhos» e que se tornem profetas «as
vossas filhas». «Profetizar» significa exprimir com a
palavra e com a vida «as grandes obras de Deus»
(cf.
At 2, 11), conservando a verdade e a originalidade de
cada pessoa, seja homem ou mulher. A «igualdade»
evangélica, a «paridade» da mulher e do homem no que se
refere às «grandes obras de Deus», tal como se manifestou
de modo tão límpido nas obras e nas palavras de Jesus de
Nazaré, constitui a base mais evidente da dignidade e da
vocação da mulher na Igreja e no mundo. Toda vocação
tem um sentido profundamente
pessoal e profético. Na vocação assim entendida, a
personalidade da mulher atinge uma nova medida: a medida
das «grandes obras de Deus», das quais a mulher se torna
sujeito vivo e testemunha insubstituível.
VI
MATERNIDADE - VIRGINDADE
Duas dimensões da vocação da mulher
17. Devemos agora dirigir a nossa
meditação para a virgindade e a maternidade, duas
dimensões particulares na realização da personalidade
feminina. A luz do Evangelho, elas adquirem a plenitude do
seu sentido e valor em Maria, que como Virgem se tornou
Mãe do filho de Deus. Estas
duas dimensões da vocação feminina encontraram-se nela
e conjugaram-se de modo tão excepcional que, sem se
excluírem, se completaram admiravelmente. A descrição da
Anunciação no Evangelho de Lucas indica claramente que
isso parecia impossível à Virgem de Nazaré. Quando ela
ouve as palavras: «Eis que conceberás e darás à luz um
filho, ao qual porás o nome de Jesus», ela logo pergunta:
«Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?»
(Lc 1, 31. 34). Na ordem comum das coisas, a
maternidade é fruto do «conhecimento» recíproco do homem e
da mulher na união matrimonial. Maria, firme no propósito
da própria virgindade, pergunta ao mensageiro divino, e
dele obtém a explicação: «Virá sobre ti o Espírito
Santo»; a tua maternidade não será consequência de um
«conhecimento» matrimonial, mas será obra do Espírito
Santo, e a «potência do Altíssimo» estenderá a sua
«sombra» sobre o mistério da concepção e do nascimento do
Filho. Como Filho do Altíssimo, ele te é dado
exclusivamente por Deus, do modo conhecido por Deus.
Maria, portanto, manteve o seu virginal «não conheço
homem» (cf. Lc 1, 34) e, ao mesmo tempo, se tornou
Mãe. A virgindade e a maternidade coexistem nela:
não se excluem, nem se limitam reciprocamente. Antes, a
pessoa da Mãe de Deus ajuda todos — especialmente todas as
mulheres — a perceberem de que modo estas duas dimensões e
estes dois caminhos da vocação da mulher, como pessoa, se
desdobram e se completam reciprocamente.
Maternidade
18. Para participar deste «perceber» é
preciso mais uma vez aprofundar a verdade sobre a
pessoa humana,
recordada pelo Concílio Vaticano II. O homem — tanto o
homem como a mulher — é a única criatura na terra que Deus
quis por si mesma: é uma pessoa, é um sujeito que decide
por si. Ao mesmo tempo, o homem «não pode se encontrar
plenamente senão por um dom sincero de si mesmo». (39) Já
foi dito que esta descrição, aliás, em certo sentido, esta
definição da pessoa corresponde à verdade bíblica
fundamental sobre a criação do homem — homem e mulher — à
imagem e semelhança de Deus. Esta não é uma interpretação
puramente teórica, ou uma definição abstracta, pois ela
indica essencialmente o sentido do ser humano,
salientando o valor do dom de si, da pessoa. Nesta
visão da pessoa inclui-se também a essência do «ethos»
que, em ligação com a verdade da criação, será
desenvolvido plenamente pelos Livros da Revelação e,
particularmente, pelos Evangelhos.
Essa verdade sobre a pessoa abre, além
disso, o caminho para uma plena compreensão da
maternidade da mulher. A maternidade é fruto da união
matrimonial entre um homem e uma mulher, do «conhecimento»
bíblico que corresponde à «união dos dois numa só carne»
(cf.
Gen 2, 24) e, deste modo, ela realiza — por
parte da mulher — um especial «dom de si mesma» como
expressão do amor conjugal, pelo qual os esposos se unem
entre si de modo tão íntimo que constituem «uma só carne».
O «conhecimento» bíblico realiza-se segundo a verdade da
pessoa só quando o dom recíproco de si não é deformado nem
pelo desejo do homem de tornar-se «senhor» da sua esposa
(«ele te dominará»), nem pelo fechar-se da mulher nos
próprios instintos («sentir-te-ás atraída para o teu
marido»: Gen 3, 16).
O dom recíproco da pessoa no matrimónio
abre-se para o dom de uma nova vida, de um novo homem,
que é também pessoa à semelhança de seus pais. A
maternidade implica desde o início uma abertura especial
para a nova pessoa: e precisamente esta é a «parte» da
mulher. Nessa abertura, ao conceber e dar à luz o filho, a
mulher «se encontra por um dom sincero de si mesma». O dom
da disponibilidade interior para aceitar e dar ao mundo o
filho está ligado à união matrimonial, que — como foi dito
— deveria constituir um momento particular do dom
recíproco de si por parte tanto do homem como da mulher. A
concepcão e o nascimento do novo homem, segundo a Bíblia,
são acompanhados das seguintes palavras da mulher-genetriz:
«Adquiri um homem com o favor de Deus» (Gen 4, 1).
A exclamação de Eva, «mãe de todos os viventes», repete-se
toda vez que vem ao mundo um novo homem e exprime a
alegria e a consciência da mulher na participação do
grande mistério do eterno gerar. Os esposos participam do
poder criador de Deus!
A maternidade da mulher, no período entre
a concepção e o nascimento da criança, passa por um
processo biofisiológico e psíquico que hoje é melhor
conhecido do que no passado, e é objeto de muitos estudos
aprofundados. A análise científica confirma plenamente o
fato de que a constituição física da mulher e o seu
organismo comportam em si a disposição natural para a
maternidade, para a concepção, para a gestação e para o
parto da criança, em consequência da união matrimonial com
o homem. Ao mesmo tempo, tudo isso corresponde também à
estrutura psicofísica da mulher. Tudo quanto os diversos
ramos da ciência dizem sobre este assunto é importante e
útil, conquanto não se limitem a uma interpretação
exclusivamente biofisiológica da mulher e da maternidade.
Uma tal
imagem «reduzida» andaria de par com a concepção
materialista do homem e do mundo. Nesse caso, ficaria
infelizmente perdido o que é verdadeiramente essencial: a
maternidade, como facto e fenómeno humanos,
explica-se plenamente tendo por base a verdade sobre a
pessoa. A maternidade está ligada com a estrutura
pessoal do ser mulher e com a dimensão pessoal do dom:
«Adquiri um homem com o favor de Deus» (Gen 4, 1).
O Criador concede aos pais o dom do filho. Por parte da
mulher, este fato está ligado especialmente ao «dom
sincero de si mesma». As palavras de Maria na Anunciação:
«Faça-se em mim segundo a tua palavra», significam a
disponibilidade da mulher ao dom de si e ao acolhimento da
nova vida.
Na maternidade da mulher, unida à
paternidade do homem, reflecte-se o mistério eterno do
gerar que é próprio de Deus, de Deus uno e trino (cf.
Ef 3, 14-15). O gerar humano é comum ao homem e à
mulher. E se a mulher, guiada por amor ao marido, disser:
«dei-te um filho», as suas palavras ao mesmo tempo
significam: «este é nosso filho». Contudo, ainda que os
dois juntos sejam pais do seu filho, a maternidade da
mulher constitui uma «parte» especial deste comum ser
genitores, aliás a parte mais empenhada. O ser
genitores — ainda que seja comum aos dois — realiza-se
muito mais na mulher, especialmente no período pré-natal.
É sobre a mulher que recai directamente o «peso» deste
comum gerar, que absorve literalmente as energias do seu
corpo e da sua alma. É preciso, portanto, que o homem seja
plenamente consciente de que contrai, neste seu comum ser
genitores, um débito especial para com a mulher.
Nenhum programa de «paridade de direitos» das mulheres e
dos homens é válido, se não se tem presente isto de um
modo todo essencial.
A maternidade comporta uma comunhão
especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da
mulher: a mãe admira este mistério, com intuição singular
«compreende» o que se vai formando dentro de si. A luz do
«princípio», a mãe aceita e ama o filho que traz no seio
como uma pessoa. Este modo único de contacto com o novo
homem que se está formando cria, por sua vez, uma atitude
tal para com o homem — não só para com o próprio filho,
mas para com o homem em geral — que caracteriza
profundamente toda a personalidade da mulher. Considera-se
comummente que a mulher, mais do que o homem, seja
capaz de atenção à pessoa concreta, e que a
maternidade desenvolva ainda mais esta disposição. O homem
— mesmo com toda a sua participação no ser pai —
encontra-se sempre «fora» do processo da gestação e do
nascimento da criança e deve, sob tantos aspectos,
aprender da mãe a sua própria «paternidade».
Isto — pode-se dizer — faz parte do dinamismo humano
normal do ser genitores, também quando se trata das etapas
sucessivas ao nascimento da criança, especialmente no
primeiro período. A educação do filho, globalmente
entendida, deveria conter em si a dúplice contribuição dos
pais: a contribuição materna e paterna. Todavia, a materna
é decisiva para as bases de uma nova personalidade humana.
A maternidade em relação à Aliança
19. Volta às nossas reflexões o
paradigma bíblico da «mulher», tirado do
Proto-Evangelho. A «mulher», como genetriz e como primeira
educadora do homem (a educação é a dimensão espiritual do
ser pais), possui uma precedência específica sobre o
homem. Se, por um lado, a sua maternidade (antes de tudo
no sentido biofísico) depende do homem, por outro, ela
imprime uma «marca» essencial em todo o processo do fazer
crescer como pessoa os novos filhos e filhas da estirpe
humana. A maternidade da mulher em sentido biofísico
manifesta uma aparente passividade: o processo de formação
de uma nova vida «produz-se» nela, no seu organismo;
todavia, produz-se, envolvendo-o em profundidade. Ao mesmo
tempo, a maternidade, no sentido pessoal-ético,
exprime uma criatividade muito importante da mulher, da
qual depende principalmente a própria humanidade do novo
ser humano. Também neste sentido a maternidade da mulher
manifesta uma chamada e um desafio especiais, que se
dirigem ao homem e à sua paternidade.
O paradigma bíblico da «mulher» culmina
na maternidade da Mãe de Deus. As palavras do
Proto-Evangelho: «Porei inimizade entre ti e a mulher»,
encontram aqui uma nova confirmação. Eis que Deus, na
pessoa dela, no seu «fiat» materno («Faça-se em mim»), dá
início a uma Nova Aliança com a humanidade. Esta é a
Aliança eterna e definitiva em Cristo, no seu corpo e
sangue, na sua cruz e ressurreição. Precisamente porque
esta Aliança deve realizar-se «na carne e no sangue», é
que o seu início se dá na Genetriz. O «Filho do
Altíssimo», somente graças a ela e ao seu «fiat» virginal
e materno, pode dizer ao Pai: «formaste-me um corpo.
Eis-me aqui para fazer, ó Deus, a tua vontade» (cf.
Hebr
10, 5. 7).
Na ordem da Aliança, que Deus realizou com
o homem em Jesus Cristo, foi introduzida a maternidade da
mulher. E cada vez, todas as vezes que a maternidade da
mulher
se repete na história humana sobre a terra, permanece
sempre em relação com a Aliança que Deus
estabeleceu com o género humano, mediante a
maternidade da Mãe de Deus.
Esta realidade não é talvez demonstrada
pela resposta dada por Jesus ao brado da mulher que, no
meio da multidão, o bendizia pela maternidade d'Aquela que
o gerou: «Ditoso o seio que te trouxe e os peitos a que
foste amamentado!»? Jesus responde: «Ditosos antes os que
ouvem a palavra de Deus e a guardam» (Lc 11,
27-28). Jesus confirma o sentido da maternidade relativa
ao corpo; ao mesmo tempo, porém, indica-lhe um sentido
ainda mais profundo, ligado à ordem do espírito: a
maternidade é sinal da Aliança com Deus que «é espírito» (Jo
4, 24). Tal é sobretudo a maternidade da Mãe de Deus.
Também a maternidade de toda mulher, entendida à
luz do Evangelho, não é só «da carne e do sangue»: nela se
exprime a profunda «escuta da palavra do Deus vivo»
e a disponibilidade para «guardar» esta Palavra, que é
«palavra de vida eterna» (cf. Jo 6, 68). Com
efeito, são os nascidos de mães terrenas, os filhos e as
filhas do género humano, que recebem do Filho de
Deus o poder de se tornarem «filhos de Deus» (Jo 1,
12). A dimensão da Nova Aliança no sangue de Cristo
penetra no gerar humano, tornando-o realidade e
responsabilidade de «novas criaturas» (2
Cor 5, 17). A maternidade da mulher, do ponto de vista
da história de todo homem, é o primeiro limiar, cuja
superação condiciona também «a revelação dos filhos de
Deus» (cf. Rom 8, 19).
«A mulher, quando vai dar à luz, está
em tristeza,
por ter chegado a sua hora. Mas depois de ter dado à
luz o menino, já não se lembra da aflição por causa
da alegria de ter nascido um homem no mundo» (Jo
16, 21). As palavras de Cristo referem-se, na sua primeira
parte, às «dores do parto» que pertencem a herança do
pecado original; ao mesmo tempo, porém, indicam a
ligação da maternidade da mulher com o mistério
pascal. Neste mistério, de fato, está incluída também
a dor da Mãe aos pés da Cruz — da Mãe que mediante a fé
participa no mistério desconcertante do «despojamento» do
próprio Filho. «Isso constitui, talvez, a mais profunda
"kênose" da fé na história da humanidade». (40)
Contemplando esta Mãe, cujo coração foi
trespassado por uma espada (cf. Lc 2, 35), o
pensamento volta-se a todas as mulheres que sofrem no
mundo,
que sofrem no sentido tanto físico como moral. Neste
sofrimento, uma parte é devida à sensibilidade própria da
mulher; mesmo que ela, com frequência, saiba resistir ao
sofrimento mais do que o homem. É difícil enumerar estes
sofrimentos, é difícil nomeá-los todos: podem ser
recordados o desvelo maternal pelos filhos, especialmente
quando estão doentes ou andam por maus caminhos, a morte
das pessoas mais queridas, a solidão das mães esquecidas
pelos filhos adultos ou a das viúvas, os sofrimentos das
mulheres que lutam sozinhas pela sobrevivência e os das
mulheres que sofreram uma injustiça ou são exploradas.
Existem, enfim, os sofrimentos das consciências por causa
do pecado, que atingiu a dignidade humana ou materna da
mulher, as feridas das consciências que não cicatrizam
facilmente. Também com estes sofrimentos é preciso pôr-se
aos pés da Cruz de Cristo.
Mas as palavras do Evangelho sobre a
mulher que sofre aflição, por chegar a sua hora de dar à
luz o filho, logo depois exprimem a alegria: «a alegria
de ter nascido um homem no mundo». Também esta se
refere ao mistério pascal, ou seja, àquela alegria que é
comunicada aos apóstolos no dia da ressurreição de
Cristo: «Da mesma maneira também vós estais agora na
tristeza» (estas palavras foram pronunciadas no dia
anterior ao da paixão); «mas eu voltarei a ver-vos; então
o vosso coração alegrar-se-á e ninguém arrebatará a vossa
alegria» (Jo
16, 22).
A virginidade pelo Reino
20. No ensinamento de Cristo, a
maternidade anda ligada à virgindade, mas é também
distinta dela. A esse respeito, permanece fundamental
a frase dita por Jesus aos discípulos e inserida no
colóquio sobre a indissolubilidade do matrimónio . Tendo
ouvido a resposta dada aos fariseus, os discípulos dizem a
Cristo: «Se tal é a condição do homem em relação à sua
mulher, não convém casar-se» (Mt 19, 10).
Independentemente do sentido que a expressão «não convém»
tinha então na mente dos discípulos, Cristo parte
da opinião errada que eles tinham, para os instruir
sobre o valor do celibato: ele distingue o celibato
como efeito de deficiências naturais, ainda que causadas
pelo homem, do «celibato pelo reino dos céus».
Cristo diz: «E há outros que se fizeram eunucos por amor
do reino dos céus» (Mt 19, 12). Trata-se, pois, de
um celibato livre, escolhido por causa do reino dos céus,
em consideração da vocação escatológica do homem à união
com Deus. Depois ele acrescenta: «Quem for capaz de
compreender, compreenda», e estas palavras retomam o que
havia dito no início do discurso sobre o celibato (cf.
Mt 19, 11). Portanto, o celibato por amor do
Reino dos céus é fruto não só de uma escolha
livre da parte do homem, mas também de uma graça
especial da parte de Deus, que chama determinada pessoa
para viver o celibato. Se este é um sinal especial do
Reino de Deus que deve vir, ao mesmo tempo serve também
para dedicar de modo exclusivo todas as energias da alma e
do corpo, durante a vida temporal, ao reino escatológico.
As palavras de Jesus são a resposta à
pergunta dos discípulos. Elas são dirigidas directamente
àqueles que faziam a pergunta: neste caso eram homens.
Contudo, a resposta de Cristo, em si mesma, tem valor
tanto para os homens como para as mulheres. Neste
contexto, ela indica o ideal evangélico da virgindade,
ideal que constitui uma clara «novidade» em relação à
tradição do Antigo Testamento. Esta tradição certamente se
ligava também, de algum modo, com a expectativa de Israel,
e especialmente da mulher de Israel, pela vinda do
Messias, que devia ser da «estirpe da mulher».
Efectivamente, o ideal do celibato e da virgindade para
uma maior proximidade a Deus não era de todo alheio a
certos ambientes judaicos, sobretudo nos tempos que
precedem imediatamente a vinda de Jesus. Todavia, o
celibato por causa do Reino, ou seja, a virgindade, é uma
verdade inegável conexa com a Encarnação de Deus.
A partir do momento da vinda de Cristo, a
espera do Povo de Deus deve voltar-se para o Reino
escatológico que vem e no qual ele mesmo deve introduzir
«o novo Israel». Para uma tal reviravolta e mutação de
valores é, de fato, indispensável uma nova consciência da
fé. Cristo acentua isso duas vezes: «Quem for capaz de
compreender, compreenda». Compreendem-no somente «aqueles
aos quais foi concedido» (Mt 19, 11). Maria
é a primeira pessoa em quem se manifestou esta nova
consciência, pois ela pede ao Anjo: «Como se realizará
isso, pois eu não conheço homem?» (Lc 1,
34). Embora seja «noiva de um homem chamado José» (cf.
Lc 1, 27), ela está firme no propósito
da virgindade, e a maternidade que nela se realiza provém
exclusivamente da «potência do Altíssimo», é fruto da
vinda do Espírito Santo sobre ela (cf. Lc 1,
35). Esta maternidade divina, portanto, é a resposta
totalmente imprevisível à expectativa humana da mulher em
Israel: ela vem a Maria como dom do próprio Deus. Este dom
tornou-se o início e o protótipo de uma nova expectativa
de todos os homens, à medida da Aliança eterna, à medida
da nova e definitiva promessa de Deus: sinal da
esperança escatológica.
Apoiado no Evangelho desenvolveu-se e
aprofundou-se o sentido da virgindade como vocação também
para a mulher, vocação em que se confirma a sua dignidade
à semelhança da Virgem de Nazaré. O Evangelho propõe o
ideal da consagração da pessoa, que significa a sua
dedicação exclusiva a Deus em virtude dos conselhos
evangélicos, em particular os da castidade, pobreza e
obediência. A encarnação perfeita dos mesmos é o próprio
Jesus Cristo. Quem deseja segui-lo de modo radical escolhe
pautar a sua vida segundo tais conselhos. Estes
distinguem-se dos mandamentos e indicam ao cristão o
caminho da radicalidade evangélica. Desde o início do
cristianismo, tanto homens como mulheres avançam por este
caminho, pois o ideal evangélico é dirigido ao ser humano,
sem fazer diferença alguma de ordem sexual.
Neste contexto mais amplo é preciso
considerar a virgindade como um caminho também para a
mulher, um caminho pelo qual, diversamente do
matrimónio , ela realiza a sua personalidade de mulher.
Para compreender este caminho é preciso ainda uma vez
recorrer à ideia fundamental da antropologia cristã. Na
virgindade livremente escolhida, a mulher confirma-se como
pessoa, isto é, como criatura que o Criador desde o início
quis por si mesma, (41) e contemporaneamente realiza o
valor pessoal da própria feminilidade, tornando-se «um dom
sincero» para Deus que se revelou em Cristo, um dom para
Cristo Redentor do homem e Esposo das almas: um dom
«esponsal». Não se pode compreender correctamente a
virgindade, a consagração da mulher na virgindade,
sem recorrer ao amor esponsal: é, de fato, num amor
como esse que a pessoa se torna um dom para o outro. (42)
De resto, de modo análogo deve ser entendida a consagração
do homem no celibato sacerdotal ou no estado religioso.
A natural disposição esponsal da
personalidade feminina encontra uma resposta na virgindade
assim compreendida. A mulher, chamada desde o «princípio»
a amar e a ser amada, encontra na vocação à
virgindade, antes de tudo, Cristo como o Redentor
que «amou até o fim» por um dom total de si mesmo, e
ela responde a este dom por um «dom sincero» de toda a
sua vida. Ela doa-se, pois, ao Esposo divino, e esta sua
doação pessoal tende à união, que tem um carácter
propriamente espiritual: mediante a ação do Espírito Santo
torna-se «um só espírito» com Cristo-esposo (cf. 1 Cor
6, 17).
É este o ideal evangélico da virgindade,
no qual se realizam de forma especial tanto a dignidade
como a vocação da mulher. Na virgindade assim entendida
exprime-se o assim chamado radicalismo do Evangelho:
deixar tudo e seguir Cristo (cf. Mt 19, 27).
Isso não pode ser comparado ao simples permanecer
solteiros ou celibatários, porque a virgindade não se
restringe ao simples «não», mas contém um profundo «sim»
na ordem esponsal: o doar-se por amor de modo total e
indiviso.
A maternidade segundo o espírito
21. A virgindade no sentido evangélico
comporta a renúncia ao matrimónio e, por
conseguinte, também à maternidade física. Todavia, a
renúncia a este tipo de maternidade, que pode também
comportar um grande sacrifício para o coração da mulher,
abre para a experiência de uma maternidade de sentido
diverso: a maternidade «segundo o espírito» (cf.
Rm
8, 4). A virgindade, de fato, não priva a mulher das suas
prerrogativas. A maternidade espiritual reveste-se de
múltiplas formas. Na vida das mulheres consagradas que
vivem, por exemplo, segundo o carisma e as regras dos
diversos Institutos de carácter apostólico, ela poderá
exprimir-se como solicitude pelos homens, especialmente
pelos mais necessitados: os doentes, os deficientes
físicos, os abandonados, os órfãos, os idosos, as
crianças, a juventude, os encarcerados, e, em geral, os
marginalizados. Uma mulher consagrada reencontra desse
modo o Esposo, diverso e único em todos e em cada um,
de acordo com as suas próprias palavras: «tudo o que
fizestes a um destes ... a mim o fizestes» (Mt 25,
40).O amor esponsal comporta sempre uma singular
disponibilidade para ser efundido sobre quantos se
encontram no raio da sua acção. No matrimónio , esta
disponibilidade, embora aberta a todos, consiste
particularmente no amor que os pais dedicam aos filhos. Na
virgindade, tal disponibilidade está aberta a todos os
homens, abraçados pelo amor de Cristo esposo.
Em relação a Cristo, que é o Redentor de
todos e de cada um, o amor esponsal, cujo potencial
materno se esconde no coração da mulher, esposa virginal,
está também disposto a abrir-se para todos e cada um. Isso
se verifica nas Comunidades religiosas de vida apostólica
e diversamente naquelas de vida contemplativa ou de
clausura. Existem, além disso, outras formas de vocação
para a virgindade por causa do Reino, como, par exemplo,
os Institutos Seculares, ou as Comunidades de consagrados
que florescem dentro de Movimentos, Grupos e Associações:
em todas estas realidades, a mesma verdade sobre a
maternidade espiritual das pessoas que vivem na
virgindade encontra uma multiforme confirmação. Em todo o
caso, trata-se não somente de formas comunitárias, mas
também de formas extra-comunitárias. Em definitivo, a
virgindade, como vocação da mulher, é sempre a vocação de
uma pessoa, de uma pessoa concreta e única. Portanto, é
também profundamente pessoal a maternidade espiritual que
se faz sentir nesta vocação.
Baseado nisto se verifica também uma
aproximação
específica entre a virgindade da mulher não casada
e a maternidade da mulher casada. Tal aproximação
vai não só da maternidade para a virgindade, como se
acentuou acima, mas vai também da virgindade para o
matrimónio , entendido como forma de vocação da mulher, em
que esta se torna mãe dos filhos nascidos do seu ventre. O
ponto de partida desta segunda analogia é o significado
das núpcias. Com efeito, a mulher é «casada» quer pelo
sacramento do matrimónio , quer espiritualmente pelas
núpcias com Cristo. Num e outro caso as núpcias
indicam o «dom sincero da pessoa» da esposa ao esposo.
Deste modo — pode-se dizer — o perfil do matrimónio
encontra-se espiritualmente na virgindade. E se se tratar
de maternidade física, não deverá, porventura, também ela
ser uma maternidade espiritual para responder à verdade
global do homem que é uma unidade de corpo e de espírito?
Existem, por conseguinte, muitas razões para ver nestes
dois caminhos diversos — duas vocações diversas de vida da
mulher — uma profunda complementaridade e até uma profunda
união no interior do ser da pessoa.
«Filhinhos meus por quem sofro
novamente as dores do parto»
22. O Evangelho revela e permite
compreender precisamente este modo de ser da pessoa
humana. O Evangelho ajuda toda mulher e todo homem a
vivê-lo e assim a realizar-se. Existe, de fato, uma total
igualdade em relação aos dons do Espírito Santo, em
relação às «grandes obras de Deus» (At 2, 11). Não
só isso. Precisamente diante das «grandes obras de Deus»,
o apóstolo-homem sente necessidade de recorrer àquilo que
é por essência feminino, a fim de exprimir a verdade sobre
o próprio serviço apostólico. Exactamente assim age Paulo
de Tarso, quando se dirige aos Gálatas com as
palavras: «Filhinhos meus por quem sofro novamente as
dores do parto» (Gál 4, 19). Na primeira Carta aos
Coríntios (7, 38) o apóstolo anuncia a superioridade
da virgindade sobre o matrimónio , doutrina constante da
Igreja no espírito das palavras de Cristo, relatadas no
Evangelho de Mateus (19, 10-12), sem ofuscar
absolutamente a importância da maternidade física e
espiritual. Para ilustrar a missão fundamental da Igreja,
ele não encontra outra coisa melhor do que se referir à
maternidade.
Encontramos um reflexo da mesma analogia —
e da mesma verdade — na Constituição dogmática sobre a
Igreja.
Maria é a «figura» da Igreja: (43) «Com efeito, no
mistério da Igreja — pois também a Igreja é com razão
chamada mãe e virgem — Maria precedeu, apresentando-se de
modo eminente e singular, como modelo de virgem e de
mãe... Deu à luz o Filho, a quem Deus constituiu
primogénito entre muitos irmãos (cf. Rom 8, 29)
isto é, entre os fiéis, para cuja regeneração e formação
ela coopera com amor de mãe». (44) «Por certo, a Igreja,
contemplando-lhe a arcana santidade, imitando-lhe a
caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai, mediante
a palavra de Deus recebida na fé, torna-se também ela
mãe, pois pela pregação e pelo baptismo ela gera para
a vida nova e imortal os filhos concebidos do Espírito
Santo e nascidos de Deus». (45) Trata-se aqui da
maternidade «segundo o espírito» a respeito dos filhos e
filhas do género humano. Tal maternidade — como foi
dito — torna-se a «parte» da mulher também na virgindade.
A Igreja «também é virgem que íntegra e puramente
guarda a fé prometida ao Esposo». (46) Isto se realiza em
Maria da maneira mais perfeita. A Igreja, pois, «imitando
a Mãe do seu Senhor, pela virtude do Espírito Santo,
conserva virginalmente uma fé íntegra, uma sólida
esperança e uma sincera caridade». (47)
O Concílio confirmou que se não se recorre
à Mãe de Deus, não é possível compreender o mistério da
Igreja, a sua realidade, a sua vitalidade essencial.
Indirectamente encontramos aqui a referência ao
paradigma bíblico da «mulher», delineado claramente já
na descrição do «princípio» (cf. Gen 3, 15), e ao
longo do percurso que vai da criação, passando pelo
pecado, até chegar à redenção. Deste modo se confirma a
união profunda entre o que é humano e o que constitui a
economia divina da salvação na história do homem. A Bíblia
convence-nos do fato de que não se pode ter uma adequada
hermenêutica do homem, ou seja, daquilo que é «humano»,
sem um recurso adequado àquilo que é «feminino».
Analogamente acontece na economia salvífica de Deus: se
queremos compreendê-la plenamente em relação a toda a
história do homem, não podemos deixar de lado, na ótica de
nossa fé, o mistério da «mulher»: virgem-mãe-esposa.
VII
A IGREJA - ESPOSA DE CRISTO
O «grande mistério»
Uma importância fundamental a este
respeito têm as palavras da Carta aos Efésios:
«Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a
Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de
santificá-la, purificando-a com a lavagem de água
juntamente com a palavra, para apresentar a si próprio
essa Igreja resplandecente de glória, sem mancha, nem
ruga, nem coisa alguma semelhante, para que seja santa e
irrepreensível. Desse modo devem também os maridos amar as
mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher
ama-se a si mesmo. Ninguém jamais odiou sua própria carne,
antes, cada qual a nutre e dela toma cuidados, como Cristo
faz também com a Igreja, pois nós somos membros do seu
corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, unir-se-á à
sua mulher e passarão os dois a formar uma só carne.
Grande mistério é este:
mas digo-o referindo-me a Cristo e à Igreja» (5,
25-32).
Nesta Carta o autor exprime a
verdade sobre a Igreja como esposa de Cristo, indicando
igualmente como esta verdade se radica na realidade
bíblica da criação do homem como varão e mulher.
Criados à imagem e semelhança de Deus como «unidade dos
dois», ambos foram chamados a um amor de carácter
esponsal. Pode-se dizer também que, seguindo a descrição
da criação no Livro do Génesis (2, 18-25), este
chamamento fundamental se manifesta juntamente com a
criação da mulher e é inscrito pelo Criador na instituição
do matrimónio , que, segundo o
Génesis 2, 24, desde o início possui o carácter de
união das pessoas («communio personarum»). Embora
não directamente, a mesma descrição do «princípio» (cf.
Gen 1, 27 e Gen 2, 24) indica que todo o «ethos»
das relações recíprocas entre o homem e a mulher deve
corresponder à verdade pessoal do seu ser.
Tudo isto já foi considerado
precedentemente. O texto da Carta aos Efésios
confirma ainda uma vez a verdade acima apresentada e, ao
mesmo tempo, compara o carácter esponsal do amor entre o
homem e a mulher com o mistério de Cristo e da Igreja.
Cristo é o Esposo da Igreja, a Igreja é a Esposa de
Cristo. Esta analogia não deixa de ter precedentes:
ela transfere para o Novo Testamento o que já estava
presente no Antigo Testamento, particularmente nos
profetas Oséias, Jeremias, Ezequiel e Isaías. (48) As
respectivas passagens merecem uma análise à parte. Citemos
pelo menos um texto. Eis como Deus fala ao seu povo eleito
através do profeta: «Não temas, porque não terás que te
envergonhar; não te confundas, porque não terás do que te
enrubescer; antes, esquecerás a vergonha da tua juventude,
e não te lembrarás mais da afronta da tua viuvez;
porque o teu esposo é o teu Criador, cujo nome é
Senhor dos exércitos; o teu redentor é o Santo de
Israel, que se chama Deus de toda terra ... Será, por
acaso, repudiada a mulher desposada na juventude? Diz o
teu Deus. Por um breve instante eu te abandonei, e com
grande afeto, voltarei a acolher-te. Num rapto de ira,
ocultei-te o meu rosto por um momento; mas com perene
clemência compadeci-me de ti, diz o teu redentor, o Senhor
... Abalar-se-ão os montes e os outeiros vacilarão, mas
a minha clemência de ti não se apartará, e o meu pacto
de paz não vacilará» (Is
54, 4-8.10).
Se o ser humano — homem e mulher — foi
criado à imagem e semelhança de Deus, Deus pode falar de
si pelos lábios do profeta, servindo-se da linguagem que é
por essência humana: no texto citado de Isaías é «humana»
a expressão do amor de Deus, mas o amor em si mesmo
é
divino. Sendo amor de Deus, esse amor tem um
carácter esponsal propriamente divino, ainda que venha
expresso com a analogia do amor do homem para com a
mulher. Essa mulher-esposa é Israel, enquanto povo
escolhido por Deus, e esta eleição tem sua origem
exclusiva no amor gratuito de Deus. É justamente por este
amor que se explica a Aliança, apresentada frequentemente
como uma aliança matrimonial, que Deus renova sempre com o
seu povo escolhido. Esta aliança, da parte de Deus, é «um
compromisso» duradouro; ele permanece fiel ao seu amor
esponsal, embora a esposa se tenha demonstrado muitas
vezes infiel.
Esta imagem do amor esponsal ligada
com a figura do Esposo divino — uma imagem muito clara nos
textos proféticos — encontra a sua confirmação e
coroamento na
Carta aos Efésios (5, 23-32). Cristo é saudado
como esposo por João Batista (cf. Jo 3, 27-29):
antes, o próprio Cristo aplica a si esta comparação tomada
dos profetas (cf. Mc 2, 19-20). O apóstolo Paulo,
que traz em si todo o património do Antigo Testamento,
escreve aos Coríntios: «Pois bem, eu sou ciumento de vós,
do mesmo ciúme de Deus, por vos ter desposado com um único
esposo, para apresentar-vos a Cristo como virgem pura» (2
Cor 11, 2). A expressão mais plena, porém, da
verdade sobre o amor de Cristo redentor, segundo a
analogia do amor esponsal no matrimónio , se encontra na
Carta aos Efésios: «Cristo amou a Igreja e se entregou a
si mesmo por ela» (5, 25); e nisto se confirma
plenamente o fato de a Igreja ser a esposa de Cristo: «O
teu redentor é o Santo de Israel» (Is 54, 5). No texto
paulino, a analogia da relação esponsal toma ao mesmo
tempo duas direcções, que formam o conjunto do «grande
mistério» («sacramentum magnum»). A aliança própria
dos esposos «explica» o carácter esponsal da união de
Cristo com a Igreja, e esta união, por sua vez, como
«grande sacramento», decide da sacramentalidade do
matrimónio como aliança santa dos esposos, homem e
mulher. Lendo esta passagem, rica e complexa, que, no
seu conjunto, é uma grande analogia, devemos
distinguir
o que nela exprime a realidade humana das relações
interpessoais daquilo que exprime, com linguagem
simbólica, o «grande mistério» divino.
A «novidade» evangélica
24. O texto dirige-se aos esposos como
homens e mulheres concretos, e recorda-lhes o «ethos» do
amor esponsal que remonta à instituição divina do
matrimónio desde o «princípio». A verdade desta
instituição corresponde a exortação: «Maridos, amai as
vossas mulheres», amai-as em virtude do vínculo
especial e único, pelo qual o homem e a mulher, no
matrimónio , se tornam «uma só carne» (Gen 2, 24;
Ef 5, 31). Existe neste amor uma afirmação
fundamental
da mulher como pessoa, uma afirmação graças à qual a
personalidade feminina pode desenvolver-se plenamente e
enriquecer-se. É precisamente assim que age Cristo como
esposo da Igreja, desejando que ela seja «resplandecente
de glória, sem mancha, nem ruga» (Ef 5, 27).
Pode-se dizer que aqui esteja plenamente assumido aquilo
que constitui o «estilo» de Cristo no trato da mulher. O
marido deveria fazer seus os elementos deste estilo em
relação à sua esposa; e, analogamente, deveria fazer o
homem a respeito da mulher, em todas as situações. Assim,
os dois, homem e mulher, atuam o «dom sincero de si
mesmos»!
O autor da Carta aos Efésios não vê
contradição alguma entre uma exortação formulada dessa
maneira e a constatação de que «as mulheres sejam
submissas aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a
cabeça da mulher» (5, 22-23). O autor sabe que esta
atitude, tão profundamente arraigada nos costumes e na
tradição religiosa do tempo, deve ser entendida e
interpretada de um modo novo: como uma «submissão
recíproca no temor de Cristo» (cf. Ef 5, 21);
tanto mais que o marido é dito «cabeça» da mulher como
Cristo é cabeça da Igreja; e ele o é para se entregar «a
si mesmo por ela»
(Ef 5, 25 ) e se entregar a si mesmo por ela é dar
até a própria vida. Mas, enquanto na relação Cristo-Igreja
a submissão é só da parte da Igreja, na relação
marido-mulher a «submissão» não é unilateral, mas
recíproca!
Em relação ao «antigo» isto é
evidentemente algo «novo»: é a novidade evangélica.
Encontramos várias passagens em que os escritos
apostólicos exprimem esta novidade, embora nelas se faça
ouvir também aquilo que é «antigo», aquilo que ainda está
arraigado na tradição religiosa de Israel, no seu modo de
compreender e de explicar os textos sagrados como, por
exemplo, a passagem de Génesis (c. 2). (49)
As Cartas apostólicas são dirigidas a
pessoas que vivem num ambiente que tem o mesmo modo de
pensar e de agir. A «novidade» de Cristo é um fato: ela
constitui o conteúdo inequívoco da mensagem evangélica e é
fruto da redenção. Ao mesmo tempo, porém, a consciência de
que no matrimónio existe a recíproca «submissão dos
cônjuges no temor de Cristo», e não só a da mulher ao
marido, deve abrir caminho nos corações e nas
consciências, no comportamento e nos costumes. Este é um
apelo que não cessa de urgir, desde então, as gerações que
se sucedem, um apelo que os homens devem acolher sempre de
novo. O apóstolo escreveu não só: «Em Cristo Jesus ... não
há homem nem mulher», mas também: «não há escravo nem
livre». E, contudo, quantas gerações tiveram que passar,
até que esse princípio se realizasse na história da
humanidade com a abolição do instituto da escravidão! E
que dizer de tantas formas de escravidão, às quais estão
sujeitos homens e povos, que ainda não desapareceram da
cena da história?
O desafio, porém, do «ethos» da
redenção é claro e definitivo. Todas as razões a favor
da «submissão» da mulher ao homem no matrimónio
devem ser interpretadas no sentido de uma «submissão
recíproca» de ambos «no temor de Cristo». A medida do
verdadeiro amor esponsal encontra a sua fonte mais
profunda em Cristo, que é o Esposo da Igreja, sua Esposa.
A dimensão simbólica do «grande
mistério»
25. No texto da Carta aos Efésios
encontramos
uma segunda dimensão da analogia que, no seu conjunto,
deve servir à revelação do «grande mistério»: a
dimensão simbólica. Se o amor de Deus para com o
homem, para com o povo escolhido, Israel, é apresentado
pelos profetas como o amor do esposo pela esposa, tal
analogia exprime a qualidade «esponsal» e o carácter
divino e não humano do amor de Deus: «O teu esposo é o teu
Criador ... que se chama Deus de toda a terra» (Is
54, 5). O mesmo se diga também do amor esponsal de
Cristo redentor: «Com efeito, Deus amou tanto o mundo que
lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16).
Trata-se, portanto, do amor de Deus expresso mediante a
redenção, operada por Cristo. Segundo a Carta paulina,
este amor é «semelhante» ao amor esponsal dos cônjuges
humanos, mas naturalmente não é «igual». A analogia, com
efeito, implica conjuntamente uma semelhança e uma margem
adequada de não-semelhança.
É fácil observá-lo, se tomarmos em
consideração a figura da «esposa». Segundo a Carta aos
Efésios,
a esposa é a Igreja, tal como para os profetas a
esposa era Israel: portanto, é um sujeito colectivo,
e não uma pessoa singular. Este sujeito colectivo é
o Povo de Deus, ou seja, uma comunidade composta de muitas
pessoas, tanto homens como mulheres. «Cristo amou a
Igreja» precisamente como comunidade, como Povo de Deus e,
ao mesmo tempo, nesta Igreja, que na mesma passagem é
chamada também seu «corpo» (cf. Ef 5, 23), ele amou
cada pessoa singularmente. De fato, Cristo remiu todos,
sem excepção, todos os homens e todas as mulheres. Na
redenção exprime-se justamente este amor de Deus e
realiza-se, na história do homem e do mundo, o carácter
esponsal desse amor.
Cristo entrou na história e permanece nela
como o Esposo que «se entregou a si mesmo». «Entregar-se»
significa «tornar-se um dom sincero», da maneira mais
completa e radical: «Ninguém tem maior amor do que este» (Jo
15, 13). Nesta concepção, por meio da Igreja,
todos os seres humanos — tanto homens como mulheres —
são chamados a ser a «Esposa» de Cristo, redentor do
mundo. Assim, «ser esposa», portanto o «feminino»,
torna-se símbolo de todo o «humano», segundo as palavras
de Paulo: «não há homem nem mulher: todos vós sois um
só em Cristo Jesus» (Gál 3, 28).
Do ponto de vista linguístico, pode-se
dizer que a analogia do amor esponsal segundo a Carta
aos Efésios
reporta o que é «masculino» ao que é «feminino», dado
que, como membros da Igreja, também os homens estão
compreendidos no conceito de «Esposa». E isto não pode
causar admiração, pois o apóstolo, para exprimir a sua
missão em Cristo e na Igreja, fala de «filhinhos por quem
eu sofro as dores de parto» (cf. Gál 4, 19).
No âmbito daquilo que é «humano», daquilo que é
humanamente pessoal, a «masculinidade» e a
«feminilidade» se distinguem e, ao mesmo tempo, se
completam e se explicam mutuamente. Isso está presente
também na grande analogia da «Esposa» na Carta aos
Efésios. Na Igreja, todo ser humano — homem e mulher —
é a «Esposa», enquanto acolhe como dom o amor de Cristo
redentor, e enquanto procura corresponder-lhe com o dom da
própria pessoa.
Cristo é o Esposo. Nisto se exprime
a verdade sobre o amor de Deus que «foi o primeiro a nos
amar» (1 Jo 4, 19) e que com o dom gerado por este
amor esponsal pelo homem superou todas as expectativas
humanas: «amou até o fim» (Jo 13, 1). O Esposo — o
Filho consubstancial ao Pai enquanto Deus — tornou-se
filho de Maria, «filho do homem», verdadeiro homem, do
sexo masculino. O símbolo do Esposo é de género
masculino.
Neste símbolo masculino é representado o carácter
humano do amor pelo qual Deus expressou o seu amor divino
por Israel, pela Igreja, por todos os homens. Meditando no
que os Evangelhos dizem sobre o comportamento de Cristo
com as mulheres, podemos concluir que como homem,
filho de Israel, ele revelou a dignidade das
«filhas de Abraão» (cf. Lc 13, 16), a dignidade
possuída pela mulher desde o «princípio» em igualdade
com o homem. E, ao mesmo tempo, Cristo colocou
em evidência toda a originalidade que distingue a
mulher do homem, toda a riqueza a ela conferida no
mistério da criação. No comportamento de Cristo em relação
à mulher realiza-se de maneira exemplar aquilo que o texto
da Carta aos Efésios exprime com o conceito
de «esposo». Precisamente porque o amor divino de Cristo é
amor de Esposo, esse amor é o paradigma e o exemplar de
todo amor humano, particularmente do amor dos
homens-varões.
A Eucaristia
26. Sobre o amplo horizonte do «grande
mistério», que se exprime na relação esponsal entre Cristo
e a Igreja, é possível também compreender de modo adequado
o fato do chamamento dos «Doze». Chamando só homens
como seus apóstolos, Cristo agiu de maneira
totalmente livre e soberana. Fez isto com a mesma
liberdade com que, em todo o seu comportamento, pôs em
destaque a dignidade e a vocação da mulher, sem se
conformar ao costume dominante e à tradição sancionada
também pela legislação do tempo. Por conseguinte, a
hipótese segundo a qual ele teria chamado homens como
apóstolos, seguindo a mentalidade difusa no seu tempo, não
corresponde em absoluto ao modo de agir de Cristo.
«Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho
de Deus com verdade ... pois não fazes acepção de
pessoas» (Mt 22, 16). Estas palavras caracterizam
plenamente o comportamento de Jesus de Nazaré.
Nisto se pode encontrar também uma explicação para o
chamamento dos «Doze». Eles estão com Cristo durante a
última Ceia; só eles recebem o mandato sacramental: «fazei
isto em minha memória» (Lc
22, 19; 1 Cor 11, 24), ligado à instituição da
Eucaristia. Eles, na tarde do dia da Ressurreição, recebem
o Espírito Santo para perdoar os pecados: «àqueles a quem
perdoardes os pecados, ficar-lhes-ão perdoados; àqueles a
quem os retiverdes, ficar-lhes-ão retidos» (Jo 20,
23).
Encontramo-nos no próprio centro do
Mistério pascal, que revela até o fundo o amor esponsal de
Deus. Cristo é o Esposo porque «se entregou a si mesmo»: o
seu corpo foi «dado», o seu sangue foi «derramado» (cf.
Lc
22, 19-20). Deste modo «amou até o fim» (Jo 13, 1).
O «dom sincero» oferecido no sacrifício da Cruz ressalta
de modo definitivo o sentido esponsal do amor de Deus.
Cristo é o Esposo da Igreja, como redentor do mundo.
A Eucaristia é o sacramento da nossa redenção. É o
sacramento do Esposo, da Esposa. A Eucaristia torna
presente e de modo sacramental realiza novamente o ato
redentor de Cristo, que «cria» a Igreja, seu corpo. Com
este «corpo» Cristo está unido como o esposo com a esposa.
Tudo isto está presente na Carta aos Efésios.
No «grande mistério» de Cristo e da Igreja é
introduzida a perene «unidade dos dois», constituída desde
o «princípio» entre o homem e a mulher.
Se Cristo, instituindo a Eucaristia, a
ligou de modo tão explícito ao serviço sacerdotal dos
apóstolos, é lícito pensar que dessa maneira ele queria
exprimir a relação entre homem e mulher, entre o que é
«feminino» e o que é «masculino», querida por Deus, tanto
no mistério da criação como no da redenção. É na
Eucaristia
que, em primeiro lugar, se exprime de modo sacramental
o ato redentor de Cristo Esposo em relação à Igreja
Esposa. Isto se torna transparente e unívoco, quando o
serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age
«in persona Christi», é realizado pelo homem. É uma
explicação que confirma o ensinamento da Declaração
Inter insigniores, publicada por incumbência do Papa
Paulo VI para responder à interrogação sobre a questão da
admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial. (50)
O dom da Esposa
27. O Concílio Vaticano II renovou na
Igreja a consciência da universalidade do sacerdócio. Na
Nova Aliança há um só sacrifício e um só sacerdote:
Cristo. Deste único sacerdócio participam todos os
baptizados,
tanto homens como mulheres, enquanto devem «oferecer a
si mesmos como vítima viva, santa, agradável a Deus» (cf.
Rom 12, 1), dar em toda parte testemunho de Cristo e,
a quem pergunte, dar uma resposta acerca da esperança da
vida eterna (cf. 1 Pdr 3, 15 ). (51) A participação
universal no sacrifício de Cristo, no qual o Redentor
ofereceu ao Pai o mundo inteiro e, particularmente, a
humanidade, faz com que todos, na Igreja, sejam «um reino
de sacerdotes» (Apoc 5, 10; cf. 1 Pdr 2, 9),
isto é, participem não só na missão sacerdotal, mas também
na profética e real de Cristo Messias. Esta participação
determina, outrossim, a união orgânica da Igreja, como
Povo de Deus, com Cristo. Nela se exprime ao mesmo tempo o
«grande mistério» da
Carta aos Efésios: a Esposa unida ao seu Esposo, unida
porque vive a sua vida; unida porque participa na sua
tríplice missão (tria munera Christi); unida de
maneira a responder com um «dom sincero de si mesma»
ao dom inefável do amor do Esposo, redentor do
mundo. Isto diz respeito a todos na Igreja, tanto a
mulheres como a homens, e diz respeito obviamente também
àqueles que são participantes no «sacerdócio ministerial»,
(52) que possui o carácter de serviço. No âmbito do
«grande mistério» de Cristo e da Igreja, todos são
chamados a responder — como uma esposa — com o dom da sua
vida ao dom inefável do amor de Cristo, o qual, como
Redentor do mundo, é o único Esposo da Igreja. No
«sacerdócio real», que é universal, exprime-se
contemporaneamente o dom da Esposa.
Isso é de fundamental importância para
compreender a Igreja na sua própria essência,
fazendo com que se evite transferir à Igreja — também na
sua qualidade de «instituição» composta de seres humanos e
inserida na história — critérios de compreensão e de
julgamento que não dizem respeito à sua natureza. Mesmo
que a Igreja possua uma estrutura «hierárquica», (53)
esta, todavia, se ordena integralmente à santidade dos
membros corpo místico de Cristo. E a santidade é medida
segundo o «grande mistério», em que a Esposa responde com
o dom do amor ao dom do Esposo, e o faz «no Espírito
Santo», pois «o amor de Deus foi derramado em nossos
corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (cf. Rom
5, 5). O Concílio Vaticano II, confirmando o ensinamento
de toda a tradição, recordou que, na hierarquia da
santidade,
precisamente a «mulher», Maria de Nazaré, é «figura»
da Igreja. Ela «precede» todos no caminho rumo à
santidade; na sua pessoa «a Igreja já atingiu a perfeição,
pela qual existe sem mácula e sem ruga» (cf.
Ef 5, 27). (54) Neste sentido, pode-se dizer que a
Igreja é conjuntamente «mariana» e «apostólico-petrina».
(55)
Na história da Igreja, desde os primeiros
tempos existiam — ao lado dos homens — numerosas
mulheres,
para as quais a resposta da Esposa ao amor redentor do
Esposo adquiria plena força expressiva. Como primeiras,
vemos aquelas mulheres que pessoalmente tinham encontrado
Cristo, tinham-no seguido e, depois da sua partida,
juntamente com os apóstolos, «eram assíduas na oração» no
cenáculo de Jerusalém até ao dia do Pentecostes. Naquele
dia, o Espírito Santo falou por meio de «filhos e filhas»
do Povo de Deus, cumprindo o anúncio do profeta Joel (cf.
At 2, 17). Aquelas mulheres, e a seguir outras mais,
tiveram parte activa e importante na vida da Igreja
primitiva, na edificação desde os fundamentos da
primeira comunidade cristã — e das comunidades que se
seguiram — mediante os próprios carismas e o seu
multiforme serviço. Os escritos apostólicos anotam os
seus nomes, como Febe, «diaconisa da Igreja de Cêncreas»
(cf. Rom 16, 1), Prisca com o marido Áquila (cf.
2 Tim 4, 19), Evódia e Síntique (Flp 4, 2),
Maria, Trifena, Perside, Trifosa (Rom 16, 6. 12). O
apóstolo fala de suas «fadigas» por Cristo, e estas
indicam os vários campos de serviço apostólico da Igreja,
a começar pela «igreja doméstica». Nesta, de fato, a «fé
sincera» passa da mãe aos filhos e netos, como realmente
se verificou na casa de Timóteo (cf. 2 Tim 1, 5).
O mesmo se repete no decorrer dos séculos,
de geração em geração, como demonstra a história da
Igreja. A Igreja, com efeito, defendendo a dignidade
da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por
aquelas que — fiéis ao Evangelho — em todo o tempo
participaram na missão apostólica de todo o Povo de Deus.
Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de
família, que corajosamente deram testemunho da sua fé e,
educando os próprios filhos no espírito do Evangelho,
transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja.
Em cada época e em cada país encontramos
numerosas mulheres «perfeitas» (cf. Prov 31, 10),
que — não obstante perseguições, dificuldades e
discriminações — participaram na missão da Igreja. Basta
mencionar aqui Mónica, mãe de Agostinho, Macrina, Olga de
Kiev, Matilde de Toscana, Edviges da Silésia e Edviges de
Cracóvia, Elisabeth de Turíngia, Brígida da Suécia, Joana
d'Arc, Rosa de Lima, Elisabeth Seaton e Mary Ward.
O testemunho e as obras de mulheres
cristãs tiveram um influxo significativo na vida da
Igreja, como também na da sociedade. Mesmo diante de
graves discriminações sociais, as mulheres santas agiram
de «modo livre», fortalecidas pela sua união com Cristo.
Semelhante união e liberdade enraizadas em Deus explicam,
por exemplo, a grande obra de Santa Catarina de Sena na
vida da Igreja e de Santa Teresa de Jesus na vida
monástica.
Também em nossos dias a Igreja não cessa
de enriquecer-se com o testemunho das numerosas mulheres
que realizam a sua vocação à santidade. As mulheres santas
são uma personificação do ideal feminino, mas são também
um modelo para todos os cristãos, um modelo de «sequela
Christi», um exemplo de como a Esposa deve responder
com amor ao amor do Esposo.
VIII
MAIOR É A CARIDADE
Diante das transformações
28. «A Igreja acredita que Cristo, morto e
ressuscitado para todos, pode oferecer ao homem, por seu
Espírito, a luz e as forças que lhe permitirão
corresponder à sua vocação suprema». (56) Podemos aplicar
estas palavras da Constituição conciliar Gaudium et
Spes ao tema das presentes reflexões. O apelo
particular à dignidade da mulher e à sua vocação, próprio
do tempo em que vivemos, pode e deve ser acolhido na «luz
e na força» que o Espírito prodigaliza ao homem: também ao
homem da nossa época, rica de múltiplas transformações. A
Igreja «acredita que a chave, o centro e o fim» do homem,
como também «de toda a história humana se encontram no seu
Senhor e Mestre» e «afirma que sob todas as
transformações permanecem muitas coisas imutáveis, que tem
seu fundamento último em Cristo; o mesmo ontem, hoje e
por toda a eternidade». (57)
Com estas palavras a Constituição sobre a
Igreja no mundo contemporâneo indica-nos o caminho a
seguir na assunção dos empenhos relativos à dignidade da
mulher e à sua vocação, no cenário das transformações
significativas para o nosso tempo. Podemos enfrentar essas
transformações de modo correcto e adequado somente se
retomarmos o caminho dos fundamentos que se encontram
em Cristo, das verdades e dos valores «imutáveis»,
dos quais Ele mesmo permanece «testemunha fiel» (cf.
Apoc
1, 5) e Mestre. Um modo diverso de agir conduziria a
resultados duvidosos, e até mesmo erróneos e ilusórios.
A dignidade da mulher e a ordem do
amor
29. A passagem já citada da Carta aos
Efésios
(5, 21-33), na qual a relação entre Cristo e a Igreja é
apresentada como vínculo entre o Esposo e a Esposa, faz
referência também à instituição do matrimónio
segundo as palavras do Livro do Génesis (cf. 2,
24). Ela une a verdade sobre o matrimónio como
sacramento primordial com a criação do homem e da mulher à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gen 1, 27;
5, 1). Graças ao significativo confronto presente na
Carta aos Efésios,
adquire plena clareza aquilo que decide da
dignidade da mulher, quer aos olhos de Deus, Criador e
Redentor, quer aos olhos do homem: do homem e da
mulher. No fundamento do desígnio eterno de Deus, a mulher
é aquela na qual a ordem do amor no mundo criado das
pessoas encontra um terreno para deitar a sua primeira
raiz. A ordem do amor pertence à vida íntima do próprio
Deus, à vida trinitária. Na vida íntima de Deus, o
Espírito Santo é a hipóstase pessoal do amor. Mediante o
Espírito, Dom incriado, o amor se torna um dom para as
pessoas criadas. O amor, que vem de Deus, comunica-se
às criaturas: «O amor de Deus é derramado nos nossos
corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (cf.
Rom 5, 5).
O chamamento da mulher à existência junto
ao homem («um auxiliar que lhe seja semelhante»: cf.
Gen 2, 18) na «unidade dos dois» oferece, no mundo
visível das criaturas, condições particulares a fim de que
«o amor de Deus seja derramado nos corações» dos seres
criados à sua imagem. Se o autor da Carta aos Efésios
chama Cristo Esposo e a Igreja Esposa, ele confirma
indirectamente, com tal analogia, a verdade sobre a
mulher como esposa. O Esposo é aquele que ama. A
Esposa é amada: é aquela que recebe o amor para, por
sua vez, amar.
A citação do Génesis — relida à luz
do símbolo esponsal da Carta aos Efésios —
permite-nos intuir uma verdade que parece decidir
essencialmente a questão da dignidade da mulher e, em
seguida, também a da sua vocação: a dignidade da mulher
é medida pela ordem do amor, que é essencialmente
ordem de justiça e de caridade. (58)
Só a pessoa pode amar e só a pessoa pode
ser amada. Esta é uma afirmação, em primeiro lugar, de
natureza ontológica, da qual emerge depois uma afirmação
de natureza ética. O amor é uma exigência ontológica e
ética da pessoa. A pessoa deve ser amada, pois só o amor
corresponde àquilo que é a pessoa. Assim se explica o
mandamento do amor, conhecido já no Antigo Testamento
(cf. Dt 6, 5; Lev 19, 18) e colocado por
Cristo no próprio centro do «ethos» evangélico (cf.
Mt 22, 36-40; Mc 12, 28-34). Assim se explica
também o primado do amor expresso nas palavras de
São Paulo na Carta aos Coríntios: «maior é a
caridade» (cf. 1 Cor 13, 13).
Se não se recorre a essa ordem e a esse
primado, não se pode dar uma resposta completa e adequada
à interrogação sobre a dignidade da mulher e sobre a sua
vocação. Quando dizemos que a mulher é aquela que recebe
amor para, por sua vez, amar, não entendemos só ou antes
de tudo a relação esponsal específica do matrimónio .
Entendemos algo mais universal, fundado no próprio fato de
ser mulher no conjunto das relações interpessoais, que nas
formas mais diversas estruturam a convivência e a
colaboração entre as pessoas, homens e mulheres. Neste
contexto, amplo e diversificado, a mulher representa um
valor particular como pessoa humana e, ao mesmo tempo,
como pessoa concreta, pelo fato da sua feminilidade.
Isto se refere a todas as mulheres e a cada uma delas,
independentemente do contexto cultural em que cada uma se
encontra e das suas características espirituais, psíquicas
e corporais, como, por exemplo, a idade, a instrução, a
saúde, o trabalho, o fato de ser casada ou solteira.
A citação da Carta aos Efésios, que
consideramos, leva-nos a pensar numa espécie de
«profetismo» particular da mulher na sua feminilidade. A
analogia do Esposo e da Esposa fala do amor com que todo
homem é amado por Deus em Cristo, todo homem e toda
mulher. Todavia, no contexto da analogia bíblica e na base
da lógica interna do texto, é precisamente a mulher aquela
que manifesta a todos esta verdade: a esposa. Esta
característica «profética» da mulher na sua feminilidade
encontra a sua mais alta expressão na Virgem Mãe de
Deus. É em relação a ela que se coloca em relevo, do modo
mais pleno e directo, o elo íntimo que une a ordem do amor
— que entra no âmbito do mundo das pessoas humanas através
de uma Mulher — com o Espírito Santo. Maria escuta na
Anunciação: «Virá sobre ti o Espírito Santo» (Lc
1, 35).
Consciência de uma missão
30. A dignidade da mulher está intimamente
ligada com o amor que ela recebe pelo próprio fato da sua
feminilidade e também com o amor que ela, por sua vez,
doa.
Confirma-se assim a verdade sobre a pessoa e sobre o amor.
Acerca da verdade da pessoa, deve-se uma vez mais recorrer
ao Concílio Vaticano II: «O homem, a única criatura na
terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar
plenamente senão por um dom sincero de si mesmo». (59)
Isto se refere a todo homem, como pessoa criada à imagem
de Deus, quer homem quer mulher. A afirmação de natureza
ontológica aqui contida está a indicar também a dimensão
ética da vocação da pessoa. A mulher não pode se
encontrar a si mesma senão doando amor aos outros.
Desde o «princípio» a mulher — como o
homem — foi criada e «colocada» por Deus precisamente
nesta ordem de amor. O pecado das origens não anulou esta
ordem, não a apagou de modo irreversível. Provam-no as
palavras bíblicas do Proto-Evangelho (cf. Gen 3,
15). Nas presentes reflexões observamos o lugar
singular da «mulher» nesse texto chave da Revelação.
Além disso, é preciso observar como a própria mulher, que
chega a ser «paradigma» bíblico, se encontra também na
perspectiva escatológica do mundo e do homem, expressa no
Apocalipse. (60) É «uma mulher vestida de sol»,
com a lua debaixo dos pés e uma coroa de estrelas
sobre a cabeça (cf. Apoc 12, 1). Pode-se dizer: uma
mulher à medida do cosmos, à medida de toda a obra da
criação. Ao mesmo tempo, ela sofre «as dores e o tormento
do parto» (Apoc 12, 2), como Eva «mãe de todos os
viventes» (Gen 3, 20). Sofre também porque, «diante
da mulher que está para dar à luz» (cf. Apoc
12, 4), se põe o «grande dragão, a serpente antiga» (Apoc
12, 9), conhecido já no Proto-Evangelho: o Maligno, «pai
da mentira» e do pecado (cf. Jo 8, 44). De fato, a
«serpente antiga» quer devorar «o filho». Se vemos neste
texto o reflexo do Evangelho da infância (cf. Mt 2,
13. 16), podemos pensar que no paradigma bíblico da
«mulher» está inscrita, desde o início a até ao fim da
história, a luta contra o mal e contra o Maligno. Esta
é também a luta pelo homem, pelo seu verdadeiro bem, pela
sua salvação. Não quererá a Bíblia dizer-nos que
precisamente na «mulher», Eva-Maria, a história registra
uma luta dramática em favor de todo homem, a luta pelo seu
fundamental «sim» ou «não» a Deus e ao seu desígnio eterno
sobre o homem?
Se a dignidade da mulher testemunha o amor
que ela recebe para, por sua vez, amar, o paradigma
bíblico da «mulher» parece desvelar também qual seja a
verdadeira ordem do amor que constitui a vocação da
mesma mulher. Trata-se aqui da vocação no seu significado
fundamental, pode-se dizer universal, que depois se
concretiza e se exprime nas múltiplas «vocações» da mulher
na Igreja e no mundo.
A força moral da mulher, a sua força
espiritual une-se à consciência de que Deus lhe confia
de uma maneira especial o homem, o ser humano.
Naturalmente, Deus confia todo homem a todos e a cada um.
Todavia, este ato de confiar refere-se de modo especial à
mulher — precisamente pelo fato da sua feminilidade — e
isso decide particularmente da sua vocação.
Inspirando-se nesta consciência e neste
acto de confiança, a força moral da mulher exprime-se em
numerosíssimas figuras femininas do Antigo Testamento, do
tempo de Cristo, das épocas sucessivas, até aos nossos
dias.
A mulher é forte pela consciência dessa
missão,
forte pelo fato de que Deus «lhe confia o homem», sempre e
em todos os casos, até nas condições de discriminação
social em que ela se possa encontrar. Esta consciência e
esta vocação fundamental falam à mulher da dignidade que
ela recebe de Deus mesmo, e isto a torna «forte» e
consolida a sua vocação. Deste modo, a «mulher perfeita»
(cf. Prov 31, 10) torna-se um amparo insubstituível
e uma fonte de força espiritual para os outros, que
percebem as grandes energias do seu espírito. A estas
«mulheres perfeitas» muito devem as suas famílias e, por
vezes, inteiras Nações.
Na nossa época, os sucessos da ciência e
da técnica consentem alcançar, num grau até agora
desconhecido, um bem-estar material que, enquanto favorece
alguns, conduz outros à marginalização. Desse modo, este
progresso unilateral pode comportar também um gradual
desaparecimento da sensibilidade pelo homem, por aquilo
que é essencialmente humano. Neste sentido, sobretudo
os nossos dias aguardam a manifestação daquele
«Génio» da mulher que assegure a sensibilidade pelo homem
em toda circunstância: pelo fato de ser homem! E porque a
maior é a caridade» (cf. 1 Cor 13, 13).
Portanto, uma leitura atenta do paradigma
bíblico da «mulher» — desde o Livro do Génesis até
ao
Apocalipse — confirma em que consistem a dignidade e a
vocação da mulher e o que nelas é imutável e não se
desactualiza, tendo o seu «fundamento último em Cristo, o
mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade». (61) Se o
homem é por Deus confiado de modo especial à mulher, isto
não significará talvez que Cristo espera dela a
realização do «sacerdócio real» (1 Pdr 2, 9),
que é a riqueza que ele deu aos homens? Esta mesma herança
Cristo, sumo e único sacerdote da nova e eterna Aliança e
Esposo da Igreja, não cessa de submeter ao Pai, mediante o
Espírito Santo, para que Deus seja «tudo em todos» (1
Cor 15, 28). (62)
Então chegará ao cumprimento definitivo a
verdade que «maior é a caridade» (cf. 1 Cor 13,
13).
IX
CONCLUSÃO
«Se tu conhecesses o dom de Deus»
31. «Se tu conhecesses o dom de Deus» (Jo
4, 10), diz Jesus à Samaritana num daqueles admiráveis
colóquios, nos quais ele mostra quanta estima tem pela
dignidade de cada mulher e pela vocação que lhe consente
participar na sua missão de Messias.
As presentes reflexões, que agora chegam
ao fim, são orientadas a reconhecer, no interior do «dom
de Deus», aquilo que Ele, criador e redentor, confia à
mulher, a toda mulher. No Espírito de Cristo, com efeito,
ela pode descobrir o significado completo da sua
feminilidade e dispor-se desse modo ao «dom sincero de si
mesma» aos outros, e assim «encontrar-se».
No Ano Mariano, a Igreja deseja
render graças
à Santíssima Trindade pelo «mistério da mulher» — por
toda mulher — e por aquilo que constitui a eterna medida
da sua dignidade feminina, pelas «grandes obras de Deus»
que na história das gerações humanas nela e por seu meio
se realizaram. Em última análise, não foi nela e por seu
meio que se operou o que há de maior na história do homem
sobre a terra: o evento pelo qual Deus mesmo se fez homem?
A Igreja, portanto, rende graças
por todas e cada uma das mulheres: pelas mães, pelas
irmãs, pelas esposas; pelas mulheres consagradas a Deus na
virgindade; pelas mulheres que se dedicam a tantos e
tantos seres humanos, que esperam o amor gratuito de outra
pessoa; pelas mulheres que cuidam do ser humano na
família, que é o sinal fundamental da sociedade humana;
pelas mulheres que trabalham profissionalmente, mulheres
que, às vezes, carregam uma grande responsabilidade
social; pelas mulheres «perfeitas» e pelas mulheres
«fracas» — por todas: tal como saíram do coração de Deus,
com toda a beleza e riqueza da sua feminilidade; tal como
foram abraçadas pelo seu amor eterno; tal como, juntamente
com o homem, são peregrinas sobre a terra, que é, no
tempo, a «pátria» dos homens e se transforma, às vezes,
num «vale de lágrimas»; tal como assumem, juntamente com o
homem,
uma comum responsabilidade pela sorte da humanidade,
segundo as necessidades quotidianas e segundo os
destinos definitivos que a família humana tem no próprio
Deus, no seio da inefável Trindade.
A Igreja agradece todas as
manifestações do «Génio» feminino surgidas no curso da
história, no meio de todos os povos e Nações; agradece
todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres
na história do Povo de Deus, todas as vitórias que deve à
fé, à esperança e caridade das mesmas: agradece todos
os frutos de santidade feminina.
A Igreja pede, ao mesmo tempo, que estas
inestimáveis «manifestações do Espírito» (cf. 1 Cor
12, 4 ss),
com grande generosidade concedidas às «filhas» da
Jerusalém eterna, sejam atentamente reconhecidas e
valorizadas, para que redundem em vantagem comum para a
Igreja e para a humanidade, especialmente em nosso tempo.
Meditando o mistério bíblico da «mulher», a Igreja reza, a
fim de que todas as mulheres encontrem neste mistério a si
mesmas e a sua «suprema vocação».
Maria, que «precede toda a Igreja
no caminho da fé, da caridade e da perfeita união com
Cristo», (63) obtenha para todos nós também este
«fruto», no Ano que lhe dedicamos, no limiar do
terceiro milénio da vinda de Cristo.
Com estes votos, dou a todos os fiéis e de
maneira especial às mulheres, irmãs em Cristo, a Bênção
Apostólica.
Dado em Roma, junto a São Pedro, no
dia 15 de Agosto — Solenidade da Assunção de Maria
Santíssima — do ano de 1988, décimo de Pontificado.