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DOCUMENTOS OFICIAIS DA IGREJA
 
Catequeses quaresmais sobre o Amor

Cardeal Patriarca de Lisboa
Quaresma de 2002

 

HOMILIA DO CARDEAL PATRIARCA
NA MISSA DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS

"Evangelizar o Amor"


    1. Em Igreja, iniciamos hoje os exercícios quaresmais, preparando a celebração da Páscoa deste ano da graça. Na Liturgia da Igreja, esta é a mais longa preparação de uma festa cristã. Certamente porque a Páscoa ocupa na Liturgia e na existência cristã um lugar central, único e decisivo. É a festa da nossa redenção e do dom do Espírito, início de uma vida nova e renovada. A Páscoa marca a diferença e sublinha a passagem da existência humana à vida cristã. Preparar a Páscoa é assumir essa diferença, recuperar, na nossa vida concreta, toda a novidade libertadora de homens e mulheres reconciliados com Deus e renovados pelo Espírito de Jesus Ressuscitado.
    Na continuidade da minha Carta Pastoral e da Mensagem que para vós escrevi no início desta Quaresma, proponho como tema para a nossa caminhada quaresmal deste ano "evangelizar o amor", ou seja, escutar a Palavra de Deus e recorrer a todos os meios da graça para purificar todas as expressões do nosso amor humano, tantas vezes ainda manchado pelos nossos pecados e abrirmo-nos ao dom do Espírito, que derrama o amor de Deus nos nossos corações. Trata-se do nosso coração, endurecido pelos interesses e preocupações da vida, em ordem a deixar que o Senhor nos dê um "coração novo", para aceitarmos a sua proposta de aliança, nova e definitiva aliança selada no sangue de Cristo.
    É o apelo que Deus nos faz através do Profeta Joel: "Voltai para mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes. Voltai para o Senhor vosso Deus". Há neste apelo uma urgência e ela é a própria urgência de Deus. O Profeta confessa que Deus se encheu de brios e quer perdoar ao seu povo. Essa mesma urgência de Deus ressalta da Carta de Paulo ao Coríntios: "Nós vos pedimos por amor de Cristo: reconciliai-vos com Deus".
    É impressionante esta urgência de Deus na mudança do nosso coração. Nós é que precisamos e é Ele que tem pressa, que se deixa devorar pela urgência de nos poder amar. É a intensidade de amor do esposo que anseia pela intimidade de amor com o seu Povo e com cada um de nós. A oferta da salvação não é só por causa de nós e para nosso bem; é por causa de Deus, da generosidade do seu amor, do seu propósito de aliança com os homens, da manifestação da sua glória. Como é pobre uma perspectiva de salvação, vista apenas como busca de solução para a nossa vida. A salvação envolve profundamente Deus no seu desejo de dom, na delicadeza da sua ternura misericordiosa, na fecundidade do seu poder criador. Deus tem urgência em que lhe abramos o coração, porque decidiu, desde toda a eternidade, ser Deus connosco, ser Deus em nós. É a força de um desígnio, a voragem de uma escolha de amor. É por isso que é muito triste para Deus a nossa recusa ou mesmo a lentidão da nossa resposta de conversão a Ele, acolhendo o Seu amor.
    Na Páscoa celebramos o momento em que um homem, Jesus Cristo, acolheu totalmente essa voragem de amor de Deus Seu Pai. E no coração verdadeiramente novo de Jesus Cristo está a esperança de uma mais total e profunda resposta dos homens ao amor de Deus. Só essa esperança fez com que Deus nos amasse infinitamente, em Jesus Cristo, amor que nos envolveu totalmente no dia do nosso baptismo, momento em que nos unimos a Jesus Cristo e aceitámos esta caminhada de renovação contínua do coração.

    2. Segundo a mensagem do Profeta, este voltar o coração para Deus é feito com "jejuns, lágrimas e lamentações". "Tocai trombetas em Sião, ordenai um jejum!". O regresso a Deus é um caminho de penitentes. Esta mesma exigência mantém-se na pedagogia da Quaresma.
    Por detrás da exigência da penitência está a realidade do pecado, que é complexa e subtil. Regressamos a Deus vindos de muito longe, daquele afastamento da intimidade com o Senhor a que nos conduziram os nossos sentimentos, as escolhas da nossa vontade, as opções do nosso coração. Sofrer na carne sublinha o contraste entre a santidade de Deus e o nosso pecado. "Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes". A penitência ajuda-nos a compreender como é despojado o caminho do amor e exigente a intimidade com Deus. Somos chamados, é certo, a participar na comunhão divina com todo o nosso ser, espírito e corpo; todos os dinamismos da nossa natureza podem ser convertidos em força do amor de Deus. Mas também é certo que, para isso, a exaltação da nossa natureza precisa de ser reconduzida à humildade, para não se tornar obstáculo no caminho da caridade.
    A penitência, enquanto mortificação dos sentidos, é participação na paixão de Cristo. "Ele que não conhecera o pecado, Deus identificou-O com o pecado por amor de nós, para que em Cristo, nos tornássemos justos aos olhos de Deus". A penitência do cristão tem uma dupla dimensão: unir-se ao sofrimento de Cristo, que dá ao meu sofrimento a capacidade de me redimir; participar na fecundidade do seu sofrimento inocente, que merece aos pecadores a graça de encetarem o caminho da redenção. Se em Adão somos pecadores, precisando de sofrer pelos nossos pecados, em Cristo participamos de uma inocência recuperada, na vida nova segundo o Espírito, e podemos merecer para os outros a redenção. O mistério da Cruz, agora participado por nós, continua a ser o único sinal de uma esperança verdadeira, levantado perante as nações.

    3. A penitência, porque é um caminho de humildade, ajuda-nos a viver a gratuidade da salvação. Purifica tudo o que são critérios mundanos: o parecer bem, o dar nas vistas, o gostar de ser considerado ou elogiado. A penitência coloca-nos despojados perante Deus, à única razão de ser e a única recompensa. Numa sociedade inebriada de vaidades, retalhada por dissenções, magoada por egoísmos e violências, esta humildade silenciosa de quem busca o amor com os olhos postos apenas em Deus, pode ser portadora de uma fecundidade salvífica que escapa às nossas análises. Durante a Quaresma sejamos esse povo humilde e penitente, que merece para a nossa sociedade a graça da conversão.
 

Sé Patriarcal, 13 de Fevereiro de 2002


† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

 


 

CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA
NO 1.º DOMINGO DA QUARESMA

"Do Amor à Caridade"


    1. O amor é o tema mais presente nas diversas culturas da humanidade, quase a sugerir que o sentido da vida humana se decide na experiência de amor e na forma de amar. O nosso tempo não faz excepção e o amor ocupa o centro da busca humana: é cantado na poesia, analisado na literatura, celebrado na dedicação generosa ao próximo. Ele é festa e drama, luz e interrogação, paixão e ternura serena, desejo e posse, contemplação e estímulo para a acção; busca de intimidade e comunhão ou simples procura da própria felicidade, tornando-se, tantas vezes, o rosto disfarçado do egoísmo.
    No amor sobressaem duas realidades: a pessoa que ama e a realidade amada, a que poderíamos chamar o "objecto" do amor. O sujeito do amor é sempre a pessoa humana, no seu todo, com o espírito e com o corpo, com a inteligência e com o coração; o "objecto amado" podem ser realidades materiais: pode-se amar a natureza, um animal, uma obra de arte. Mas é quando a realidade amada é outra pessoa, que o amor atinge a grandeza digna do homem, pois aí os sujeitos do amor podem ser, ao mesmo tempo, amantes e amados. O amor proporciona, então, o encontro profundo entre pessoas, a construção de uma intimidade, a alegria libertadora da comunhão. Mas, quando alguém reduz outra pessoa a simples "objecto amado", dá-se a degradação do próprio amor, porque a pessoa do outro é desejada ou possuída como objecto que gera algo de útil e agradável para o próprio: bem estar, prazer, utilidade pelo que faz ou significa.
    Assim o ser humano fala de amor nas diversas situações do seu conviver com os outros: amam-se os amigos, os pais e os filhos, amam-se um homem ou uma mulher, ama-se a Deus e cada uma destas experiências de amor têm as suas características próprias e expressões específicas. É próprio do ser humano não esgotar a sua capacidade de amar apenas numa destas experiências de amor; ao contrário, cada experiência de amor vivida com generosidade abre para todas as outras. As mais envolventes de todo o ser tornam a pessoa capaz de amar em todas as circunstâncias. O amor de Deus, quando vivido com verdade e radicalidade, influencia todas as experiências de amor.

    Amarás a Deus sobre todas as coisas.
    2. O judeo-cristianismo é a religião que mais valoriza a experiência de amor, exactamente porque nos revela Deus como Pessoa que ama e quer ser amada, com quem o homem pode estabelecer uma verdadeira intimidade de amor e comunhão. E se é possível ao homem ser amado por Deus e abandonar-se a Ele, numa resposta de amor, essa experiência influencia todas as experiências humanas de amor. O amor do próximo brota do amor de Deus; a comunhão com Deus dá ao homem a força e o dinamismo de progredir continuamente, em qualidade, em todas as suas experiências do amor.
    Do amor à caridade, enuncia-nos o itinerário do crescimento do amor, onde as capacidades naturais de amar, enfraquecidas pelo pecado, são redimidas e potenciadas pela força do Espírito de Deus, isto é, pela energia amorosa que nos vem do facto de sermos amados por Deus e de o procurarmos amar, mais que todas as outras realidades humanas. É um tema que nos situa no âmago da relação entre a nossa natureza humana e o dom da graça divina, pois a caridade significa aquele grau de perfeição do amor que só é possível ao homem com a força do Espírito Santo. A caridade acontece naqueles que fizeram da sua experiência de amor a Deus, a fonte de toda a sua capacidade de amar. "Amar a Deus sobre todas as coisas" e seguir o mandamento novo de Jesus "amai-vos uns aos outros como Eu vos amei", só é possível ao homem, com a força de Deus. Mas sendo sobrenatural, é também a plena realização das nossas capacidades naturais de amar. A caridade é a verdade plena do amor, porque é o amor ao ritmo do Espírito de Deus.


    Deus deu-nos um coração capaz de amar.
    3. Não é a fé que nos dá a capacidade de amar. Deus criou-nos à sua imagem e, por isso, capazes de amar. Esta capacidade foi ferida pelo pecado e precisa de ser resgatada pelo amor misericordioso de Deus. A redenção restitui ao coração humano a sua capacidade de amar e eleva-o à plenitude dessa capacidade, amando a Deus e amando como Deus ama.
    É na sua capacidade de amar que o homem se assemelha mais a Deus. O amor humano tem, em gérmen, todas as características do amor divino, embora não consiga, sem a graça, vivê-las em plenitude.
    A atracção: todas as experiências de amor inter-pessoal começam nesse sentir-se atraído pelo outro. De repente uma outra pessoa torna-se especial, porventura única, porque há nela algo que me atrai: a sua beleza, a sua bondade, a sua inteligência, o seu mistério. A atracção do bem e da beleza está, quase sempre, na origem do amor. Nesse algo que nos atrai reconhecemos a nossa identidade profunda, os nossos anseios mais íntimos, a definição do nosso próprio ser. Começar a amar é deixar-se guiar por essa atracção, em busca de uma relação. Jesus comparou o Reinos dos Céus a um tesouro que, quando se descobre, faz-se tudo para o alcançar. E fala de atracção ao referir o amor dos discípulos para com Ele: "Ninguém vem a Mim (isto é, me seguirá) se o Pai não o atrair" (Jo. 6,44).
    Só nos sentimos atraídos por alguém cuja realidade é atraente. A caridade começa sempre na atracção de Deus. Jesus refere-se a isso quando nos diz que foi Ele que nos amou primeiro. A atracção de Deus chega a ser tão forte que se torna irresistível. Sentir-se atraído é o primeiro convite a amar.
    A revelação: a atracção conduz-nos à pessoa amada. Mas o amor só começa se houver revelação. A beleza que nos atrai é escondida e misteriosa, cada pessoa guarda no segredo do seu coração o seu tesouro. E desvelá-lo ao outro é já atitude generosa do dom de si mesmo. Se aquele que me atrai me aceita e se revela, o amor começa. A palavra que revela, o gesto que anuncia, constróem o encontro progressivo entre pessoas que se amam. É por isso que o amor é a mais verdadeira fonte do conhecimento do outro. As pessoas que se amam aprendem a conhecer-se progressivamente ao ritmo do amor.
    Esta exigência de revelação constitui uma das maiores dificuldades do amor humano. As pessoas querem amar e ser amadas, mas não estão dispostas a revelar-se, guardam os seus segredos, escondem o seu mistério. Por vezes esperam ou até exigem a revelação do outro, mas não estão dispostas a abandonar-se na confiança. Entre desconhecidos o amor não cresce, pode mesmo murchar e morrer. Por outro lado o conhecimento mútuo aumenta a atracção recíproca.
    Na experiência do amor de Deus, a Sua revelação é constitutiva do próprio amor. O Deus que nos atrai revela-se àqueles que o procuram. Revelando-se, Deus conduz-nos à intimidade com Ele; e quanto mais se revela, mais nos atrai. E ao desvelar-se a Si Mesmo, Deus revela-nos o seu projecto de amor para nós, o Seu desígnio de salvação. A sua Palavra é resposta de amor e luz que nos guia à plenitude da vida e do amor.
    A contemplação: toda a verdadeira experiência de amor inclui momentos de contemplação. Ao entrar, pela revelação, na intimidade da pessoa que nos atraiu, a beleza agora experimentada leva à contemplação. Este êxtase de amor perante a pessoa amada é dos aspectos mais cantados pelos poetas. No caso do amor de Deus, este contemplar a pessoa amada chama-se adoração. "É o Senhor teu Deus que tu adorarás e só a Ele prestarás culto" (Mt. 4,10). Na nossa caminhada de fé essa contemplação adorante é apenas inicial. Ela intensifica-se ao ritmo do acolhimento da Palavra reveladora de Deus e dos dinamismos do Seu amor recebidos no íntimo do nosso coração, mas só no Céu ela será perfeita, pois só então "conheceremos como somos conhecidos" e veremos, não como num espelho, mas face a face (1Cor. 13,12).
    No amor humano esta dimensão contemplativa exprime-se espontaneamente, ao ritmo do amor: o ficar encantado pelo outro, o sentido de gratidão tão próprio do amor, a harmonia e a serenidade interiores que brotam do amor, momentos de profunda comunhão envolvendo a totalidade do ser. Se nada disso acontece ou se tudo isso deixou de acontecer, é porque o amor foi semente que não germinou e planta que não floriu.
    A intimidade: todo o dinamismo amoroso busca uma experiência de intimidade entre pessoas. É o que, em linguagem cristã, se chama a comunhão. A intimidade entre pessoas significa a revelação total de um ao outro, com o dom de todo o ser, aceitando ser conhecido, para conhecer. A intimidade realiza a experiência unitiva, expressão máxima do amor. Os sujeitos da relação amorosa encontram-se de tal modo um no outro, que se sentem como um só. "E serão dois numa só carne" (Gen. 2,24).
    A experiência religiosa, na revelação judaico-cristã, resume-se à construção de uma intimidade entre Deus e o homem, entre Deus que se nos revela ser Ele mesmo uma comunhão de Pessoas, e o homem que é chamado a entrar nessa comunhão de amor. É a proposta de aliança feita por Deus a Abraão, cuja plenitude será revelada por Jesus: "E nós viremos a Ele e faremos n'Ele a nossa morada" (Jo. 14,23). Esta intimidade com Deus, quando acontece, torna-se central e decisiva, dá sentido a todas as experiências de intimidade construídas entre pessoas humanas, que encontram a sua verdade sendo reconduzidas à intimidade de Deus, e preenche toda a ânsia de intimidade do coração humano. O amor desabrocha na caridade. Veremos noutro dia que é por isso que a virgindade pode ser uma experiência de amor totalizante, realizando plenamente a ânsia de amor do coração humano.
    Em todas as suas buscas e dramas de amor, o ser humano procura a experiência de intimidade. Mas tantas vezes não a consegue por fragilidade e infidelidade. Toda a forma de egoísmo, que reduz a pessoa amada à categoria de objecto possuído; toda a dificuldade em se revelar, escondendo-se nos seus segredos; toda a falta de generosidade confiante, que impede a entrega sem limites, impedem essa intimidade unitiva. Aí se experimenta que o coração humano precisa de redenção e que a autêntica intimidade só pode ser fruto da graça do Espírito, expressão do amor-caridade.
    A ternura: é o dinamismo fundamental que exprime todas estas dimensões do amor. A ternura é contemplação do ser amado, é entrega generosa e totalizante, é revelação do coração, é abertura à intimidade. Ela exprime o encantamento pelo outro e é disposição de intimidade. É a expressão do amor que envolve, mais espontaneamente, a totalidade do ser, na generosidade gratuita da entrega ao outro. Onde não houver ternura, dificilmente haverá amor.
    A ternura exprime uma das qualidades mais belas do amor: a bondade e a misericórdia. Amar é ser bom. A ternura é generosa, tudo dá, tudo faz pelo bem do outro, tudo desculpa, tudo perdoa. Só a ternura pode curar os corações feridos e voltar a unir aqueles a quem a infidelidade separou. Os atributos da ternura são os mesmos com que S. Paulo descreve a caridade (1Cor. 13). É por isso que, na Sagrada Escritura, a ternura é o principal atributo do amor de Deus por nós. Só assim Deus nos podia amar, sendo bom, misericordioso e cheio de compaixão.
    A incapacidade de ternura é o efeito mais dramático do pecado no coração humano, aquilo a que o Evangelho chama a "dureza do coração". A incapacidade de ternura significa a incapacidade de amar e sublinha a necessidade da transformação, pela graça, desse coração empedernido.

    A redenção do amor.
    4. Toda a beleza do coração humano se exprime nesta capacidade de amar. Mas aí reside, também, o rosto doloroso da aventura humana, a corrupção desse dinamismo de amor. Quanta profanação da palavra amor, que esconde o egoísmo, a insensibilidade, a incapacidade de ternura e de comunhão. No ser humano, enfraquecido pelo pecado, o seu coração precisa de ser redimido, para realizar a sua vocação de amor. Já no Antigo Testamento é claro que o chamamento à aliança com Deus supõe a renovação do coração. Os profetas denunciam a corrupção e a dureza do coração, que torna os israelitas incapazes da aliança. "Este povo tem um coração desviado e rebelde" (Jr. 5,23), "um coração incircunciso" (Lv. 26,41), "um coração mau" (Jr. 7,24). Eles precisam de invocar Deus e Lhe pedir que lhes recrie "um coração puro" (Sl. 51,12). E esta é a grande promessa da redenção, a promessa de um "coração novo". "Eu derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; de todas as vossas imundices e de todos os vossos ídolos. Eu vos purificarei. Dar-vos-ei um coração novo e porei em vós um espírito novo, tirarei da vossa carne o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Porei o meu Espírito em vós e farei que caminheis segundo as minhas Leis" (Ez. 36, 25-28).
    Esta promessa de um coração renovado viabilizará a aliança como uma união de ternura e de amor: "desposar-te-ei para sempre, desposar-te-ei na justiça e no direito, na ternura e no amor; desposar-te-ei na fidelidade e tu conhecerás o Senhor" (Os. 2,21-22).
    Jesus inicia a sua pregação por um convite à conversão do coração (Mc. 1, 15), fundamental para entrar na dinâmica do Reino. Jesus, o verdadeiro e definitivo "coração novo", realiza entre o homem e Deus o amor radical e definitivo, a plenitude da aliança. Mas misteriosamente a expressão sublime desse amor novo é a Sua morte na Cruz, o seu Sangue derramado é o sinal da aliança definitiva, e na sua entrega Ele redime o nosso coração. No baptismo mergulhamos com Ele, na morte, para ressurgirmos com um coração novo. O caminho do amor-caridade voltou a ser possível, sabendo nós que no nosso caminho de amor encontramos sempre a exigência da Cruz.
    O itinerário que nos leva do amor à caridade passa pela vivência do mistério pascal, porque todos os nossos dinamismos de amor precisam de ser purificados e redimidos. O caminho do amor não é fácil, tantas vezes significa aceitar morrer para viver, superar na renúncia e no sofrimento os instintos de facilidade a que nos conduz o nosso desejo de amar. O caminho do amor é o caminho da generosidade e da coragem.

    A caridade é um dom do Espírito.
    5. A redenção do coração humano, radicalmente garantida no amor total de Cristo na Cruz, torna-se viva e recriadora em cada homem, através do dom do Espírito Santo, Ele próprio o amor divino personificado. É por isso que a redenção não produz fruto automático no homem; mesmo depois da morte de Cristo continua a haver corações empedernidos. É preciso unir-se a Cristo morto e ressuscitado, pela fé e pelo baptismo e abrir o coração ao Amor, para acolher o dom do Espírito transformador. Só Ele nos dará um "coração novo", capaz de acolher o amor divino e amar com a força de Deus, na realidade começar a amar como Deus ama. Deus revela-se-nos, então, com a ternura de um Pai, bondoso e misericordioso, que nos atrai cada vez mais e se desvela progressivamente no Seu mistério. Dirigir-se a Deus como Pai só é possível pela acção do Espírito Santo (Rom. 8,15). O Espírito Santo derrama nos nossos corações o amor de Deus (Rom. 5,5). Esse amor tem a marca da eternidade e do definitivo. Nada deste mundo poderá jamais separar-nos do amor de Deus com que amamos Jesus Cristo (Rom. 8,35ss).
    Este dom do amor de Deus transforma qualitativamente as experiências de amor humano, elevadas ao nível da caridade divina. O amor do próximo é indissociável do amor de Deus. "Quem não ama o seu irmão que vê, não pode dizer que ama a Deus que não vê" (1Jo. 4,20ss). O amor humano atinge as qualidades do amor divino. "Sede misericordiosos como o vosso Pai Celeste é Misericordioso" (Lc. 6,36). É essa qualidade radical da caridade que ressalta na recomendação de Paulo aos Efésios: "procurai imitar Deus como filhos muito amados e segui a via do amor a exemplo de Jesus Cristo que nos amou e Se entregou por nós" (Efs. 5, 1-2).

    6. O caminho que nos leva do amor à caridade é um longo percurso, que inclui a redenção do nosso coração e de toda a nossa capacidade humana de amar; passa pela abertura progressiva do nosso coração ao amor de Deus, realiza-se através de todos os meios sacramentais da graça. Quando me reconcilio com Deus, quando celebro a Eucaristia, quando sou confirmado pelo Espírito Santo, lanço-me nessa aprendizagem do amor novo, que me levará a amar o meu irmão como Cristo nos amou. O amor conjugal, objecto central destas Catequeses Quaresmais, é o exemplo mais claro que a vivência sacramental é o único caminho para enxertarmos sobre as raízes de um coração humano convertido, o mistério da caridade.
 

Sé Patriarcal de Lisboa, 17 de Fevereiro de 2002


† JOSÉ, Cardeal-Patriarca



 


 

CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA NO 2.º DOMINGO DA QUARESMA

"Amor e Sexualidade"


    Introdução.
    1. A relação entre amor e sexualidade constitui uma evidência afirmada, ao longo de séculos, pelas culturas, o que significa aceitar que a sexualidade humana só encontra expressão com sentido na experiência do amor e que é um dinamismo de amor. Esta é a perspectiva base da visão cristã do homem e da mulher.
    No entanto, mais recentemente, uma visão estritamente funcional dos dinamismos humanos, põe em causa essa equação, afirmando, como válida, uma expressão da sexualidade desligada do amor. Uma olhadela ao primeiro dia do "site" posto à disposição dos jovens pela Secretaria de Estado da Juventude sobre sexualidade, é disso elucidativo. Afirma um jornal diário: "parecia haver uma unanimidade em torno da ligação entre sexo e amor: o amor não é preciso, mas se as duas pessoas gostarem uma da outra, o sexo tem outro sabor". Uma outra resposta dizia que "basta ter confiança, e que haja amor de preferência" .
[1]
    É neste contexto que se situa a nossa Catequese de hoje. A Igreja é continuamente interpelada para aceitar abordagens funcionais da sexualidade, mas ela não pode reger-se, nesta matéria, por visões culturais ou sociológicas. A sua antropologia, isto é, a sua doutrina acerca do homem, concebido este como homem e mulher, fundamenta-se na revelação, isto é, na verdade criacional do homem como projecto de Deus e nos é transmitida pela Sagrada Escritura e pela Tradição. E esta visão revelada do homem conduz-nos a uma afirmação central no que ao sentido da sexualidade diz respeito: a sexualidade humana exprime-se na natureza bissexuada do ser humano, isto é, na complementaridade do homem e da mulher e encontra o seu sentido numa relação de amor. Em termos cristãos esta união do homem e da mulher, no amor, tende para ser uma expressão da caridade, isto é, do amor que encontra a sua força, não apenas na natureza, mas na graça de Deus.

    Homem e Mulher Deus os criou.
    2. Entre os "mitos de origem", ou seja, tradições, normalmente religiosas, que explicam a origem da humanidade, há uma entre os povos orientais que me permito referir aqui, porque nos ajuda a encontrar o contexto para a leitura dos textos bíblicos de origem, do Livro dos Génesis. Conta essa tradição mítica que, no início da humanidade Deus criou um único ser, que reunia em si todas as características do masculino e do feminino. Mas esse ser revelou-se de tal maneira forte que os deuses o temeram. Para o enfraquecer dividiram-no em dois, o homem e a mulher que, assim separados, ficaram mais fracos. É por isso que, desde esse dia, o homem e a mulher procuram unir-se de novo, para recuperar a força perdida. Sugere-nos a narração bíblica, que põe na boca de Deus Criador esta afirmação: o homem e a mulher serão os dois um só. (cf. Gen. 2,24; Mt. 19,5).
    Os textos do Génesis (Gen. 2,7-25 e 1,26-31) são narrações de origem, que aliás integram "mitos de origem" oriundos de outras culturas, em que o autor sagrado introduz a especificidade da revelação. Os dois textos são complementares e, em conjunto, comunicam-nos a primeira compreensão bíblica do mistério do homem, que só viria a ser totalmente revelada em Nosso Senhor Jesus Cristo. Deles ressaltam os seguintes traços característicos do homem:

    * A Corporeidade do homem: trata-se de um ser único em toda a criação. Corpóreo como todos os outros, mas a sua vida não é apenas biológica, depende do sopro de Deus. "Deus modelou o homem com o barro da terra e insuflou nas suas narinas um espírito de vida e o homem tornou-se um ser vivo" (2,7). A vida do homem exprime-se no corpo, mas é espiritual, tem a sua origem no sopro divino. Esta é uma chave decisiva para a interpretação da sexualidade humana que exclui espiritualismos radicais que excluam o corpo, ou visões fisicistas que não respeitem as exigências do espírito.

    * A criação do homem (no sentido de ser humano) só fica completa com a criação da mulher. Esta é introduzida com a declaração solene de que a solidão não é boa para o homem: "não é bom que o homem esteja só" (2,18). A diferenciação dos sexos é o caminho escolhido por Deus para que o homem e a mulher vençam a solidão. "É bom que Eu lhe faça um complemento para que se possa unir a ele" (2,18). Repare-se que a ameaça da solidão não é, automaticamente, vencida. A sua possibilidade está unida à autonomia de cada um dos seres humanos. Em toda a dinâmica desta narração está subjacente o problema da liberdade e da iniciativa humanas: o homem é chamado a colaborar na obra da criação. Está dito que não é bom, nem para o homem, nem para a mulher, estarem sós. Mas eles têm de se descobrir um ao outro para serem completos e fortes e vencerem a solidão. Nessa descoberta mútua um do outro, eles reconhecem-se como pessoas, isto é, como seres em relação.

    * A experiência de comunhão representa para os seres humanos a sua força e a sua plenitude. A reacção de Adão à criação de Eva é o primeiro poema de amor da história da humanidade: "Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (2,23). João Paulo II considera este texto o protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. "O texto conciso de Gén. 2,23 que revela as palavras do primeiro homem ao ver a mulher criada, "arrancada dele", pode ser considerado como o protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. E se é possível detectar impressões e emoções ao ler palavras tão antigas, poderíamos arriscar dizer que a profundidade e a força desta primeira emoção, desta emoção "original" experimentada pelo homem, ser masculino diante da humanidade da mulher e, ao mesmo tempo, perante a feminilidade de outro ser humano, é verdadeiramente única e irrepetível"
[2].
    Segundo o Livro dos Génesis, o homem e a mulher só vencerão a solidão e encontrarão a sua força, neste encantamento mútuo de uma comunhão de amor.

    Criados à imagem de Deus.
    3. Depois de apresentar o mistério do homem e da mulher, como seres capazes de solidão e de comunhão de amor, o autor sagrado, continuando a aprofundar o mistério do homem, faz uma afirmação ousada: nessa comunhão de amor o homem e a mulher são a imagem do próprio Deus, Ele próprio comunhão amorosa de pessoas, na comunhão trinitária: "Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus os criou, homem e mulher os criou" (1,27).
Ouçamos, ainda, o Santo Padre: "O homem tornou-se imagem e semelhança de Deus, não só pela sua própria humanidade, mas também pela comunhão de pessoas que o homem e a mulher formam desde o início. A imagem tem como função reflectir o modelo, reproduzir o seu próprio protótipo. O homem torna-se imagem de Deus, menos no momento da solidão do que no momento da comunhão. Com efeito, desde a origem, ele não é só a imagem que reflecte a solidão de uma Pessoa que rege o mundo, mas é essencialmente a imagem duma insondável comunhão divina de Pessoas"
[3]. O Deus de quem o homem é a imagem, não é um ser solitário, ainda que omnipotente, mas uma comunhão de pessoas. A narração do Génesis abre-nos para uma visão trinitária da imagem de Deus. Não é por acaso que, na revelação cristã, a união de amor entre Cristo e a Igreja é apresentada como comunhão esponsal, modelo definitivo e radical da união de amor entre o homem e a mulher.

    Características da sexualidade humana na revelação bíblica.
    4. Ao ler estas narrações da criação, iluminados pela posterior revelação, podemos identificar os principais dinamismos constitutivos da sexualidade humana:
    * É uma sexualidade relacional. Só se descobre verdadeiramente o que é ser homem e ser mulher, numa relação mútua de amor. O homem (ser masculino) é homem para a mulher e esta é-o para o homem. O sentido profundo da sexualidade humana é indesligável desta relação. Qualquer expressão solitária da sexualidade ou a sua vivência entre pessoas do mesmo sexo, acabam por ser a expressão da solidão humana.
    * A sexualidade é um dinamismo de amor encarnado. Na comunhão de amor entre o homem e a mulher, consegue-se a síntese harmónica entre a dimensão espiritual e a corpórea do amor. O corpo é uma linguagem de amor, símbolo de comunhão, sacramento da harmonia. Mas a densidade espiritual será sempre característica de todo o amor.
    * Expressão de intimidade. Todo o amor constrói uma experiência de intimidade, que passa pela revelação como dom da própria intimidade, em ordem ao conhecimento mútuo, à contemplação do outro, à unidade de dois seres num só. Na sexualidade humana, a intimidade dos corpos não se pode desligar da intimidade espiritual, mas o dom do próprio corpo pode significar a entrega do coração e a alegria da comunhão. A intimidade supõe generosidade e sentido do dom; tudo é oferecido, para tudo ser recuperado na alegria da unidade. A busca egocêntrica do prazer atraiçoa a sexualidade como dinamismo de intimidade. A revelação cristã abre-nos para o verdadeiro horizonte desta busca da intimidade de comunhão, na medida em que nos revela que a verdade definitiva de uma relação íntima entre duas pessoas é realização do mistério de comunhão, impossível sem a intimidade com Deus.
    * Dinamismo de fecundidade: segundo a narração do Génesis, a vivência da união sexual entre o homem e a mulher foi fecunda e deu como fruto um filho. "O homem conheceu Eva, sua mulher: ela concebeu e deu à luz Caim e exclamou: adquiri um homem pela força de Deus" (Gén. 4,1). Imagem de Deus, o homem e a mulher, plenitude da humanidade na sua relação de amor, tornam-se colaboradores de Deus no dom da vida. A união sexual, expressão da comunhão de amor, é sempre aberta à comunicação da vida, porque segundo o plano de Deus, a vida brota do amor.
    Esta abertura da sexualidade à comunicação da vida tem sido posta em questão pela cultura, originando uma discussão ética. O centro da discussão reside nisto: podem o homem e a mulher, pelos meios que a ciência e a técnica foram pondo ao seu alcance, fechar temporária ou definitivamente a sua sexualidade à comunicação da vida? A inspiração revelada da sexualidade diz-nos que isso não é ético, o que não significa que cada união entre o homem e a mulher se justifique apenas pela comunicação da vida. O planeamento da fecundidade física pelo casal faz parte do amor e da generosidade com que é vivida toda a relação de intimidade.
    * Um tesouro ameaçado: a vivência da sexualidade insere-se no crescimento do homem no amor, luta de todos os dias e de toda uma vida, atraído pela verdade, ameaçado pela fragilidade. É uma construção generosa de vitória sobre os possíveis desvios, que nós cristãos sabemos ser impossível sem a graça de Deus.
    O Livro dos Génesis, enquanto narração de origem, inclui esta fragilidade da sexualidade no próprio dinamismo da criação. Há um contraste entre a inocência e o sentido de culpa. O "mito" da árvore da ciência do bem e do mal sugere-nos que a vida amorosa do homem e da mulher tem uma dimensão moral. Dificilmente o homem acertará com o caminho do bem, se não vive a sua sexualidade como dom e obediência ao plano de Deus.
    O texto fala-nos da inocência original: "ora os dois estavam nus, o homem e a mulher não tinham vergonha um do outro" (Gén. 2,25). Todo o verdadeiro amor é inocente; esta inocência original é o anúncio da verdadeira inocência, dom do Espírito de Jesus ressuscitado; é a inocência baptismal anunciada.
    Mas o texto mostra logo a seguir como essa inocência original é um tesouro ameaçado. O homem acusa a mulher, não seguiram o plano de Deus e passaram a ter vergonha da sua nudez (cf. Gen. 3,7ss). Quando o homem e a mulher se escondem um do outro, é a sua comunhão de amor que está ameaçada.
    Quais são as grandes ameaças à verdade da sexualidade humana? Resumem-se todas a uma: a tentação da sua vivência fora da beleza e da exigência de uma relação de amor. A procura da expressão sexual como auto-fruição egoísta de prazer e bem estar; o não perceber que, numa relação de amor, a vivência da própria sexualidade é um dom feito ao outro; o desligar a dimensão física da sexualidade da ternura e da intensidade espiritual da comunhão; o desligar forçadamente a vivência da sexualidade da generosidade do dom da vida. Porque se trata da construção generosa da comunhão, a vivência positiva da sexualidade supõe a força de Deus, pois só Ele nos torna capazes de crescer no amor, até à beleza da caridade.

    A castidade é possível.
    5. A castidade é, na vida cristã, uma expressão do amor-caridade. As chamadas virtudes morais são a vivência da caridade num sector concreto das realidades da nossa vida. A castidade é a vivência generosa da sexualidade, integrada nas exigências globais da santidade cristã e da caridade.
    Estando ligada à vivência da sexualidade, a castidade vive-se em relação, com Deus, com a pessoa amada, com todos os outros irmãos com quem queremos construir a Igreja como comunhão. A castidade supõe a renúncia a experiências sexuais facilitantes, mas essa renúncia é dom, anuncia o desejo de vivência generosa de todos os nossos dinamismos de amor, no contexto da comunhão conjugal, mas também no contexto mais alargado da comunhão eclesial. Há uma fecundidade eclesial da castidade, o que explica que a virgindade assumida possa ser um caminho de vivência da sexualidade. Mas disso falaremos num dos próximos domingos.
 


Sé Patriarcal de Lisboa, 24 de Fevereiro de 2002


† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
 

NOTAS:
1 - Jornal O PÚBLICO, edição de 14 de Fevereiro de 2002
2 - João Paulo II, À l'immage de Dieu homme et femme, Cerf (1980), pg. 74
3 - Ibidem, pg. 77


 


CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA
NO 3.º DOMINGO DA QUARESMA

"O sacramento do matrimónio: a graça plenifica a natureza"


    Os sacramentos na vida do cristão.
    1. A vida cristã é uma caminhada para a santidade. Esta consiste na vida sintetizada no amor, plenitude de todos os dons que recebemos de Deus, quando nos criou. A santidade não anula a natureza, é, antes, a sua plenitude. Deus revelou-nos, através da história da salvação, que este crescimento no amor é feito com Ele, que celebra uma aliança de intimidade com o seu povo. Jesus Cristo, o Filho de Deus e homem completamente obediente a Deus, leva, na sua Páscoa, esta aliança à perfeição. N'Ele todos os homens podem atingir a plenitude da aliança com Deus. Ele próprio, falando da sua Paixão, se refere ao derramamento do Seu próprio Sangue, como sinal de aliança: "Este cálice é a nova aliança no meu Sangue, que vai ser derramado por vós" (Lc. 22,20).
    Os cristãos celebram e vivem esta aliança de amor, sempre numa referência necessária à morte e ressurreição de Cristo, prolongada na sua vida, como força de amor, pelo dom do Espírito Santo. Os sacramentos da Igreja são meios de os cristãos referirem a sua vida à Páscoa de Jesus, recebendo deles a força do Espírito, para poderem viver a sua vida como experiência de dom e de amor.
    Segundo a tradição da Igreja, são sete os sacramentos, todos eles vivência e actualização da Páscoa de Cristo, no Espírito Santo. Mas como eles se dirigem à vida concreta das pessoas e à vitalidade da Igreja, como Povo do Senhor, podemos dividi-los em três grupos, segundo a sua significação específica: os sacramentos da iniciação cristã. Baptismo, confirmação, eucaristia, realizam a união do cristão a Cristo ressuscitado e, por Ele, à Santíssima Trindade, tornando-o capaz de celebrar a Páscoa de Jesus; o sacramento da ordem consagra e santifica os ministros de Cristo, que hão-de agir em nome de Cristo, para santificação de toda a Igreja; há depois um terceiro grupo de sacramentos que relacionam com a morte e ressurreição de Cristo, dimensões da experiência humana, particularmente universais e significativas. A experiência do pecado, assumida e confessada e transformada pelo arrependimento, no sacramento da reconciliação proporciona a graça da conversão; a experiência da doença, do sofrimento e da morte, oferece, no sacramento da unção, a graça da saúde, da força para sofrer e da conversão a Deus, que será nosso juiz, justo e bondoso; o casamento, enquanto experiência de amor e de comunhão, encontra, no sacramento do matrimónio, a graça de um amor mais generoso e de uma comunhão tão profunda que se funde com a própria comunhão de Cristo com o seu Povo.

    Porquê mais um sacramento?
    2. Já falámos, nos domingos anteriores, da beleza do projecto de Deus acerca da união esponsal do homem e da mulher, como experiência de amor e comunhão, mas também da fragilidade dos dinamismos humanos do amor, enfraquecidos pelo pecado. Para que a união conjugal atinja a plenitude do amor, os esposos precisam de ser fortalecidos com a força do Espírito, que os ajuda a viver a sua aliança de amor ao ritmo da aliança de Deus com o seu Povo, definitivamente ratificada na morte de Cristo. O casamento é uma experiência humana onde é cada vez mais claro que, para o amor não definhar, antes crescer até à perfeição da caridade, precisa da força de Deus. O sacramento do matrimónio, consequência da união dos esposos a Cristo, pelo baptismo, é a fonte dessa força.
    O casamento, enquanto comunhão de amor do homem e da mulher, não começa com Cristo, ele é um dom da criação. A Páscoa de Jesus redime-o, fortalece-o e permite-lhe atingir a perfeição querida por Deus desde a criação. O Papa João Paulo II afirma: "Cristo revela a verdade originária do matrimónio, a verdade do princípio e, libertando o homem da dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente" 1. Esta plenitude do amor conjugal faz parte da plenitude da aliança com Deus, realizada na Cruz de Cristo, onde os cristãos mergulham, pelo baptismo. Continua o Santo Padre: "No sacrifício da Cruz manifesta-se inteiramente o desígnio que Deus imprimiu na humanidade do homem e da mulher, desde a sua criação. O matrimónio dos baptizados torna-se, assim, o símbolo real da Nova e Eterna Aliança, selada no Sangue de Cristo. O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge a plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal, que é o modo próprio e específico com que os esposos participam e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo que Se entrega sobre a Cruz" 2. E mais à frente, referindo-se às graças próprias deste sacramento, o Papa acrescenta: "Trata-se de características normais do amor conjugal natural, mas com um significado novo, que não só as purifica e as consolida, mas eleva-as a ponto de as tornar expressão dos valores propriamente cristãos" 3.

    O sinal sacramental.
    3. Todos os sacramentos realizam a sua graça própria através de uma realidade sinal, rica de significado humano, através da qual o Espírito de Deus realiza uma nova significação, da ordem da plenitude da salvação. O significado sobrenatural é obra do Espírito; mas a significação humana da realidade sinal sugere-a: no baptismo, a água purificadora e vivificadora, significa e realiza o nascimento para uma vida nova, participação na vida de Cristo ressuscitado.
    No sacramento do matrimónio qual é a realidade sinal? É a própria realidade do amor conjugal. Tratando-se de uma comunhão de amor, nenhuma outra realidade poderia significar melhor a perfeita comunhão, na caridade, a que o Espírito Santo conduz os cristãos. E o amor conjugal é sinal do amor redentor de Jesus Cristo, na pluralidade das suas dimensões. Demos, ainda, a palavra ao Santo Padre: "O amor conjugal comporta uma totalidade na qual entram todas as componentes da pessoa: chamamento do corpo e do instinto, força do sentimento e da afectividade, aspiração do espírito e da vontade. O amor conjugal tem, por fim, uma unidade profundamente pessoal, aquela que, para além da união numa só carne, conduz a um só coração e a uma só alma" 4.
    Sendo a própria realidade humana do casamento o sinal sacramental do matrimónio, os esposos cristãos, por força do seu baptismo, celebram o sacramento, de que são ministros, ao ritmo da vivência da sua união conjugal, vivida na generosidade e na fidelidade. É um sacramento de celebração contínua, o que ajuda os esposos cristãos a dar à sua vida conjugal uma dimensão de celebração e de louvor. A sua vida torna-se liturgia. Voltemos a ler a "Familiaris Consortio": "O matrimónio cristão, como todos os sacramentos que estão ordenados à santificação dos homens, à edificação do Corpo de Cristo e a prestar culto a Deus é, em si mesmo, um acto litúrgico de louvor a Deus, em Jesus Cristo e na Igreja: celebrando-o, os esposos cristãos professam a sua gratidão a Deus pelo dom sublime que lhe foi dado de poder reviver na sua existência conjugal e familiar, o mesmo amor de Deus pelos homens e de Cristo pela sua esposa" 5.

    4. O sacramento do matrimónio, ao constituir como sinal sacramental a união dos esposos, exprime o realismo do mistério da encarnação, em que o Verbo eterno de Deus se nos dá, numa comunhão de amor, através do Seu próprio Corpo: "Tomai e comei, isto é o meu Corpo" (Mt. 26,26); e São Lucas acrescenta "que vai ser entregue por vós. Fazei isto em minha memória" (Lc. 22,19). A encarnação e o sacrifício redentor de Cristo são o fundamento de uma teologia do corpo. O corpo exerce, no conjunto do mistério da pessoa humana, um papel simbólico de sinal. Ele exprime e torna visível os sentimentos do espírito e do coração: a ternura, a entrega e o dom, a intimidade e a fecundidade, o desejo unificador de comunhão.
    Numa das suas Catequeses de quarta-feira o Santo Padre afirma, referindo-se ao sacramento do matrimónio: "Como sinal visível, o sacramento constitui-se com o ser humano enquanto corpo, na realidade da sua masculinidade e feminilidade visíveis. Com efeito, o corpo e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Ele foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério escondido, desde toda a eternidade, em Deus e ser o seu sinal visível" 6.
    Sinal visível das realidades invisíveis, o corpo exprime a comunhão de amor entre o homem e a mulher e o aprofundamento dessa comunhão, na caridade é, exactamente, a graça própria deste sacramento. E mais uma vez este crescimento qualitativo entre duas pessoas se insere na relação entre Cristo e a Igreja, sendo a sua realização.
    No Antigo Testamento era comum fazer da união esponsal o símbolo da união de Deus com o seu Povo, no mistério da aliança. No Novo Testamento verifica-se uma transformação qualitativa desta imagem. A verdadeira e definitiva comunhão esponsal é aquela que existe entre Cristo e o Seu corpo, que é a Igreja e as núpcias dos cristãos participam dessa comunhão esponsal e, através do sacramento, realizam-na na sua própria experiência humana de casal, foco de irradiação de uma nova comunhão alargada, a família, autêntica concretização da Igreja comunhão. A família, a partir da graça do sacramento, torna-se, realmente, uma "igreja doméstica". É São Paulo que faz a síntese entre estes dois momentos de um mesmo mistério: "Eis que o homem deixará o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher e os dois formarão uma só carne. Este é um mistério de grande alcance, porque se aplica a Cristo e à Igreja" (Ef. 5,31-32). Isto é possível porque os cônjuges cristãos, antes de serem o corpo um do outro, fazem ambos parte do Corpo de Cristo. São Paulo, afirmando que, com o Seu corpo, Cristo se une à Igreja, pergunta: "E nós, não somos membros do Seu Corpo?" (Ef. 5,29-30).
    É por isso que, na vida de um casal cristão, a Eucaristia, enquanto comunhão com Cristo, é um momento tão importante, como a sua própria união conjugal.
    Voltamos a citar a Familiaris Consortio: "O dever de santificação da família tem a sua primeira raiz no baptismo e a sua expressão máxima na Eucaristia, à qual está intimamente ligado o matrimónio cristão (...) Redescobrir e aprofundar essa relação é absolutamente necessário, se se quiserem compreender e viver com maior intensidade as graças e responsabilidades do matrimónio e da família cristã. A Eucaristia é a fonte mesma do matrimónio cristão" 7.

    As graças próprias do sacramento do matrimónio.
    5. Globalmente abraçando todas as concretizações, a graça própria do sacramento do matrimónio é o caminho de santidade dos esposos. "O sacramento do matrimónio, que retoma e especifica a graça santificante do baptismo, é a fonte própria e o meio original de santificação para os esposos". Esta graça sublinha o carácter perene e contínuo deste sacramento. "O dom de Jesus Cristo não se esgota na celebração do matrimónio, mas acompanha os esposos ao longo de toda a existência. (...) Jesus Cristo permanece com eles, para que, assim como Ele amou a Igreja e Se entregou por ela, de igual modo os esposos cristãos são fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um sacramento especial; cumprindo, graças à energia deste, a própria missão conjugal e familiar, penetrados do Espírito de Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e caridade, avançam cada vez mais na própria perfeição e mútua santificação e cooperam assim juntos para glória de Deus" 8.

    6. Mais concretamente, a graça específica do sacramento é o aprofundamento da comunhão conjugal, como autêntica vivência da caridade e participação no amor com que Cristo ama a Igreja. Isto supõe a generosidade do dom, a vitória sobre todas as tentações de egoísmo e de auto-procura, a vivência do próprio corpo como sinal de dom e de comunhão e não como busca de si mesmo. No amor conjugal o próprio prazer é oferecido ao outro, na busca de uma plenitude de comunhão.
    Esta graça sacramental ajudará à revelação mútua dos cônjuges, ao respeito pela identidade e dignidade de cada um, à ajuda mútua e fraterna; ensina a perdoar e a acreditar, em cada momento, que o amor é possível, atraídos pela comunhão definitiva no Reino dos Céus.

    7. Outro aspecto da graça própria deste sacramento é a sua fecundidade eclesial. A comunhão verdadeira entre os esposos prolonga-se na construção da comunidade familiar, como autêntica comunhão de vida e de amor e na edificação da Igreja como mistério de comunhão e esposa de Cristo. Há uma fecundidade apostólica no amor conjugal. Mas nisso falaremos no próximo domingo.
 


Sé Patriarcal de Lisboa, 3 de Março de 2002
 

† JOSÉ, Cardeal Patriarca


NOTAS:
1 - Familiaris Consortio (FC), n.º 13
2 - Ibidem
3 - Ibidem
4 - Ibidem
5 - Ibidem, n.º 56
6 - João Paulo II, À l'immage de Dieu homme et femme, pg. 157-158
7 - Familiaris Consortio, n.º 57
8 - Ibidem, n.º 56 ; cf.Gaudium et Spes, n.º 49


 


 

CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA
NO 4.º DOMINGO DA QUARESMA

"A Fecundidade do Amor"


    1. O amor é a mais bela expressão da vida e por isso comunica espontaneamente a vida. São Tomás de Aquino afirmou-o numa fórmula, hoje consagrada: "amor est difusivum sui", isto é, o amor expande-se a si mesmo, difunde-se à sua volta.
    É esta característica do amor que explica o mistério da criação. Deus, o amor absoluto - "Deus é amor" (1Jo. 4,8-16) - que exprime, desde toda a eternidade, a fecundidade desse amor, na vida íntima da Santíssima Trindade, na geração do Filho e na inspiração do Espírito Santo, concretiza-a também na criação do universo e do homem. Deus cria a partir do amor e para o amor; o homem foi criado por amor e para o amor.
    Esta expansividade do amor exprime-se, na nossa vida, de maneiras muito simples: uma pessoa feliz ajuda os outros a serem felizes, alguém que ama, traça à sua volta, um rasto de luz e de vida. É por esse mesmo dinamismo que a Igreja, amada por Jesus Cristo, reflecte no seu rosto, para os outros homens, a luz de Cristo.
(1)     O amor gera no coração das pessoas que amam e são amadas, um dinamismo, uma inquietação, que as faz sentir-se enviadas a testemunhar o amor. Essa força é a origem, por exemplo, do dinamismo missionário e apostólico e do ardor de todos os grandes apaixonados pelo serviço dos outros homens. O fruto espontâneo da fecundidade do amor é semear o amor, amando cada vez mais os que já amamos, descobrindo que amar é anunciar e comunicar a vida. Jesus disse: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (Jo. 10,10).

    A fecundidade do matrimónio cristão.
    2. Relembremos aqui que a comunhão conjugal, união de amor do homem e da mulher, é a mais forte expressão da "imagem de Deus" que trazem gravada no seu coração. Por isso esse amor participa da fecundidade do amor de Deus. Essa fecundidade é total. Não só participam espiritualmente desse amor divino, entrando na comunhão trinitária e semeando, com o seu amor, a alegria noutros corações, mas partilham com Deus a alegria da criação, gerando filhos, outros homens e mulheres, também eles "imagens de Deus" e vocacionados para o amor. Ao gerar filhos, o homem e a mulher participam no poder criador de Deus. Diz o Santo Padre João Paulo II na Familiaris Consortio: "na sua realidade mais profunda, o amor é essencialmente dom. o amor conjugal, levando os esposos ao conhecimento recíproco que os torna "uma só carne", não se esgota no interior do próprio casal, já que os habilita para a máxima doação possível, pela qual se tornam cooperadores de Deus no dom da vida a uma nova pessoa humana. Deste modo os esposos, enquanto se dão entre si, dão, para além de si mesmos, um ser real - o filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do seu ser de pai e mãe".
(2)
    Segundo o Livro do Génesis, a procriação de um filho constitui a plenitude do dinamismo da criação. Do mesmo modo que a criação do homem só ficou completa com a criação da mulher, assim a do casal só atingiu a sua plenitude no nascimento de Caim. Eva, depois de ter concebido e dado à luz exclama: "adquiri um homem pelo poder de Deus" (Gen. 4,1). Na sua fecundidade o par humano atinge a sua plenitude enquanto imagem de Deus. A alegria da maternidade é a mais bela exultação pelo dom da vida. Eva reconhece duas coisas fundamentais no dom da fecundidade: o filho que gerou é um homem, igual ao que saiu das mãos de Deus, e ela gerou-o com o poder de Deus, não um poder mítico e factual, mas dinamismo inserido na força da criação. A procriação é a plenitude da criação.
    Leiamos, a este propósito, mais um texto da "Familiaris Consortio": "Deus, com a criação do homem e da mulher à Sua imagem e semelhança, coroa e leva à perfeição a obra das suas mãos. Chama-os a uma participação especial do seu amor e poder de Criador e Pai, mediante a sua cooperação livre e responsável na transmissão do dom da vida humana. (...) A fecundidade é o fruto e o sinal do amor conjugal, o testemunho vivo da plena doação recíproca dos esposos"
(3), e da sua disponibilidade para realizarem na vida a obra fecunda do próprio Deus.

    Amor esponsal e amor paternal-maternal.
    3. O amor esponsal revela a identidade profunda do homem e da mulher. A sua união de amor torna-se revelação e é fonte de conhecimento mútuo. E nessa revelação da identidade profunda do homem e da mulher, ressalta a sua qualidade de pai e de mãe. O amor conjugal desabrocha na paternidade e na maternidade. E assim se reconhecem, mais uma vez, como "imagem de Deus". É que no mistério de Deus, comunhão trinitária, a cuja imagem foram criados, o Espírito de amor revela a identidade de Deus Pai e de Deus Filho; a paternidade de Deus Pai é partilhada pelo homem, criado à imagem de Deus, na paternidade e na maternidade humanas. Quando alguns arriscam afirmar que Deus também é mãe, exprimem apenas a intuição que a maternidade humana é participação do mistério da paternidade divina. Aliás, nada na criação se assemelha tanto ao coração de Deus como um coração de mãe, que encontra a sua plena expressão no coração de Nossa Senhora, a Virgem Mãe.
    O Livro do Génesis, narração original da criação, une a intimidade conjugal ao conhecimento mútuo dos esposos e esse conhecimento revela, na experiência da fecundidade, a dimensão de paternidade e maternidade. "O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu à luz Caim e exclamou: adquiri um homem, com o poder de Deus" (Gen. 4,1). Neste texto é Adão, o homem, que reconhece a mulher na sua maternidade, e ao conhecer a sua companheira como mãe, reconhece-se a si mesmo como pai. A maternidade da mulher é a experiência a partir da qual o casal se reconhece, mais profundamente, na sua esponsalidade.
    Ouçamos, a este propósito, o Papa João Paulo II nas suas catequeses: "Toda a constituição do corpo da mulher, o seu aspecto particular, aquelas qualidades que, pela força de uma atracção perpétua, estão na origem do conhecimento de que nos fala Gen. 4,1-2, estão em estreita ligação com a maternidade. Com a simplicidade que lhe é própria, a Bíblia e, na sequência dela, a Liturgia, honram e louvam, ao longo dos séculos "as entranhas que te trouxeram e os seios que te alimentaram" (Lc. 11,27). Estas palavras constituem um elogio da maternidade, da feminilidade do corpo da mulher, na sua expressão típica de amor criador. São palavras que no Evangelho são dirigidas à Mãe de Cristo, a Maria a segunda Eva. Por outro lado, a primeira mulher no momento em que se revelava a maturidade maternal do seu corpo, quando concebeu e deu à luz exclama: "adquiri um homem pelo poder de Deus""
(4).
    No filho, um ser humano, o homem e a mulher reconhecem-se na sua dignidade fundamental. Ouçamos ainda o Santo Padre: "a procriação faz com que o esposo e a esposa se reconheçam reciprocamente num "terceiro" gerado por eles. É por isso que este conhecimento se transforma numa descoberta, em certo sentido, uma revelação do novo ser humano, no qual, um e outro, homem e mulher, se reconhecem ainda a si mesmos, descobrem a sua humanidade, a sua imagem viva"
(5).
    Mas segundo o texto sagrado, este conhecimento mútuo começa no reconhecimento, por ambos, do fruto das suas entranhas, como um homem, imagem de Deus. Ainda hoje, o reconhecimento da dignidade humana do fruto do ventre materno, pelo homem e pela mulher, é causa de grande alegria, mas também exigência de coragem e sentido ético. O mistério da vida gerada, que envolve o sentido da própria existência do homem pai e da mulher mãe, não deixa espaço para ambiguidades morais. Um homem e uma mulher que geram um filho, ou o aceitam na sua dignidade de um outro ser humano e se descobrem na sua própria dignidade, ou o rejeitam, negando-se a si mesmos.

    Fecundidade física e fecundidade espiritual.
    4. É próprio do amor conjugal viver todas as expressões físicas da comunhão das pessoas, com o espírito e com o coração. É a dimensão espiritual da convivência que dá à relação a sua dimensão verdadeiramente humana. Isto tem duas consequências principais: a fecundidade física, sem densidade espiritual, não é sinal de plenitude relacional, pode ser apenas tolerada ou dramaticamente rejeitada; por outro lado a ausência de fecundidade física não compromete, necessariamente, a fecundidade do amor conjugal, como afirma claramente a Familiaris Consortio: "A fecundidade do amor conjugal não se restringe somente à procriação dos filhos, mesmo entendida na dimensão especificamente humana: alarga-se e enriquece-se com todos aqueles frutos da vida moral, espiritual e sobrenatural que o pai e a mãe são chamados a dar aos filhos e, através dos filhos, à Igreja e ao mundo"
(6).
    A geração física da vida é apenas o início de um processo de fecundidade do amor, aberto sobre o horizonte da eternidade, que acompanha o filho, em solicitude paternal-maternal durante o resto da vida dos pais e se alarga na experiência do amor fraterno, em Igreja. E é esta dimensão espiritual da fecundidade que permite aos casais que não puderam gerar fisicamente um filho, não serem estéreis no seu amor, porque conduzidos pelo Espírito de Deus, souberam envolver com o seu amor paternal e maternal outros que dele precisam. É que ser pai e mãe é, realmente, participar no amor paternal de Deus.

    A fecundidade apostólica do amor conjugal.
    5. Mistério de comunhão, santificado pelo Espírito Santo, o amor conjugal, expressão específica da caridade, expande-se na edificação da Igreja como mistério de comunhão. Há uma fecundidade apostólica do amor conjugal dos cristãos. O primeiro campo dessa fecundidade é a família, comunidade a construir a partir das experiências e das potencialidades do amor, como autêntica realização da Igreja, a "Igreja doméstica". E todos conhecemos as exigências desta missão, na complexidade sociológica da família contemporânea, que põe à prova todas as concretizações e virtualidades do amor.
    As famílias cristãs são guiadas, nesta difícil, mas apaixonante missão, pela clareza do magistério da Igreja. "No matrimónio e na família constitui-se um complexo de relações inter-pessoais - vida conjugal, paternidade-maternidade, filiação, fraternidade - mediante as quais cada pessoa humana é introduzida na "família humana" e na "família de Deus", que é a Igreja. O matrimónio e a família cristã edificam a Igreja. Na família, de facto, a pessoa humana não é só gerada e progressivamente introduzida, mediante a educação, na comunidade humana, mas graças à regeneração do baptismo e à educação na fé, é introduzida também na família de Deus, que é a Igreja.
    A família humana, desagregada pelo pecado, é reconstituída na sua unidade pela força redentora da morte e ressurreição de Cristo. O matrimónio cristão, que participa da eficácia salvífica deste acontecimento, constitui o lugar natural onde se realiza a inserção da pessoa humana na grande família da Igreja
"
(7).
    De facto, a fragilidade da família como comunidade de vida e de amor em construção, repercute-se na Igreja como uma das suas fragilidades. Apoiar os pais e as famílias nesta edificação de autênticas comunidades de vida, deve ser nossa prioridade nas opções pastorais. E com a mesma clareza dizemos aos esposos e pais cristãos que a família é o campo primordial da vossa actividade e testemunho apostólicos.
    A vivência do vosso matrimónio, fortalecida pela graça do sacramento e contextualizada nas exigências concretas da vossa comunidade familiar, serão fontes principais inspiradoras de uma espiritualidade e caminho da vossa santificação. É a partir desse santuário, que é a vossa família, que a fecundidade do vosso amor alargará os horizontes e frutificará em zelo apostólico e ardor missionário, para a edificação da Igreja como mistério de comunhão.
 


10 de Março de 2002
 

† JOSÉ, Cardeal Patriarca


NOTAS:
1 - Cf. Lumen Gentium, n.º 1
2 - Familiaris Consortio, n.º 14
3 - Ibidem, n.º 28
4 - João Paulo II, À l'immage de Dieu homme et femme, pg. 175
5 - Ibidem, pg. 174
6 - Familiaris Consortio, n.º 28
7 - Ibidem, n.º 15

 

 

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