HOMILIA DO CARDEAL PATRIARCA
NA MISSA DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS
"Evangelizar o Amor"
1. Em Igreja, iniciamos hoje os exercícios quaresmais,
preparando a celebração da Páscoa deste ano da graça. Na
Liturgia da Igreja, esta é a mais longa preparação de uma
festa cristã. Certamente porque a Páscoa ocupa na Liturgia e
na existência cristã um lugar central, único e decisivo. É a
festa da nossa redenção e do dom do Espírito, início de uma
vida nova e renovada. A Páscoa marca a diferença e sublinha a
passagem da existência humana à vida cristã. Preparar a Páscoa
é assumir essa diferença, recuperar, na nossa vida concreta,
toda a novidade libertadora de homens e mulheres reconciliados
com Deus e renovados pelo Espírito de Jesus Ressuscitado.
Na continuidade da minha Carta Pastoral e da Mensagem que
para vós escrevi no início desta Quaresma, proponho como tema
para a nossa caminhada quaresmal deste ano "evangelizar o
amor", ou seja, escutar a Palavra de Deus e recorrer a
todos os meios da graça para purificar todas as expressões do
nosso amor humano, tantas vezes ainda manchado pelos nossos
pecados e abrirmo-nos ao dom do Espírito, que derrama o amor
de Deus nos nossos corações. Trata-se do nosso coração,
endurecido pelos interesses e preocupações da vida, em ordem a
deixar que o Senhor nos dê um "coração novo", para
aceitarmos a sua proposta de aliança, nova e definitiva
aliança selada no sangue de Cristo.
É o apelo que Deus nos faz através do Profeta Joel: "Voltai
para mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e
lamentações. Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes.
Voltai para o Senhor vosso Deus". Há neste apelo uma
urgência e ela é a própria urgência de Deus. O Profeta
confessa que Deus se encheu de brios e quer perdoar ao seu
povo. Essa mesma urgência de Deus ressalta da Carta de Paulo
ao Coríntios: "Nós vos pedimos por amor de Cristo:
reconciliai-vos com Deus".
É impressionante esta urgência de Deus na mudança do nosso
coração. Nós é que precisamos e é Ele que tem pressa, que se
deixa devorar pela urgência de nos poder amar. É a intensidade
de amor do esposo que anseia pela intimidade de amor com o seu
Povo e com cada um de nós. A oferta da salvação não é só por
causa de nós e para nosso bem; é por causa de Deus, da
generosidade do seu amor, do seu propósito de aliança com os
homens, da manifestação da sua glória. Como é pobre uma
perspectiva de salvação, vista apenas como busca de solução
para a nossa vida. A salvação envolve profundamente Deus no
seu desejo de dom, na delicadeza da sua ternura
misericordiosa, na fecundidade do seu poder criador. Deus tem
urgência em que lhe abramos o coração, porque decidiu, desde
toda a eternidade, ser Deus connosco, ser Deus em nós. É a
força de um desígnio, a voragem de uma escolha de amor. É por
isso que é muito triste para Deus a nossa recusa ou mesmo a
lentidão da nossa resposta de conversão a Ele, acolhendo o Seu
amor.
Na Páscoa celebramos o momento em que um homem, Jesus
Cristo, acolheu totalmente essa voragem de amor de Deus Seu
Pai. E no coração verdadeiramente novo de Jesus Cristo está a
esperança de uma mais total e profunda resposta dos homens ao
amor de Deus. Só essa esperança fez com que Deus nos amasse
infinitamente, em Jesus Cristo, amor que nos envolveu
totalmente no dia do nosso baptismo, momento em que nos unimos
a Jesus Cristo e aceitámos esta caminhada de renovação
contínua do coração.
2. Segundo a mensagem do Profeta, este voltar o coração
para Deus é feito com "jejuns, lágrimas e lamentações".
"Tocai trombetas em Sião, ordenai um jejum!". O
regresso a Deus é um caminho de penitentes. Esta mesma
exigência mantém-se na pedagogia da Quaresma.
Por detrás da exigência da penitência está a realidade do
pecado, que é complexa e subtil. Regressamos a Deus vindos de
muito longe, daquele afastamento da intimidade com o Senhor a
que nos conduziram os nossos sentimentos, as escolhas da nossa
vontade, as opções do nosso coração. Sofrer na carne sublinha
o contraste entre a santidade de Deus e o nosso pecado. "Rasgai
o vosso coração e não as vossas vestes". A penitência
ajuda-nos a compreender como é despojado o caminho do amor e
exigente a intimidade com Deus. Somos chamados, é certo, a
participar na comunhão divina com todo o nosso ser, espírito e
corpo; todos os dinamismos da nossa natureza podem ser
convertidos em força do amor de Deus. Mas também é certo que,
para isso, a exaltação da nossa natureza precisa de ser
reconduzida à humildade, para não se tornar obstáculo no
caminho da caridade.
A penitência, enquanto mortificação dos sentidos, é
participação na paixão de Cristo. "Ele que não conhecera o
pecado, Deus identificou-O com o pecado por amor de nós, para
que em Cristo, nos tornássemos justos aos olhos de Deus".
A penitência do cristão tem uma dupla dimensão: unir-se ao
sofrimento de Cristo, que dá ao meu sofrimento a capacidade de
me redimir; participar na fecundidade do seu sofrimento
inocente, que merece aos pecadores a graça de encetarem o
caminho da redenção. Se em Adão somos pecadores, precisando de
sofrer pelos nossos pecados, em Cristo participamos de uma
inocência recuperada, na vida nova segundo o Espírito, e
podemos merecer para os outros a redenção. O mistério da Cruz,
agora participado por nós, continua a ser o único sinal de uma
esperança verdadeira, levantado perante as nações.
3. A penitência, porque é um caminho de humildade,
ajuda-nos a viver a gratuidade da salvação. Purifica tudo o
que são critérios mundanos: o parecer bem, o dar nas vistas, o
gostar de ser considerado ou elogiado. A penitência coloca-nos
despojados perante Deus, à única razão de ser e a única
recompensa. Numa sociedade inebriada de vaidades, retalhada
por dissenções, magoada por egoísmos e violências, esta
humildade silenciosa de quem busca o amor com os olhos postos
apenas em Deus, pode ser portadora de uma fecundidade
salvífica que escapa às nossas análises. Durante a Quaresma
sejamos esse povo humilde e penitente, que merece para a nossa
sociedade a graça da conversão.
Sé Patriarcal, 13 de Fevereiro de 2002
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA
NO 1.º DOMINGO DA QUARESMA
"Do Amor à
Caridade"
1. O amor é o tema mais presente nas diversas culturas da
humanidade, quase a sugerir que o sentido da vida humana se
decide na experiência de amor e na forma de amar. O nosso
tempo não faz excepção e o amor ocupa o centro da busca
humana: é cantado na poesia, analisado na literatura,
celebrado na dedicação generosa ao próximo. Ele é festa e
drama, luz e interrogação, paixão e ternura serena, desejo e
posse, contemplação e estímulo para a acção; busca de
intimidade e comunhão ou simples procura da própria
felicidade, tornando-se, tantas vezes, o rosto disfarçado do
egoísmo.
No amor sobressaem duas realidades: a pessoa que ama e a
realidade amada, a que poderíamos chamar o "objecto" do
amor. O sujeito do amor é sempre a pessoa humana, no seu todo,
com o espírito e com o corpo, com a inteligência e com o
coração; o "objecto amado" podem ser realidades
materiais: pode-se amar a natureza, um animal, uma obra de
arte. Mas é quando a realidade amada é outra pessoa, que o
amor atinge a grandeza digna do homem, pois aí os sujeitos do
amor podem ser, ao mesmo tempo, amantes e amados. O amor
proporciona, então, o encontro profundo entre pessoas, a
construção de uma intimidade, a alegria libertadora da
comunhão. Mas, quando alguém reduz outra pessoa a simples "objecto
amado", dá-se a degradação do próprio amor, porque a
pessoa do outro é desejada ou possuída como objecto que gera
algo de útil e agradável para o próprio: bem estar, prazer,
utilidade pelo que faz ou significa.
Assim o ser humano fala de amor nas diversas situações do
seu conviver com os outros: amam-se os amigos, os pais e os
filhos, amam-se um homem ou uma mulher, ama-se a Deus e cada
uma destas experiências de amor têm as suas características
próprias e expressões específicas. É próprio do ser humano não
esgotar a sua capacidade de amar apenas numa destas
experiências de amor; ao contrário, cada experiência de amor
vivida com generosidade abre para todas as outras. As mais
envolventes de todo o ser tornam a pessoa capaz de amar em
todas as circunstâncias. O amor de Deus, quando vivido com
verdade e radicalidade, influencia todas as experiências de
amor.
Amarás a Deus sobre todas as coisas.
2. O judeo-cristianismo é a religião que mais valoriza a
experiência de amor, exactamente porque nos revela Deus como
Pessoa que ama e quer ser amada, com quem o homem pode
estabelecer uma verdadeira intimidade de amor e comunhão. E se
é possível ao homem ser amado por Deus e abandonar-se a Ele,
numa resposta de amor, essa experiência influencia todas as
experiências humanas de amor. O amor do próximo brota do amor
de Deus; a comunhão com Deus dá ao homem a força e o dinamismo
de progredir continuamente, em qualidade, em todas as suas
experiências do amor.
Do amor à caridade, enuncia-nos o itinerário do
crescimento do amor, onde as capacidades naturais de amar,
enfraquecidas pelo pecado, são redimidas e potenciadas pela
força do Espírito de Deus, isto é, pela energia amorosa que
nos vem do facto de sermos amados por Deus e de o procurarmos
amar, mais que todas as outras realidades humanas. É um tema
que nos situa no âmago da relação entre a nossa natureza
humana e o dom da graça divina, pois a caridade significa
aquele grau de perfeição do amor que só é possível ao homem
com a força do Espírito Santo. A caridade acontece naqueles
que fizeram da sua experiência de amor a Deus, a fonte de toda
a sua capacidade de amar. "Amar a Deus sobre todas as
coisas" e seguir o mandamento novo de Jesus "amai-vos
uns aos outros como Eu vos amei", só é possível ao homem,
com a força de Deus. Mas sendo sobrenatural, é também a plena
realização das nossas capacidades naturais de amar. A caridade
é a verdade plena do amor, porque é o amor ao ritmo do
Espírito de Deus.
Deus deu-nos um coração capaz de amar.
3. Não é a fé que nos dá a capacidade de amar. Deus
criou-nos à sua imagem e, por isso, capazes de amar. Esta
capacidade foi ferida pelo pecado e precisa de ser resgatada
pelo amor misericordioso de Deus. A redenção restitui ao
coração humano a sua capacidade de amar e eleva-o à plenitude
dessa capacidade, amando a Deus e amando como Deus ama.
É na sua capacidade de amar que o homem se assemelha mais
a Deus. O amor humano tem, em gérmen, todas as características
do amor divino, embora não consiga, sem a graça, vivê-las em
plenitude.
A atracção: todas as experiências de amor
inter-pessoal começam nesse sentir-se atraído pelo outro. De
repente uma outra pessoa torna-se especial, porventura única,
porque há nela algo que me atrai: a sua beleza, a sua bondade,
a sua inteligência, o seu mistério. A atracção do bem e da
beleza está, quase sempre, na origem do amor. Nesse algo que
nos atrai reconhecemos a nossa identidade profunda, os nossos
anseios mais íntimos, a definição do nosso próprio ser.
Começar a amar é deixar-se guiar por essa atracção, em busca
de uma relação. Jesus comparou o Reinos dos Céus a um tesouro
que, quando se descobre, faz-se tudo para o alcançar. E fala
de atracção ao referir o amor dos discípulos para com Ele: "Ninguém
vem a Mim (isto é, me seguirá) se o Pai não o atrair"
(Jo. 6,44).
Só nos sentimos atraídos por alguém cuja realidade é
atraente. A caridade começa sempre na atracção de Deus. Jesus
refere-se a isso quando nos diz que foi Ele que nos amou
primeiro. A atracção de Deus chega a ser tão forte que se
torna irresistível. Sentir-se atraído é o primeiro convite a
amar.
A revelação: a atracção conduz-nos à pessoa amada.
Mas o amor só começa se houver revelação. A beleza que nos
atrai é escondida e misteriosa, cada pessoa guarda no segredo
do seu coração o seu tesouro. E desvelá-lo ao outro é já
atitude generosa do dom de si mesmo. Se aquele que me atrai me
aceita e se revela, o amor começa. A palavra que revela, o
gesto que anuncia, constróem o encontro progressivo entre
pessoas que se amam. É por isso que o amor é a mais verdadeira
fonte do conhecimento do outro. As pessoas que se amam
aprendem a conhecer-se progressivamente ao ritmo do amor.
Esta exigência de revelação constitui uma das maiores
dificuldades do amor humano. As pessoas querem amar e ser
amadas, mas não estão dispostas a revelar-se, guardam os seus
segredos, escondem o seu mistério. Por vezes esperam ou até
exigem a revelação do outro, mas não estão dispostas a
abandonar-se na confiança. Entre desconhecidos o amor não
cresce, pode mesmo murchar e morrer. Por outro lado o
conhecimento mútuo aumenta a atracção recíproca.
Na experiência do amor de Deus, a Sua revelação é
constitutiva do próprio amor. O Deus que nos atrai revela-se
àqueles que o procuram. Revelando-se, Deus conduz-nos à
intimidade com Ele; e quanto mais se revela, mais nos atrai. E
ao desvelar-se a Si Mesmo, Deus revela-nos o seu projecto de
amor para nós, o Seu desígnio de salvação. A sua Palavra é
resposta de amor e luz que nos guia à plenitude da vida e do
amor.
A contemplação: toda a verdadeira experiência de
amor inclui momentos de contemplação. Ao entrar, pela
revelação, na intimidade da pessoa que nos atraiu, a beleza
agora experimentada leva à contemplação. Este êxtase de amor
perante a pessoa amada é dos aspectos mais cantados pelos
poetas. No caso do amor de Deus, este contemplar a pessoa
amada chama-se adoração. "É o Senhor teu Deus que tu
adorarás e só a Ele prestarás culto" (Mt. 4,10). Na nossa
caminhada de fé essa contemplação adorante é apenas inicial.
Ela intensifica-se ao ritmo do acolhimento da Palavra
reveladora de Deus e dos dinamismos do Seu amor recebidos no
íntimo do nosso coração, mas só no Céu ela será perfeita, pois
só então "conheceremos como somos conhecidos" e
veremos, não como num espelho, mas face a face (1Cor. 13,12).
No amor humano esta dimensão contemplativa exprime-se
espontaneamente, ao ritmo do amor: o ficar encantado pelo
outro, o sentido de gratidão tão próprio do amor, a harmonia e
a serenidade interiores que brotam do amor, momentos de
profunda comunhão envolvendo a totalidade do ser. Se nada
disso acontece ou se tudo isso deixou de acontecer, é porque o
amor foi semente que não germinou e planta que não floriu.
A intimidade: todo o dinamismo amoroso busca uma
experiência de intimidade entre pessoas. É o que, em linguagem
cristã, se chama a comunhão. A intimidade entre pessoas
significa a revelação total de um ao outro, com o dom de todo
o ser, aceitando ser conhecido, para conhecer. A intimidade
realiza a experiência unitiva, expressão máxima do amor. Os
sujeitos da relação amorosa encontram-se de tal modo um no
outro, que se sentem como um só. "E serão dois numa só
carne" (Gen. 2,24).
A experiência religiosa, na revelação judaico-cristã,
resume-se à construção de uma intimidade entre Deus e o homem,
entre Deus que se nos revela ser Ele mesmo uma comunhão de
Pessoas, e o homem que é chamado a entrar nessa comunhão de
amor. É a proposta de aliança feita por Deus a Abraão, cuja
plenitude será revelada por Jesus: "E nós viremos a Ele e
faremos n'Ele a nossa morada" (Jo. 14,23). Esta intimidade
com Deus, quando acontece, torna-se central e decisiva, dá
sentido a todas as experiências de intimidade construídas
entre pessoas humanas, que encontram a sua verdade sendo
reconduzidas à intimidade de Deus, e preenche toda a ânsia de
intimidade do coração humano. O amor desabrocha na caridade.
Veremos noutro dia que é por isso que a virgindade pode ser
uma experiência de amor totalizante, realizando plenamente a
ânsia de amor do coração humano.
Em todas as suas buscas e dramas de amor, o ser humano
procura a experiência de intimidade. Mas tantas vezes não a
consegue por fragilidade e infidelidade. Toda a forma de
egoísmo, que reduz a pessoa amada à categoria de objecto
possuído; toda a dificuldade em se revelar, escondendo-se nos
seus segredos; toda a falta de generosidade confiante, que
impede a entrega sem limites, impedem essa intimidade unitiva.
Aí se experimenta que o coração humano precisa de redenção e
que a autêntica intimidade só pode ser fruto da graça do
Espírito, expressão do amor-caridade.
A ternura: é o dinamismo fundamental que exprime
todas estas dimensões do amor. A ternura é contemplação do ser
amado, é entrega generosa e totalizante, é revelação do
coração, é abertura à intimidade. Ela exprime o encantamento
pelo outro e é disposição de intimidade. É a expressão do amor
que envolve, mais espontaneamente, a totalidade do ser, na
generosidade gratuita da entrega ao outro. Onde não houver
ternura, dificilmente haverá amor.
A ternura exprime uma das qualidades mais belas do amor: a
bondade e a misericórdia. Amar é ser bom. A ternura é
generosa, tudo dá, tudo faz pelo bem do outro, tudo desculpa,
tudo perdoa. Só a ternura pode curar os corações feridos e
voltar a unir aqueles a quem a infidelidade separou. Os
atributos da ternura são os mesmos com que S. Paulo descreve a
caridade (1Cor. 13). É por isso que, na Sagrada Escritura, a
ternura é o principal atributo do amor de Deus por nós. Só
assim Deus nos podia amar, sendo bom, misericordioso e cheio
de compaixão.
A incapacidade de ternura é o efeito mais dramático do
pecado no coração humano, aquilo a que o Evangelho chama a "dureza
do coração". A incapacidade de ternura significa a
incapacidade de amar e sublinha a necessidade da
transformação, pela graça, desse coração empedernido.
A redenção do amor.
4. Toda a beleza do coração humano se exprime nesta
capacidade de amar. Mas aí reside, também, o rosto doloroso da
aventura humana, a corrupção desse dinamismo de amor. Quanta
profanação da palavra amor, que esconde o egoísmo, a
insensibilidade, a incapacidade de ternura e de comunhão. No
ser humano, enfraquecido pelo pecado, o seu coração precisa de
ser redimido, para realizar a sua vocação de amor. Já no
Antigo Testamento é claro que o chamamento à aliança com Deus
supõe a renovação do coração. Os profetas denunciam a
corrupção e a dureza do coração, que torna os israelitas
incapazes da aliança. "Este povo tem um coração desviado e
rebelde" (Jr. 5,23), "um coração incircunciso" (Lv.
26,41), "um coração mau" (Jr. 7,24). Eles precisam de
invocar Deus e Lhe pedir que lhes recrie "um coração puro"
(Sl. 51,12). E esta é a grande promessa da redenção, a
promessa de um "coração novo". "Eu derramarei sobre
vós uma água pura e sereis purificados; de todas as vossas
imundices e de todos os vossos ídolos. Eu vos purificarei.
Dar-vos-ei um coração novo e porei em vós um espírito novo,
tirarei da vossa carne o coração de pedra e dar-vos-ei um
coração de carne. Porei o meu Espírito em vós e farei que
caminheis segundo as minhas Leis" (Ez. 36, 25-28).
Esta promessa de um coração renovado viabilizará a aliança
como uma união de ternura e de amor: "desposar-te-ei para
sempre, desposar-te-ei na justiça e no direito, na ternura e
no amor; desposar-te-ei na fidelidade e tu conhecerás o Senhor"
(Os. 2,21-22).
Jesus inicia a sua pregação por um convite à conversão do
coração (Mc. 1, 15), fundamental para entrar na dinâmica do
Reino. Jesus, o verdadeiro e definitivo "coração novo",
realiza entre o homem e Deus o amor radical e definitivo, a
plenitude da aliança. Mas misteriosamente a expressão sublime
desse amor novo é a Sua morte na Cruz, o seu Sangue derramado
é o sinal da aliança definitiva, e na sua entrega Ele redime o
nosso coração. No baptismo mergulhamos com Ele, na morte, para
ressurgirmos com um coração novo. O caminho do amor-caridade
voltou a ser possível, sabendo nós que no nosso caminho de
amor encontramos sempre a exigência da Cruz.
O itinerário que nos leva do amor à caridade passa pela
vivência do mistério pascal, porque todos os nossos dinamismos
de amor precisam de ser purificados e redimidos. O caminho do
amor não é fácil, tantas vezes significa aceitar morrer para
viver, superar na renúncia e no sofrimento os instintos de
facilidade a que nos conduz o nosso desejo de amar. O caminho
do amor é o caminho da generosidade e da coragem.
A caridade é um dom do Espírito.
5. A redenção do coração humano, radicalmente garantida no
amor total de Cristo na Cruz, torna-se viva e recriadora em
cada homem, através do dom do Espírito Santo, Ele próprio o
amor divino personificado. É por isso que a redenção não
produz fruto automático no homem; mesmo depois da morte de
Cristo continua a haver corações empedernidos. É preciso
unir-se a Cristo morto e ressuscitado, pela fé e pelo baptismo
e abrir o coração ao Amor, para acolher o dom do Espírito
transformador. Só Ele nos dará um "coração novo", capaz
de acolher o amor divino e amar com a força de Deus, na
realidade começar a amar como Deus ama. Deus revela-se-nos,
então, com a ternura de um Pai, bondoso e misericordioso, que
nos atrai cada vez mais e se desvela progressivamente no Seu
mistério. Dirigir-se a Deus como Pai só é possível pela acção
do Espírito Santo (Rom. 8,15). O Espírito Santo derrama nos
nossos corações o amor de Deus (Rom. 5,5). Esse amor tem a
marca da eternidade e do definitivo. Nada deste mundo poderá
jamais separar-nos do amor de Deus com que amamos Jesus Cristo
(Rom. 8,35ss).
Este dom do amor de Deus transforma qualitativamente as
experiências de amor humano, elevadas ao nível da caridade
divina. O amor do próximo é indissociável do amor de Deus. "Quem
não ama o seu irmão que vê, não pode dizer que ama a Deus que
não vê" (1Jo. 4,20ss). O amor humano atinge as qualidades
do amor divino. "Sede misericordiosos como o vosso Pai
Celeste é Misericordioso" (Lc. 6,36). É essa qualidade
radical da caridade que ressalta na recomendação de Paulo aos
Efésios: "procurai imitar Deus como filhos muito amados e
segui a via do amor a exemplo de Jesus Cristo que nos amou e
Se entregou por nós" (Efs. 5, 1-2).
6. O caminho que nos leva do amor à caridade é um longo
percurso, que inclui a redenção do nosso coração e de toda a
nossa capacidade humana de amar; passa pela abertura
progressiva do nosso coração ao amor de Deus, realiza-se
através de todos os meios sacramentais da graça. Quando me
reconcilio com Deus, quando celebro a Eucaristia, quando sou
confirmado pelo Espírito Santo, lanço-me nessa aprendizagem do
amor novo, que me levará a amar o meu irmão como Cristo nos
amou. O amor conjugal, objecto central destas Catequeses
Quaresmais, é o exemplo mais claro que a vivência sacramental
é o único caminho para enxertarmos sobre as raízes de um
coração humano convertido, o mistério da caridade.
Sé Patriarcal de Lisboa, 17 de Fevereiro de 2002
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA NO 2.º DOMINGO DA QUARESMA
"Amor e
Sexualidade"
Introdução.
1. A relação entre amor e sexualidade constitui uma
evidência afirmada, ao longo de séculos, pelas culturas, o que
significa aceitar que a sexualidade humana só encontra
expressão com sentido na experiência do amor e que é um
dinamismo de amor. Esta é a perspectiva base da visão cristã
do homem e da mulher.
No entanto, mais recentemente, uma visão estritamente
funcional dos dinamismos humanos, põe em causa essa equação,
afirmando, como válida, uma expressão da sexualidade desligada
do amor. Uma olhadela ao primeiro dia do "site" posto à
disposição dos jovens pela Secretaria de Estado da Juventude
sobre sexualidade, é disso elucidativo. Afirma um jornal
diário: "parecia haver uma unanimidade em torno da ligação
entre sexo e amor: o amor não é preciso, mas se as duas
pessoas gostarem uma da outra, o sexo tem outro sabor".
Uma outra resposta dizia que "basta ter confiança, e que
haja amor de preferência" .
[1]
É neste contexto que se situa a nossa Catequese de hoje. A
Igreja é continuamente interpelada para aceitar abordagens
funcionais da sexualidade, mas ela não pode reger-se, nesta
matéria, por visões culturais ou sociológicas. A sua
antropologia, isto é, a sua doutrina acerca do homem,
concebido este como homem e mulher, fundamenta-se na
revelação, isto é, na verdade criacional do homem como
projecto de Deus e nos é transmitida pela Sagrada Escritura e
pela Tradição. E esta visão revelada do homem conduz-nos a uma
afirmação central no que ao sentido da sexualidade diz
respeito: a sexualidade humana exprime-se na natureza
bissexuada do ser humano, isto é, na complementaridade do
homem e da mulher e encontra o seu sentido numa relação de
amor. Em termos cristãos esta união do homem e da mulher, no
amor, tende para ser uma expressão da caridade, isto é, do
amor que encontra a sua força, não apenas na natureza, mas na
graça de Deus.
Homem e Mulher Deus os criou.
2. Entre os "mitos de origem", ou seja, tradições,
normalmente religiosas, que explicam a origem da humanidade,
há uma entre os povos orientais que me permito referir aqui,
porque nos ajuda a encontrar o contexto para a leitura dos
textos bíblicos de origem, do Livro dos Génesis. Conta essa
tradição mítica que, no início da humanidade Deus criou um
único ser, que reunia em si todas as características do
masculino e do feminino. Mas esse ser revelou-se de tal
maneira forte que os deuses o temeram. Para o enfraquecer
dividiram-no em dois, o homem e a mulher que, assim separados,
ficaram mais fracos. É por isso que, desde esse dia, o homem e
a mulher procuram unir-se de novo, para recuperar a força
perdida. Sugere-nos a narração bíblica, que põe na boca de
Deus Criador esta afirmação: o homem e a mulher serão os dois
um só. (cf. Gen. 2,24; Mt. 19,5).
Os textos do Génesis (Gen. 2,7-25 e 1,26-31) são narrações
de origem, que aliás integram "mitos de origem"
oriundos de outras culturas, em que o autor sagrado introduz a
especificidade da revelação. Os dois textos são complementares
e, em conjunto, comunicam-nos a primeira compreensão bíblica
do mistério do homem, que só viria a ser totalmente revelada
em Nosso Senhor Jesus Cristo. Deles ressaltam os seguintes
traços característicos do homem:
* A Corporeidade do homem: trata-se de um ser único em
toda a criação. Corpóreo como todos os outros, mas a sua vida
não é apenas biológica, depende do sopro de Deus. "Deus
modelou o homem com o barro da terra e insuflou nas suas
narinas um espírito de vida e o homem tornou-se um ser vivo"
(2,7). A vida do homem exprime-se no corpo, mas é espiritual,
tem a sua origem no sopro divino. Esta é uma chave decisiva
para a interpretação da sexualidade humana que exclui
espiritualismos radicais que excluam o corpo, ou visões
fisicistas que não respeitem as exigências do espírito.
* A criação do homem (no sentido de ser humano) só fica
completa com a criação da mulher. Esta é introduzida com a
declaração solene de que a solidão não é boa para o homem: "não
é bom que o homem esteja só" (2,18). A diferenciação dos
sexos é o caminho escolhido por Deus para que o homem e a
mulher vençam a solidão. "É bom que Eu lhe faça um
complemento para que se possa unir a ele" (2,18).
Repare-se que a ameaça da solidão não é, automaticamente,
vencida. A sua possibilidade está unida à autonomia de cada um
dos seres humanos. Em toda a dinâmica desta narração está
subjacente o problema da liberdade e da iniciativa humanas: o
homem é chamado a colaborar na obra da criação. Está dito que
não é bom, nem para o homem, nem para a mulher, estarem sós.
Mas eles têm de se descobrir um ao outro para serem completos
e fortes e vencerem a solidão. Nessa descoberta mútua um do
outro, eles reconhecem-se como pessoas, isto é, como seres em
relação.
* A experiência de comunhão representa para os seres
humanos a sua força e a sua plenitude. A reacção de Adão à
criação de Eva é o primeiro poema de amor da história da
humanidade: "Esta é osso dos meus ossos e carne da minha
carne" (2,23). João Paulo II considera este texto o
protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. "O texto conciso
de Gén. 2,23 que revela as palavras do primeiro homem ao ver a
mulher criada, "arrancada dele", pode ser considerado como o
protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. E se é possível
detectar impressões e emoções ao ler palavras tão antigas,
poderíamos arriscar dizer que a profundidade e a força desta
primeira emoção, desta emoção "original" experimentada pelo
homem, ser masculino diante da humanidade da mulher e, ao
mesmo tempo, perante a feminilidade de outro ser humano, é
verdadeiramente única e irrepetível"
[2].
Segundo o Livro dos Génesis, o homem e a mulher só
vencerão a solidão e encontrarão a sua força, neste
encantamento mútuo de uma comunhão de amor.
Criados à imagem de Deus.
3. Depois de apresentar o mistério do homem e da mulher,
como seres capazes de solidão e de comunhão de amor, o autor
sagrado, continuando a aprofundar o mistério do homem, faz uma
afirmação ousada: nessa comunhão de amor o homem e a mulher
são a imagem do próprio Deus, Ele próprio comunhão amorosa de
pessoas, na comunhão trinitária: "Deus criou o homem à Sua
imagem, à imagem de Deus os criou, homem e mulher os criou"
(1,27).
Ouçamos, ainda, o Santo Padre: "O homem tornou-se imagem e
semelhança de Deus, não só pela sua própria humanidade, mas
também pela comunhão de pessoas que o homem e a mulher formam
desde o início. A imagem tem como função reflectir o modelo,
reproduzir o seu próprio protótipo. O homem torna-se imagem de
Deus, menos no momento da solidão do que no momento da
comunhão. Com efeito, desde a origem, ele não é só a imagem
que reflecte a solidão de uma Pessoa que rege o mundo, mas é
essencialmente a imagem duma insondável comunhão divina de
Pessoas"
[3].
O Deus de quem o homem é a imagem, não é um ser solitário,
ainda que omnipotente, mas uma comunhão de pessoas. A narração
do Génesis abre-nos para uma visão trinitária da imagem de
Deus. Não é por acaso que, na revelação cristã, a união de
amor entre Cristo e a Igreja é apresentada como comunhão
esponsal, modelo definitivo e radical da união de amor entre o
homem e a mulher.
Características da sexualidade humana na revelação
bíblica.
4. Ao ler estas narrações da criação, iluminados pela
posterior revelação, podemos identificar os principais
dinamismos constitutivos da sexualidade humana:
* É uma sexualidade relacional. Só se descobre
verdadeiramente o que é ser homem e ser mulher, numa relação
mútua de amor. O homem (ser masculino) é homem para a mulher e
esta é-o para o homem. O sentido profundo da sexualidade
humana é indesligável desta relação. Qualquer expressão
solitária da sexualidade ou a sua vivência entre pessoas do
mesmo sexo, acabam por ser a expressão da solidão humana.
* A sexualidade é um dinamismo de amor encarnado.
Na comunhão de amor entre o homem e a mulher, consegue-se a
síntese harmónica entre a dimensão espiritual e a corpórea do
amor. O corpo é uma linguagem de amor, símbolo de comunhão,
sacramento da harmonia. Mas a densidade espiritual será sempre
característica de todo o amor.
* Expressão de intimidade. Todo o amor constrói uma
experiência de intimidade, que passa pela revelação como dom
da própria intimidade, em ordem ao conhecimento mútuo, à
contemplação do outro, à unidade de dois seres num só. Na
sexualidade humana, a intimidade dos corpos não se pode
desligar da intimidade espiritual, mas o dom do próprio corpo
pode significar a entrega do coração e a alegria da comunhão.
A intimidade supõe generosidade e sentido do dom; tudo é
oferecido, para tudo ser recuperado na alegria da unidade. A
busca egocêntrica do prazer atraiçoa a sexualidade como
dinamismo de intimidade. A revelação cristã abre-nos para o
verdadeiro horizonte desta busca da intimidade de comunhão, na
medida em que nos revela que a verdade definitiva de uma
relação íntima entre duas pessoas é realização do mistério de
comunhão, impossível sem a intimidade com Deus.
* Dinamismo de fecundidade: segundo a narração do
Génesis, a vivência da união sexual entre o homem e a mulher
foi fecunda e deu como fruto um filho. "O homem conheceu
Eva, sua mulher: ela concebeu e deu à luz Caim e exclamou:
adquiri um homem pela força de Deus" (Gén. 4,1). Imagem de
Deus, o homem e a mulher, plenitude da humanidade na sua
relação de amor, tornam-se colaboradores de Deus no dom da
vida. A união sexual, expressão da comunhão de amor, é sempre
aberta à comunicação da vida, porque segundo o plano de Deus,
a vida brota do amor.
Esta abertura da sexualidade à comunicação da vida tem
sido posta em questão pela cultura, originando uma discussão
ética. O centro da discussão reside nisto: podem o homem e a
mulher, pelos meios que a ciência e a técnica foram pondo ao
seu alcance, fechar temporária ou definitivamente a sua
sexualidade à comunicação da vida? A inspiração revelada da
sexualidade diz-nos que isso não é ético, o que não significa
que cada união entre o homem e a mulher se justifique apenas
pela comunicação da vida. O planeamento da fecundidade física
pelo casal faz parte do amor e da generosidade com que é
vivida toda a relação de intimidade.
* Um tesouro ameaçado: a vivência da sexualidade
insere-se no crescimento do homem no amor, luta de todos os
dias e de toda uma vida, atraído pela verdade, ameaçado pela
fragilidade. É uma construção generosa de vitória sobre os
possíveis desvios, que nós cristãos sabemos ser impossível sem
a graça de Deus.
O Livro dos Génesis, enquanto narração de origem, inclui
esta fragilidade da sexualidade no próprio dinamismo da
criação. Há um contraste entre a inocência e o sentido de
culpa. O "mito" da árvore da ciência do bem e do mal
sugere-nos que a vida amorosa do homem e da mulher tem uma
dimensão moral. Dificilmente o homem acertará com o caminho do
bem, se não vive a sua sexualidade como dom e obediência ao
plano de Deus.
O texto fala-nos da inocência original: "ora os dois
estavam nus, o homem e a mulher não tinham vergonha um do
outro" (Gén. 2,25). Todo o verdadeiro amor é inocente;
esta inocência original é o anúncio da verdadeira inocência,
dom do Espírito de Jesus ressuscitado; é a inocência baptismal
anunciada.
Mas o texto mostra logo a seguir como essa inocência
original é um tesouro ameaçado. O homem acusa a mulher, não
seguiram o plano de Deus e passaram a ter vergonha da sua
nudez (cf. Gen. 3,7ss). Quando o homem e a mulher se escondem
um do outro, é a sua comunhão de amor que está ameaçada.
Quais são as grandes ameaças à verdade da sexualidade
humana? Resumem-se todas a uma: a tentação da sua vivência
fora da beleza e da exigência de uma relação de amor. A
procura da expressão sexual como auto-fruição egoísta de
prazer e bem estar; o não perceber que, numa relação de amor,
a vivência da própria sexualidade é um dom feito ao outro; o
desligar a dimensão física da sexualidade da ternura e da
intensidade espiritual da comunhão; o desligar forçadamente a
vivência da sexualidade da generosidade do dom da vida. Porque
se trata da construção generosa da comunhão, a vivência
positiva da sexualidade supõe a força de Deus, pois só Ele nos
torna capazes de crescer no amor, até à beleza da caridade.
A castidade é possível.
5. A castidade é, na vida cristã, uma expressão do
amor-caridade. As chamadas virtudes morais são a vivência da
caridade num sector concreto das realidades da nossa vida. A
castidade é a vivência generosa da sexualidade, integrada nas
exigências globais da santidade cristã e da caridade.
Estando ligada à vivência da sexualidade, a castidade
vive-se em relação, com Deus, com a pessoa amada, com todos os
outros irmãos com quem queremos construir a Igreja como
comunhão. A castidade supõe a renúncia a experiências sexuais
facilitantes, mas essa renúncia é dom, anuncia o desejo de
vivência generosa de todos os nossos dinamismos de amor, no
contexto da comunhão conjugal, mas também no contexto mais
alargado da comunhão eclesial. Há uma fecundidade eclesial da
castidade, o que explica que a virgindade assumida possa ser
um caminho de vivência da sexualidade. Mas disso falaremos num
dos próximos domingos.
Sé Patriarcal de Lisboa, 24 de Fevereiro de 2002
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
NOTAS:
1 - Jornal O PÚBLICO, edição de 14 de Fevereiro de 2002
2 - João Paulo II, À l'immage de Dieu homme et femme,
Cerf (1980), pg. 74
3 - Ibidem, pg. 77
CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA
NO 3.º DOMINGO DA QUARESMA
"O
sacramento do matrimónio: a graça plenifica a natureza"
Os sacramentos na vida do cristão.
1. A vida cristã é uma caminhada para a santidade. Esta
consiste na vida sintetizada no amor, plenitude de todos os
dons que recebemos de Deus, quando nos criou. A santidade não
anula a natureza, é, antes, a sua plenitude. Deus revelou-nos,
através da história da salvação, que este crescimento no amor
é feito com Ele, que celebra uma aliança de intimidade com o
seu povo. Jesus Cristo, o Filho de Deus e homem completamente
obediente a Deus, leva, na sua Páscoa, esta aliança à
perfeição. N'Ele todos os homens podem atingir a plenitude da
aliança com Deus. Ele próprio, falando da sua Paixão, se
refere ao derramamento do Seu próprio Sangue, como sinal de
aliança: "Este cálice é a nova aliança no meu Sangue, que
vai ser derramado por vós" (Lc. 22,20).
Os cristãos celebram e vivem esta aliança de amor, sempre
numa referência necessária à morte e ressurreição de Cristo,
prolongada na sua vida, como força de amor, pelo dom do
Espírito Santo. Os sacramentos da Igreja são meios de os
cristãos referirem a sua vida à Páscoa de Jesus, recebendo
deles a força do Espírito, para poderem viver a sua vida como
experiência de dom e de amor.
Segundo a tradição da Igreja, são sete os sacramentos,
todos eles vivência e actualização da Páscoa de Cristo, no
Espírito Santo. Mas como eles se dirigem à vida concreta das
pessoas e à vitalidade da Igreja, como Povo do Senhor, podemos
dividi-los em três grupos, segundo a sua significação
específica: os sacramentos da iniciação cristã. Baptismo,
confirmação, eucaristia, realizam a união do cristão a Cristo
ressuscitado e, por Ele, à Santíssima Trindade, tornando-o
capaz de celebrar a Páscoa de Jesus; o sacramento da ordem
consagra e santifica os ministros de Cristo, que hão-de agir
em nome de Cristo, para santificação de toda a Igreja; há
depois um terceiro grupo de sacramentos que relacionam com a
morte e ressurreição de Cristo, dimensões da experiência
humana, particularmente universais e significativas. A
experiência do pecado, assumida e confessada e transformada
pelo arrependimento, no sacramento da reconciliação
proporciona a graça da conversão; a experiência da doença, do
sofrimento e da morte, oferece, no sacramento da unção, a
graça da saúde, da força para sofrer e da conversão a Deus,
que será nosso juiz, justo e bondoso; o casamento, enquanto
experiência de amor e de comunhão, encontra, no sacramento do
matrimónio, a graça de um amor mais generoso e de uma comunhão
tão profunda que se funde com a própria comunhão de Cristo com
o seu Povo.
Porquê mais um sacramento?
2. Já falámos, nos domingos anteriores, da beleza do
projecto de Deus acerca da união esponsal do homem e da
mulher, como experiência de amor e comunhão, mas também da
fragilidade dos dinamismos humanos do amor, enfraquecidos pelo
pecado. Para que a união conjugal atinja a plenitude do amor,
os esposos precisam de ser fortalecidos com a força do
Espírito, que os ajuda a viver a sua aliança de amor ao ritmo
da aliança de Deus com o seu Povo, definitivamente ratificada
na morte de Cristo. O casamento é uma experiência humana onde
é cada vez mais claro que, para o amor não definhar, antes
crescer até à perfeição da caridade, precisa da força de Deus.
O sacramento do matrimónio, consequência da união dos esposos
a Cristo, pelo baptismo, é a fonte dessa força.
O casamento, enquanto comunhão de amor do homem e da
mulher, não começa com Cristo, ele é um dom da criação. A
Páscoa de Jesus redime-o, fortalece-o e permite-lhe atingir a
perfeição querida por Deus desde a criação. O Papa João Paulo
II afirma: "Cristo revela a verdade originária do
matrimónio, a verdade do princípio e, libertando o homem da
dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar
inteiramente" 1. Esta plenitude do amor conjugal
faz parte da plenitude da aliança com Deus, realizada na Cruz
de Cristo, onde os cristãos mergulham, pelo baptismo. Continua
o Santo Padre: "No sacrifício da Cruz manifesta-se
inteiramente o desígnio que Deus imprimiu na humanidade do
homem e da mulher, desde a sua criação. O matrimónio dos
baptizados torna-se, assim, o símbolo real da Nova e Eterna
Aliança, selada no Sangue de Cristo. O Espírito, que o Senhor
infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes
de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge a
plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade
conjugal, que é o modo próprio e específico com que os esposos
participam e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo
que Se entrega sobre a Cruz" 2. E mais à frente,
referindo-se às graças próprias deste sacramento, o Papa
acrescenta: "Trata-se de características normais do amor
conjugal natural, mas com um significado novo, que não só as
purifica e as consolida, mas eleva-as a ponto de as tornar
expressão dos valores propriamente cristãos" 3.
O sinal sacramental.
3. Todos os sacramentos realizam a sua graça própria
através de uma realidade sinal, rica de significado
humano, através da qual o Espírito de Deus realiza uma nova
significação, da ordem da plenitude da salvação. O significado
sobrenatural é obra do Espírito; mas a significação humana da
realidade sinal sugere-a: no baptismo, a água purificadora e
vivificadora, significa e realiza o nascimento para uma vida
nova, participação na vida de Cristo ressuscitado.
No sacramento do matrimónio qual é a realidade sinal? É a
própria realidade do amor conjugal. Tratando-se de uma
comunhão de amor, nenhuma outra realidade poderia significar
melhor a perfeita comunhão, na caridade, a que o Espírito
Santo conduz os cristãos. E o amor conjugal é sinal do amor
redentor de Jesus Cristo, na pluralidade das suas dimensões.
Demos, ainda, a palavra ao Santo Padre: "O amor conjugal
comporta uma totalidade na qual entram todas as componentes da
pessoa: chamamento do corpo e do instinto, força do sentimento
e da afectividade, aspiração do espírito e da vontade. O amor
conjugal tem, por fim, uma unidade profundamente pessoal,
aquela que, para além da união numa só carne, conduz a um só
coração e a uma só alma" 4.
Sendo a própria realidade humana do casamento o sinal
sacramental do matrimónio, os esposos cristãos, por força do
seu baptismo, celebram o sacramento, de que são ministros, ao
ritmo da vivência da sua união conjugal, vivida na
generosidade e na fidelidade. É um sacramento de celebração
contínua, o que ajuda os esposos cristãos a dar à sua vida
conjugal uma dimensão de celebração e de louvor. A sua vida
torna-se liturgia. Voltemos a ler a "Familiaris Consortio":
"O matrimónio cristão, como todos os sacramentos que estão
ordenados à santificação dos homens, à edificação do Corpo de
Cristo e a prestar culto a Deus é, em si mesmo, um acto
litúrgico de louvor a Deus, em Jesus Cristo e na Igreja:
celebrando-o, os esposos cristãos professam a sua gratidão a
Deus pelo dom sublime que lhe foi dado de poder reviver na sua
existência conjugal e familiar, o mesmo amor de Deus pelos
homens e de Cristo pela sua esposa" 5.
4. O sacramento do matrimónio, ao constituir como sinal
sacramental a união dos esposos, exprime o realismo do
mistério da encarnação, em que o Verbo eterno de Deus se nos
dá, numa comunhão de amor, através do Seu próprio Corpo: "Tomai
e comei, isto é o meu Corpo" (Mt. 26,26); e São Lucas
acrescenta "que vai ser entregue por vós. Fazei isto em
minha memória" (Lc. 22,19). A encarnação e o sacrifício
redentor de Cristo são o fundamento de uma teologia do corpo.
O corpo exerce, no conjunto do mistério da pessoa humana, um
papel simbólico de sinal. Ele exprime e torna visível os
sentimentos do espírito e do coração: a ternura, a entrega e o
dom, a intimidade e a fecundidade, o desejo unificador de
comunhão.
Numa das suas Catequeses de quarta-feira o Santo Padre
afirma, referindo-se ao sacramento do matrimónio: "Como
sinal visível, o sacramento constitui-se com o ser humano
enquanto corpo, na realidade da sua masculinidade e
feminilidade visíveis. Com efeito, o corpo e só ele, é capaz
de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino.
Ele foi criado para transferir para a realidade visível do
mundo o mistério escondido, desde toda a eternidade, em Deus e
ser o seu sinal visível" 6.
Sinal visível das realidades invisíveis, o corpo exprime a
comunhão de amor entre o homem e a mulher e o aprofundamento
dessa comunhão, na caridade é, exactamente, a graça própria
deste sacramento. E mais uma vez este crescimento qualitativo
entre duas pessoas se insere na relação entre Cristo e a
Igreja, sendo a sua realização.
No Antigo Testamento era comum fazer da união esponsal o
símbolo da união de Deus com o seu Povo, no mistério da
aliança. No Novo Testamento verifica-se uma transformação
qualitativa desta imagem. A verdadeira e definitiva comunhão
esponsal é aquela que existe entre Cristo e o Seu corpo, que é
a Igreja e as núpcias dos cristãos participam dessa comunhão
esponsal e, através do sacramento, realizam-na na sua própria
experiência humana de casal, foco de irradiação de uma nova
comunhão alargada, a família, autêntica concretização da
Igreja comunhão. A família, a partir da graça do sacramento,
torna-se, realmente, uma "igreja doméstica". É São
Paulo que faz a síntese entre estes dois momentos de um mesmo
mistério: "Eis que o homem deixará o seu pai e a sua mãe
para se unir à sua mulher e os dois formarão uma só carne.
Este é um mistério de grande alcance, porque se aplica a
Cristo e à Igreja" (Ef. 5,31-32). Isto é possível porque
os cônjuges cristãos, antes de serem o corpo um do outro,
fazem ambos parte do Corpo de Cristo. São Paulo, afirmando
que, com o Seu corpo, Cristo se une à Igreja, pergunta: "E
nós, não somos membros do Seu Corpo?" (Ef. 5,29-30).
É por isso que, na vida de um casal cristão, a Eucaristia,
enquanto comunhão com Cristo, é um momento tão importante,
como a sua própria união conjugal.
Voltamos a citar a Familiaris Consortio: "O
dever de santificação da família tem a sua primeira raiz no
baptismo e a sua expressão máxima na Eucaristia, à qual está
intimamente ligado o matrimónio cristão (...) Redescobrir e
aprofundar essa relação é absolutamente necessário, se se
quiserem compreender e viver com maior intensidade as graças e
responsabilidades do matrimónio e da família cristã. A
Eucaristia é a fonte mesma do matrimónio cristão" 7.
As graças próprias do sacramento do matrimónio.
5. Globalmente abraçando todas as concretizações, a graça
própria do sacramento do matrimónio é o caminho de santidade
dos esposos. "O sacramento do matrimónio, que retoma e
especifica a graça santificante do baptismo, é a fonte própria
e o meio original de santificação para os esposos". Esta
graça sublinha o carácter perene e contínuo deste sacramento.
"O dom de Jesus Cristo não se esgota na celebração do
matrimónio, mas acompanha os esposos ao longo de toda a
existência. (...) Jesus Cristo permanece com eles, para que,
assim como Ele amou a Igreja e Se entregou por ela, de igual
modo os esposos cristãos são fortalecidos e como que
consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um
sacramento especial; cumprindo, graças à energia deste, a
própria missão conjugal e familiar, penetrados do Espírito de
Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e
caridade, avançam cada vez mais na própria perfeição e mútua
santificação e cooperam assim juntos para glória de Deus"
8.
6. Mais concretamente, a graça específica do sacramento é
o aprofundamento da comunhão conjugal, como autêntica vivência
da caridade e participação no amor com que Cristo ama a
Igreja. Isto supõe a generosidade do dom, a vitória sobre
todas as tentações de egoísmo e de auto-procura, a vivência do
próprio corpo como sinal de dom e de comunhão e não como busca
de si mesmo. No amor conjugal o próprio prazer é oferecido ao
outro, na busca de uma plenitude de comunhão.
Esta graça sacramental ajudará à revelação mútua dos
cônjuges, ao respeito pela identidade e dignidade de cada um,
à ajuda mútua e fraterna; ensina a perdoar e a acreditar, em
cada momento, que o amor é possível, atraídos pela comunhão
definitiva no Reino dos Céus.
7. Outro aspecto da graça própria deste sacramento é a sua
fecundidade eclesial. A comunhão verdadeira entre os esposos
prolonga-se na construção da comunidade familiar, como
autêntica comunhão de vida e de amor e na edificação da Igreja
como mistério de comunhão e esposa de Cristo. Há uma
fecundidade apostólica no amor conjugal. Mas nisso falaremos
no próximo domingo.
Sé Patriarcal de Lisboa, 3 de Março de 2002
† JOSÉ, Cardeal Patriarca
NOTAS:
1 -
Familiaris Consortio (FC), n.º 13
2 - Ibidem
3 - Ibidem
4 - Ibidem
5 - Ibidem, n.º 56
6 - João Paulo II, À l'immage de Dieu homme et femme,
pg. 157-158
7 - Familiaris Consortio, n.º 57
8 - Ibidem, n.º 56 ; cf.Gaudium et Spes, n.º 49
CATEQUESE DO CARDEAL PATRIARCA
NO 4.º DOMINGO DA QUARESMA
"A
Fecundidade do Amor"
1. O amor é a mais bela expressão da vida e por isso
comunica espontaneamente a vida. São Tomás de Aquino afirmou-o
numa fórmula, hoje consagrada: "amor est difusivum sui",
isto é, o amor expande-se a si mesmo, difunde-se à sua volta.
É esta característica do amor que explica o mistério da
criação. Deus, o amor absoluto - "Deus é amor" (1Jo.
4,8-16) - que exprime, desde toda a eternidade, a fecundidade
desse amor, na vida íntima da Santíssima Trindade, na geração
do Filho e na inspiração do Espírito Santo, concretiza-a
também na criação do universo e do homem. Deus cria a partir
do amor e para o amor; o homem foi criado por amor e para o
amor.
Esta expansividade do amor exprime-se, na nossa vida, de
maneiras muito simples: uma pessoa feliz ajuda os outros a
serem felizes, alguém que ama, traça à sua volta, um rasto de
luz e de vida. É por esse mesmo dinamismo que a Igreja, amada
por Jesus Cristo, reflecte no seu rosto, para os outros
homens, a luz de Cristo.
(1)
O amor gera no coração das pessoas que amam e são amadas,
um dinamismo, uma inquietação, que as faz sentir-se enviadas a
testemunhar o amor. Essa força é a origem, por exemplo, do
dinamismo missionário e apostólico e do ardor de todos os
grandes apaixonados pelo serviço dos outros homens. O fruto
espontâneo da fecundidade do amor é semear o amor, amando cada
vez mais os que já amamos, descobrindo que amar é anunciar e
comunicar a vida. Jesus disse: "Eu vim para que tenham vida
e a tenham em abundância" (Jo. 10,10).
A fecundidade do matrimónio cristão.
2. Relembremos aqui que a comunhão conjugal, união de amor
do homem e da mulher, é a mais forte expressão da "imagem
de Deus" que trazem gravada no seu coração. Por isso esse
amor participa da fecundidade do amor de Deus. Essa
fecundidade é total. Não só participam espiritualmente desse
amor divino, entrando na comunhão trinitária e semeando, com o
seu amor, a alegria noutros corações, mas partilham com Deus a
alegria da criação, gerando filhos, outros homens e mulheres,
também eles "imagens de Deus" e vocacionados para o
amor. Ao gerar filhos, o homem e a mulher participam no poder
criador de Deus. Diz o Santo Padre João Paulo II na
Familiaris Consortio: "na sua realidade mais profunda,
o amor é essencialmente dom. o amor conjugal, levando os
esposos ao conhecimento recíproco que os torna "uma só carne",
não se esgota no interior do próprio casal, já que os habilita
para a máxima doação possível, pela qual se tornam
cooperadores de Deus no dom da vida a uma nova pessoa humana.
Deste modo os esposos, enquanto se dão entre si, dão, para
além de si mesmos, um ser real - o filho, reflexo vivo do seu
amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e
indissociável do seu ser de pai e mãe".
(2)
Segundo o Livro do Génesis, a procriação de um filho
constitui a plenitude do dinamismo da criação. Do mesmo modo
que a criação do homem só ficou completa com a criação da
mulher, assim a do casal só atingiu a sua plenitude no
nascimento de Caim. Eva, depois de ter concebido e dado à luz
exclama: "adquiri um homem pelo poder de Deus" (Gen.
4,1). Na sua fecundidade o par humano atinge a sua plenitude
enquanto imagem de Deus. A alegria da maternidade é a mais
bela exultação pelo dom da vida. Eva reconhece duas coisas
fundamentais no dom da fecundidade: o filho que gerou é um
homem, igual ao que saiu das mãos de Deus, e ela gerou-o com o
poder de Deus, não um poder mítico e factual, mas dinamismo
inserido na força da criação. A procriação é a plenitude da
criação.
Leiamos, a este propósito, mais um texto da "Familiaris
Consortio": "Deus, com a criação do homem e da mulher à
Sua imagem e semelhança, coroa e leva à perfeição a obra das
suas mãos. Chama-os a uma participação especial do seu amor e
poder de Criador e Pai, mediante a sua cooperação livre e
responsável na transmissão do dom da vida humana. (...) A
fecundidade é o fruto e o sinal do amor conjugal, o testemunho
vivo da plena doação recíproca dos esposos"
(3),
e da sua disponibilidade para realizarem na vida a obra
fecunda do próprio Deus.
Amor esponsal e amor paternal-maternal.
3. O amor esponsal revela a identidade profunda do homem e
da mulher. A sua união de amor torna-se revelação e é fonte de
conhecimento mútuo. E nessa revelação da identidade profunda
do homem e da mulher, ressalta a sua qualidade de pai e de
mãe. O amor conjugal desabrocha na paternidade e na
maternidade. E assim se reconhecem, mais uma vez, como "imagem
de Deus". É que no mistério de Deus, comunhão trinitária,
a cuja imagem foram criados, o Espírito de amor revela a
identidade de Deus Pai e de Deus Filho; a paternidade de Deus
Pai é partilhada pelo homem, criado à imagem de Deus, na
paternidade e na maternidade humanas. Quando alguns arriscam
afirmar que Deus também é mãe, exprimem apenas a intuição que
a maternidade humana é participação do mistério da paternidade
divina. Aliás, nada na criação se assemelha tanto ao coração
de Deus como um coração de mãe, que encontra a sua plena
expressão no coração de Nossa Senhora, a Virgem Mãe.
O Livro do Génesis, narração original da criação, une a
intimidade conjugal ao conhecimento mútuo dos esposos e esse
conhecimento revela, na experiência da fecundidade, a dimensão
de paternidade e maternidade. "O homem conheceu Eva, sua
mulher; ela concebeu e deu à luz Caim e exclamou: adquiri um
homem, com o poder de Deus" (Gen. 4,1). Neste texto é
Adão, o homem, que reconhece a mulher na sua maternidade, e ao
conhecer a sua companheira como mãe, reconhece-se a si mesmo
como pai. A maternidade da mulher é a experiência a partir da
qual o casal se reconhece, mais profundamente, na sua
esponsalidade.
Ouçamos, a este propósito, o Papa João Paulo II nas suas
catequeses: "Toda a constituição do corpo da mulher, o seu
aspecto particular, aquelas qualidades que, pela força de uma
atracção perpétua, estão na origem do conhecimento de que nos
fala Gen. 4,1-2, estão em estreita ligação com a maternidade.
Com a simplicidade que lhe é própria, a Bíblia e, na sequência
dela, a Liturgia, honram e louvam, ao longo dos séculos "as
entranhas que te trouxeram e os seios que te alimentaram"
(Lc. 11,27). Estas palavras constituem um elogio da
maternidade, da feminilidade do corpo da mulher, na sua
expressão típica de amor criador. São palavras que no
Evangelho são dirigidas à Mãe de Cristo, a Maria a segunda
Eva. Por outro lado, a primeira mulher no momento em que se
revelava a maturidade maternal do seu corpo, quando concebeu e
deu à luz exclama: "adquiri um homem pelo poder de Deus""
(4).
No filho, um ser humano, o homem e a mulher reconhecem-se
na sua dignidade fundamental. Ouçamos ainda o Santo Padre: "a
procriação faz com que o esposo e a esposa se reconheçam
reciprocamente num "terceiro" gerado por eles. É por isso que
este conhecimento se transforma numa descoberta, em certo
sentido, uma revelação do novo ser humano, no qual, um e
outro, homem e mulher, se reconhecem ainda a si mesmos,
descobrem a sua humanidade, a sua imagem viva"(5).
Mas segundo o texto sagrado, este conhecimento mútuo
começa no reconhecimento, por ambos, do fruto das suas
entranhas, como um homem, imagem de Deus. Ainda hoje, o
reconhecimento da dignidade humana do fruto do ventre materno,
pelo homem e pela mulher, é causa de grande alegria, mas
também exigência de coragem e sentido ético. O mistério da
vida gerada, que envolve o sentido da própria existência do
homem pai e da mulher mãe, não deixa espaço para ambiguidades
morais. Um homem e uma mulher que geram um filho, ou o aceitam
na sua dignidade de um outro ser humano e se descobrem na sua
própria dignidade, ou o rejeitam, negando-se a si mesmos.
Fecundidade física e fecundidade espiritual.
4. É próprio do amor conjugal viver todas as expressões
físicas da comunhão das pessoas, com o espírito e com o
coração. É a dimensão espiritual da convivência que dá à
relação a sua dimensão verdadeiramente humana. Isto tem duas
consequências principais: a fecundidade física, sem densidade
espiritual, não é sinal de plenitude relacional, pode ser
apenas tolerada ou dramaticamente rejeitada; por outro lado a
ausência de fecundidade física não compromete,
necessariamente, a fecundidade do amor conjugal, como afirma
claramente a Familiaris Consortio: "A fecundidade do
amor conjugal não se restringe somente à procriação dos
filhos, mesmo entendida na dimensão especificamente humana:
alarga-se e enriquece-se com todos aqueles frutos da vida
moral, espiritual e sobrenatural que o pai e a mãe são
chamados a dar aos filhos e, através dos filhos, à Igreja e ao
mundo"
(6).
A geração física da vida é apenas o início de um processo
de fecundidade do amor, aberto sobre o horizonte da
eternidade, que acompanha o filho, em solicitude
paternal-maternal durante o resto da vida dos pais e se alarga
na experiência do amor fraterno, em Igreja. E é esta dimensão
espiritual da fecundidade que permite aos casais que não
puderam gerar fisicamente um filho, não serem estéreis no seu
amor, porque conduzidos pelo Espírito de Deus, souberam
envolver com o seu amor paternal e maternal outros que dele
precisam. É que ser pai e mãe é, realmente, participar no amor
paternal de Deus.
A fecundidade apostólica do amor conjugal.
5. Mistério de comunhão, santificado pelo Espírito Santo,
o amor conjugal, expressão específica da caridade, expande-se
na edificação da Igreja como mistério de comunhão. Há uma
fecundidade apostólica do amor conjugal dos cristãos. O
primeiro campo dessa fecundidade é a família, comunidade a
construir a partir das experiências e das potencialidades do
amor, como autêntica realização da Igreja, a "Igreja
doméstica". E todos conhecemos as exigências desta missão,
na complexidade sociológica da família contemporânea, que põe
à prova todas as concretizações e virtualidades do amor.
As famílias cristãs são guiadas, nesta difícil, mas
apaixonante missão, pela clareza do magistério da Igreja. "No
matrimónio e na família constitui-se um complexo de relações
inter-pessoais - vida conjugal, paternidade-maternidade,
filiação, fraternidade - mediante as quais cada pessoa humana
é introduzida na "família humana" e na "família de Deus", que
é a Igreja. O matrimónio e a família cristã edificam a Igreja.
Na família, de facto, a pessoa humana não é só gerada e
progressivamente introduzida, mediante a educação, na
comunidade humana, mas graças à regeneração do baptismo e à
educação na fé, é introduzida também na família de Deus, que é
a Igreja.
A família humana, desagregada pelo pecado, é reconstituída
na sua unidade pela força redentora da morte e ressurreição de
Cristo. O matrimónio cristão, que participa da eficácia
salvífica deste acontecimento, constitui o lugar natural onde
se realiza a inserção da pessoa humana na grande família da
Igreja"
(7).
De facto, a fragilidade da família como comunidade de vida
e de amor em construção, repercute-se na Igreja como uma das
suas fragilidades. Apoiar os pais e as famílias nesta
edificação de autênticas comunidades de vida, deve ser nossa
prioridade nas opções pastorais. E com a mesma clareza dizemos
aos esposos e pais cristãos que a família é o campo primordial
da vossa actividade e testemunho apostólicos.
A vivência do vosso matrimónio, fortalecida pela graça do
sacramento e contextualizada nas exigências concretas da vossa
comunidade familiar, serão fontes principais inspiradoras de
uma espiritualidade e caminho da vossa santificação. É a
partir desse santuário, que é a vossa família, que a
fecundidade do vosso amor alargará os horizontes e frutificará
em zelo apostólico e ardor missionário, para a edificação da
Igreja como mistério de comunhão.
10 de Março de 2002
† JOSÉ, Cardeal Patriarca
NOTAS:
1 - Cf. Lumen Gentium, n.º 1
2 - Familiaris Consortio, n.º 14
3 - Ibidem, n.º 28
4 - João Paulo II, À l'immage de Dieu homme et femme,
pg. 175
5 - Ibidem, pg. 174
6 - Familiaris Consortio, n.º 28
7 - Ibidem, n.º 15 |