INTRODUÇÃO
1. É vasta a doutrina social da Igreja
sobre a sociedade, a sua estrutura, os valores fundamentais a
cultivar em ordem à sua edificação como comunidade de pessoas,
justa, pacífica e fraterna, e sobre a missão da Igreja na construção
dessa mesma sociedade.
O momento presente da nossa vida nacional, no
contexto da normal discussão democrática sobre os problemas do país,
suscitou questões que dizem directamente respeito à harmónica
inserção da Igreja na sociedade portuguesa.
Referimos a título de
exemplo: a proposta de Lei de Liberdade Religiosa; a referência a
uma suposta situação privilegiada da Igreja no conjunto da
sociedade, o que levou alguns a sugerir a revisão, ou mesmo a
rescisão, da Concordata celebrada entre a Santa Sé e o Estado
Português; e novas hipóteses legislativas que atingem directa ou
indirectamente a família. Tudo isto nos conduz a relembrar alguns
pontos fundamentais da doutrina da Igreja sobre a sociedade.
Acreditamos que a apresentação clara do pensamento da Igreja,
aos fiéis católicos e a todos os nossos concidadãos, facilitará o
diálogo e trará à justa discussão dos problemas uma dimensão de
objectividade. A missão da Igreja na edificação progressiva de uma
sociedade democrática, mais justa e fraterna, devido à sua
particular importância, exige coerência e clareza na proclamação do
pensamento da Igreja.
I. IGREJA E SOCIEDADE
Cidadãos de
duas cidades 2. Notamos que, frequentemente, as referências
feitas à Igreja a identificam, apenas, com uma parte dela mesma, a
hierarquia. Nesta Carta Pastoral referir-nos-emos sempre à Igreja
como Povo de Deus e comunidade dos baptizados. As referências à
hierarquia, concebida como serviço no seio da comunidade dos fiéis,
serão claramente identificadas.
Na verdade, a missão da Igreja
na sociedade é responsabilidade de todos os seus membros, havendo
mesmo dimensões essenciais do papel da Igreja na edificação da
comunidade humana que pertencem, de modo particular, aos fiéis
leigos, em comunhão com os seus pastores. Todos os cristãos, membros
da comunidade dos crentes, são simultaneamente membros da cidade dos
homens, onde, com a força inspiradora da fé, se devem empenhar no
progresso da sociedade no seu conjunto. Como afirmou o Concílio
Vaticano II, eles são cidadãos de duas cidades: "O Concílio exorta
os cristãos, cidadãos de uma e outra cidade, a desempenhar com zelo
e fidelidade as suas tarefas terrestres, deixando-se guiar pelo
espírito do Evangelho"(1).
Todos os membros da Igreja devem
tomar consciência de que o seu contributo positivo para a construção
da sociedade depende da qualidade do seu empenhamento, em nome de
Cristo e com o espírito do Evangelho, na resolução dos problemas da
comunidade humana. Do mesmo modo, todos aqueles, pessoas e
instituições, que têm a responsabilidade de orientar a coisa
pública, não podem esquecer que um número significativo dos cidadãos
são membros conscientes e activos da Igreja e estão simultaneamente
comprometidos na cidade dos homens, inspirados nos valores
evangélicos da sua fé. Este reconhecimento de que muitos cidadãos
são membros de "duas cidades", em muito ajudará a situar as relações
da Igreja com a sociedade, numa linha de convergência positiva, na
prossecução do bem comum.
A visibilidade institucional da
Igreja 3. Nas sociedades democráticas contemporâneas é, cada vez
mais, um dado adquirido, pelo menos ao nível dos princípios, o
respeito pelo direito dos cidadãos a serem crentes e a praticarem a
sua religião. Mas na linha do subjectivismo individualista, que
influenciou a cultura ocidental nos últimos séculos, há a tendência
de considerar a fé religiosa exclusivamente como um fenómeno da
esfera da intimidade pessoal, pertencente à ordem da vida privada,
servindo isso de argumento para excluir qualquer influência da
dimensão religiosa na vida pública e institucional da sociedade.
Ora, não se pode ignorar que a religião congrega, gera fenómenos
comunitários organizados. No caso do cristianismo, a dimensão
comunitária é inerente ao dinamismo profundo da fé: pô-la em prática
significa, necessariamente, viver em comunhão fraterna e construir
comunidade. A dimensão pessoal interior e a visibilidade comunitária
interpenetram-se numa unidade de expressão e são inseparáveis. A
Igreja é tanto um mistério de fé como uma realidade visível.
O
Concílio Vaticano II chama-lhe sociedade organizada: "Esta sociedade
hierarquicamente organizada, por um lado, e corpo místico por outro,
assembleia visível e comunidade espiritual, Igreja terrestre e
Igreja enriquecida por bens celestes, não pode ser considerada como
duas realidades distintas; ao contrário, constituem uma única
realidade complexa, constituída por um duplo elemento humano e
divino", isto à imagem e na continuidade do próprio Verbo encarnado,
Jesus Cristo (2). O Concílio volta a esta definição de Igreja na
já citada Constituição Pastoral: "Sendo simultaneamente assembleia
visível e comunidade espiritual, a Igreja caminha com toda a
humanidade e partilha o destino terrestre do mundo" (3).
No caso
da Igreja Católica, esta comunidade visível é uma comunhão
universal, a que preside o Santo Padre, como cabeça do Colégio dos
Bispos, e não se reduz aos confins geográficos e culturais dos
Estados e das nações.
4. A visibilidade institucional da
Igreja exige que o relacionamento da sociedade com ela não se limite
ao respeito do âmbito pessoal da fé, mas enquadre a Igreja como
estrutura visível e organizada, o que supõe o reconhecimento da sua
catolicidade, isto é, da sua dimensão universal. Na nossa história,
passada e mesmo recente, várias foram as tentativas do poder
político de considerar a Igreja Católica uma realidade estritamente
nacional, não reconhecendo a sua integração numa comunhão universal.
Ainda hoje este é um problema sério em alguns países do mundo.
Esta questão ficou, em Portugal, ultrapassada pela Concordata,
celebrada, exactamente por isso, entre o Estado Português e a Santa
Sé, e não entre o Estado e os Bispos Portugueses. Nela, o Estado
Português reconheceu a dimensão institucional da Igreja Católica em
Portugal enquanto fazendo parte de uma comunhão universal. Isso
constitui elemento decisivo para o tratamento objectivo e
equilibrado das questões concretas da relação da Igreja Católica com
a Sociedade e o Estado portugueses. É importante que Estado e Igreja
não permitam que se regrida nesta visão objectiva e equilibrada.
Missão da Igreja na sociedade 5. A Igreja relaciona-se
privilegiadamente com a sociedade de que faz parte integrante. É a
ela que foi enviada em missão. As relações com o Estado
justificam-se pelo facto de ele ser a principal estrutura,
representativa e de serviço, da própria sociedade.
O Concílio
Vaticano II, neste capítulo das relações da Igreja com a sociedade,
recuperou a visão original dos tempos apostólicos, enquanto enviada
ao mundo com uma missão de salvação. Ela é promotora de valores
objectivos, considerados essenciais e prioritários para o evoluir
positivo da própria sociedade, tais como: a dimensão espiritual da
existência, a paz, a justiça, a afirmação da dignidade da pessoa
humana, a valorização da família como célula base da sociedade, a
construção de modelos de desenvolvimento em que todos os cidadãos
possam ser protagonistas, a salvaguarda da harmonia da natureza que
o progresso deve respeitar. Acentue-se que os grandes objectivos da
missão da Igreja no mundo convergem com as metas a atingir no
desenvolvimento da sociedade democrática, o que dá à missão da
Igreja, no seu conjunto, um sentido altamente positivo na construção
da comunidade humana.
Reconhecemos que, apesar de a maioria dos
portugueses se declararem católicos, não há total identificação
entre a Igreja e a sociedade, nem em número, nem na maneira de
encarar a vida. A Igreja vive e cumpre a sua missão no seio de uma
sociedade cada vez mais plural, sendo ela própria enriquecida com
uma significativa variedade de dons e expressões. O seu modo de
contribuir para a evolução e para o progresso não é a busca do
poder, mas o testemunho do serviço, a coerência e convicção na
proclamação da verdade, a humildade para reconhecer as suas
fraquezas, a abertura de espírito para aceitar dar as mãos a quantos
lutam pela edificação de um mundo mais digno da pessoa humana.
É
por isso que o principal direito que a Igreja reivindica é a
liberdade para realizar a sua missão. Essa liberdade, que deve ser
reconhecida e protegida pelo Estado, emerge da própria natureza da
sociedade democrática. O Estado poderá mesmo não se limitar a
permitir que a Igreja exerça a sua missão, mas apoiá-la
positivamente, reconhecendo o seu interesse como serviço ao conjunto
da comunidade. É este aspecto que justifica a celebração de acordos
de cooperação, pois, para o simples reconhecimento da liberdade de
expressão religiosa, as leis são pleonásticas e os tratados vazios
de conteúdo.
Igreja e cultura 6. A Igreja, pela natureza
universal da sua mensagem e missão, não se identifica com nenhuma
cultura, pois pode exprimir-se em todas elas, sendo capaz de as
influenciar, intervindo no fenómeno da mutação cultural. Isto
deve-se ao facto de muitos dos valores e princípios veiculados pelo
cristianismo pertencerem àquele património universal humano que se
exprime em todas as culturas.
O papel do cristianismo na Europa
foi de tal maneira marcante, que influenciou decisivamente a mutação
cultural. O contrário é que seria de estranhar: que uma sociedade,
em que a maioria dos seus membros professa a fé cristã, não dê
origem a uma síntese cultural enraizada nos valores do Evangelho. De
facto, uma sociedade só se pode considerar evangelizada, quando
atingir essa nova síntese cultural.
Essa não é, porém, uma etapa
definitivamente adquirida. A cultura é um dinamismo vivo e a mutação
cultural, um fenómeno inevitável. A Igreja tem consciência de que
vive, hoje, num universo cultural em transformação. Não é agora o
momento de analisar este fenómeno em profundidade e os elementos que
nele influem. A autonomização do pensamento, de tipo laico, em
relação à cultura cristã, é, certamente, um deles. Mas o
individualismo como critério de felicidade, o pragmatismo
materialista de uma sociedade consumista, a autarcia da liberdade
levando a um relativismo ético, não tiveram menor influência nesta
alteração.
Na sua missão, a Igreja intervém nessa mutação em
ordem a garantir a necessária harmonia cultural da sociedade, que
depois se exprime nas leis que a regem, nos valores que se promovem,
na definição de modelos de desenvolvimento, na análise valorativa do
nosso presente histórico. Já afirmámos atrás que há convergência
entre os grandes princípios e objectivos do cristianismo e os de uma
sociedade democrática moderna.
Nessa perspectiva e na óptica de uma
sã secularidade, a Igreja não hesita em participar, com o seu
contributo específico, no aprofundamento de uma cultura democrática,
tão necessário e urgente como a consolidação e valorização da
própria democracia. Esta salva-se ou perde-se ao nível da sua
qualidade cultural. Essa cultura democrática, que exprima e promova
os principais valores prosseguidos pelos cidadãos, e não provoque
rupturas descaracterizantes com o nosso passado colectivo, inspirará
as leis e enquadrará a governação. A sua ausência levará o Estado a
cair na tentação de ter uma cultura própria e de a impor pelos
mecanismos do poder, o que é a génese de todos os totalitarismos.
II. A IGREJA E O ESTADO
A natureza do Estado democrático
7. A doutrina social da Igreja afastou-se sempre de uma
definição de Estado que o identifique com a sociedade,
considerando-o "a Nação personificada" ou "a personificação jurídica
da Nação". É a sociedade civil, na complexidade da sua composição,
que exige e justifica o Estado, como sua organização
político-administrativa, em ordem à prossecução do bem comum. Este
define-se, sempre, em relação ao bem das pessoas, embora seja
legítimo considerar, nalguns aspectos, o bem comum em relação à
sociedade concebida como um todo. Mas a distinção, ou não confusão,
entre Estado e sociedade é condição indispensável da liberdade.
É esta compreensão do Estado, como serviço da comunidade, que
fundamenta a sua autoridade democrática. Compete-lhe reconduzir à
harmonia do todo da comunidade, a variedade dos elementos,
potencialidades, instituições, desejos, projectos, em ordem ao bem
comum. A autoridade do Estado democrático cria, nos seus súbditos, a
obrigação da obediência, o que aumenta a responsabilidade de quem
exerce a autoridade. (4)
O Estado é uma forma avançada da
organização das sociedades. Praticamente inexistente nas sociedade
primitivas, a sua qualidade e adaptação às exigências do bem comum
definem o avanço qualitativo das próprias sociedades. O Estado
democrático, na sua legitimidade, nas suas estruturas e nos seus
poderes, brota da sociedade civil, culturalmente adulta para poder
definir o bem comum que procura e as estruturas adequadas para o
conseguir. Compete à sociedade civil, no seu aprofundamento
cultural, aferir, de tempos a tempos, se o Estado que tem ainda é
apto a exercer essas funções na procura do bem comum, e
aperfeiçoá-lo pelos mecanismos da democracia participativa. Se se
chegar a conflitos sérios entre a visão do Estado e o sentir da
sociedade civil, o caminho é a readaptação do Estado às exigências
da sociedade através da participação democrática.
A Igreja não
se pronuncia quanto aos modelos e formas organizativas do Estado,
desde que estejam salvaguardadas as condições fundamentais de
realização da pessoa humana. Diz o Concílio Vaticano II: "Quanto às
modalidades concretas, através das quais uma comunidade política se
estrutura e organiza o equilíbrio dos poderes públicos, podem ser
diversas, conforme o génio de cada povo e a marcha da história. Mas
devem ser aptas a contribuir para a formação de um homem cultivado,
pacífico, solícito em relação a todos, para o bem de toda a família
humana" (5).
A Igreja, que integra a sociedade, participa na
definição do Estado através do empenhamento democrático dos seus
membros. A Igreja, representada pela autoridade hierárquica,
relaciona-se, o mais harmonicamente possível, com o Estado
democraticamente legitimado, independentemente da sua configuração
partidária. Se o Estado, no exercício do poder, se afastar das
exigências do bem comum, fonte da sua justificação, os membros da
Igreja permanecerão fiéis a essas exigências, podendo chegar,
nalguns casos, à objecção de consciência.(6)
A dignidade do
Estado 8. A Igreja reconhece e promove a dignidade do Estado e a
sua função insubstituível para a construção da harmonia da
sociedade. Esta dignidade tem a mesma fonte que a do homem, ser
social, e da sociedade por ele formada. O Concílio Vaticano II é
claro, a esse respeito: "A fim de que a comunidade política não se
desagregue, seguindo cada qual a sua opinião, requer-se uma
autoridade que coordene as forças de todos os cidadãos para o bem
comum, não mecânica nem despoticamente, mas principalmente pela
força moral que se apoia na liberdade e no sentido da
responsabilidade pessoal. Portanto, é evidente que a comunidade
política e a autoridade pública se fundam na natureza humana e que,
por conseguinte, pertencem à ordem estabelecida por Deus, embora a
determinação do regime político e a designação dos governantes se
deixem à livre vontade dos cidadãos" (7).
A maior afirmação da
dignidade do Estado reside no reconhecimento, por parte da Igreja,
de que a sua autoridade gera a obrigação de obediência. Esta
dignidade exprime-se, hoje, de um modo particular, no espírito de
serviço, competente e desinteressado, daqueles que o Povo investiu
em autoridade, sendo o contrário igualmente verdadeiro: o mau
testemunho dos servidores do Estado corrói a sua dignidade na
consciência colectiva da comunidade.
Não há melhor caminho para
situar o Estado no papel que lhe compete, que o dedicado
empenhamento de todos os cidadãos na prossecução do bem comum.
Quanto menos isso acontecer, mais se cai numa visão mitificada do
Estado, a quem tudo se pede, de quem tudo se espera, a quem se
atribuem todas as culpas. Só o sentido participativo e responsável
de todos os cidadãos ajudará a situar o Estado no lugar que lhe
compete, numa sociedade democrática. É já essa a doutrina do
Concílio: "Quanto aos cidadãos, individualmente ou em grupo, evitem
conferir ao Estado um poder demasiado; não se lhes dirijam de
maneira intempestiva para reclamar ajudas ou vantagens exageradas,
com o risco de diminuir a responsabilidade das pessoas, das famílias
e dos grupos sociais" (8). É, por isso, que o Estado democrático
deve respeitar e favorecer o princípio da subsidariedade.
O
Estado e a promoção da liberdade 9. Na sociedade democrática,
para que se atinja o nível de uma comunidade justa e harmónica, que
defenda e incentive a dignidade da pessoa humana, é essencial o
respeito e a prática da liberdade. Respeitar e promover a liberdade
dos cidadãos é a principal atribuição do Estado.
A democracia
afirma-se como o modelo organizativo da sociedade assente no
respeito e na prática da liberdade. Esta não pode ser vista como uma
concessão benévola do Estado, mas como uma componente fundamental da
dignidade humana, que o Estado deve reconhecer e servir,
respeitando-a e promovendo-a. Não basta, para que o Estado cumpra
este seu dever, garantir os mecanismos da democracia participativa.
O respeito e a promoção da liberdade passam, fundamentalmente, pelo
sistema educativo, orientado para o desabrochar do exercício da
liberdade, e pelo apoio a todas as expressões culturais e de
comunhão corresponsável entre os cidadãos. A consolidação da
democracia requer o aprofundamento cultural de todos os membros da
comunidade. E esta é tarefa que só pode ser conseguida pela
colaboração do Estado com as organizações da sociedade civil,
políticas, laborais, religiosas, culturais. Não compete ao Estado
substituir-se a elas, mas apoiá-las, em ordem a atingir a finalidade
de todos, o bem comum.
A liberdade religiosa 10. Entre
as principais expressões da liberdade, que o Estado democrático deve
respeitar e promover, conta-se, certamente, a liberdade religiosa.
Devido à sua importância objectiva e à actualidade de que se reveste
na sociedade portuguesa, referimo-la especialmente.
Usámos
acerca da responsabilidade do Estado perante todas as expressões da
liberdade, dois verbos: "respeitar" e "promover". No que à liberdade
religiosa diz respeito, é fácil gerar consensos quanto ao dever de a
respeitar. Insere-se no contexto mais vasto da liberdade de
consciência, que nenhum Estado democrático ousa pôr em questão. E
nesse aspecto verificamos uma grande sintonia entre a Constituição
da República Portuguesa e o Decreto sobre a Liberdade Religiosa do
Concílio Vaticano II. Mesmo no actual contexto da humanidade, isto
significa um notável progresso da civilização. Se subsiste
discussão à volta da liberdade religiosa, não é sobre a necessidade
de a respeitar, mas sim acerca da sua promoção. Pretendem alguns, em
nome da laicidade do Estado democrático, que não compete a este
praticar qualquer forma de promoção do papel das religiões na
sociedade, o que é aceite pacificamente, e mesmo exigido, quando se
trata de outras expressões da liberdade, tais como a liberdade de
associação política, a liberdade cultural, a liberdade desportiva, a
liberdade associativa em geral.
Esta é uma questão em aberto, a
que é preciso dar uma resposta em consonância com a maturidade da
nossa democracia: reconhece ou não o Estado uma função social à
religião, independentemente das obras sociais e culturais que as
confissões religiosas desenvolvem?
Um sinal de que esta questão
não está esclarecida é a ausência do tratamento do papel das
religiões nas culturas e nas sociedades, nas diversas reformas do
nosso sistema educativo. É concedido espaço para a disciplina
confessional, de opção livre, das diversas confissões religiosas.
Mas o conhecimento e a importância do fenómeno religioso e a sua
influência na cultura e na civilização interessam a todos,
independentemente de serem crentes ou descrentes.
Porque esta
questão não está respondida com clareza, são por vezes contestadas,
como se de privilégios se tratasse, algumas formas de apoio às
actividades da Igreja Católica, expressas na Concordata. É urgente
chegar a uma fórmula evoluída, em que as formas de apoio do Estado,
não apenas à Igreja Católica, mas a todas as confissões religiosas
que claramente contribuam para o bem comum, não sejam consideradas
privilégios mas direitos democráticos. E isso não contradiz, nem
agride, uma justa laicidade do Estado, hoje unanimemente
reconhecida.
A laicidade do Estado 11. Como ressaltou da
discussão pública, nos últimos tempos, a questão da liberdade
religiosa está, em parte, dependente do sentido que se der à
laicidade do Estado.
Na sua origem histórica, a afirmação da
laicidade do Estado foi uma forma de libertação em relação à
influência das Igrejas nos Estados e nas sociedades. E, como em
todas as autonomias conseguidas pela rebelião, caiu-se, facilmente,
na oposição antagónica. Para se libertarem, os Estados combateram a
influência da religião na sociedade, assumindo, por vezes,
expressões de violência.
Mais positivamente, a laicidade do
Estado apareceu como exigência da pluralidade religiosa da
sociedade. Favorecer a influência de uma confissão religiosa, em
detrimento de outras, seria impróprio de um Estado democrático. Só
pode ser esse o justo sentido da neutralidade religiosa do Estado:
este não se identifica, nem depende, de nenhuma confissão religiosa
concreta, pela simples razão de dever procurar harmonizá-las todas
com os superiores interesses do bem comum. Mas neutralidade
religiosa não pode significar que o Estado seja anti-religião,
fazendo da laicidade uma espécie de credo, tornando-o num Estado
confessional de sinal contrário.
O Estado e a sua actuação têm a
sociedade como referência e razão de ser. Ora, esta não é laica,
porque é plural no aspecto religioso; no nosso caso português, uma
maioria significativa da população tem a Igreja Católica como
referência confessional. A prática da laicidade do Estado não deve
supor a laicidade da sociedade.
O pensamento político
contemporâneo vai na linha da afirmação do sentido positivo da
laicidade. Para além do respeito pela liberdade de consciência,
compete ao Estado, através do discernimento prático do serviço
prestado à sociedade pelas confissões religiosas, enquadrá-las em
ordem à realização do bem comum, o que lhe permite distingui-las
segundo a importância concreta que têm para toda a comunidade
nacional, na linha da tradição, da história e dos serviços prestados
no presente.
Não compete ao Estado promover actividades
especificamente religiosas e, muito menos, tentar imiscuir-se na
vida interna das Igrejas. Mas a sua laicidade não o dispensa de se
preocupar com a harmónica inserção das confissões religiosas no todo
nacional, apoiando-as naqueles aspectos que, por natureza, são
função do Estado, tais como a defesa e a promoção do património, a
garantia de assistência espiritual aos cidadãos em estruturas
estatais, o respeito pela presença da inspiração religiosa nos
projectos educativos, a participação na construção dos equipamentos
necessários.
A laicidade do Estado dá a este maior liberdade e
autonomia para exercer essa função, sem estar condicionado pelas
exigências de qualquer credo, seja ele religioso ou anti-religioso.
Aliás, da laicidade do Estado, assim concebida, beneficiam as
próprias confissões religiosas que deste modo se situam mais
claramente como serviço da sociedade.
12. Na discussão
pública dos últimos tempos, tem surgido, com frequência, a ideia de
que o Estado deve tratar da mesma maneira todas as confissões
religiosas. Esta afirmação só tem sentido se se limitar a liberdade
religiosa ao respeito pela liberdade de consciência. Mas, se
olharmos para a necessidade de harmonizar, em ordem ao bem comum, a
importância prática de cada confissão religiosa, essa igualdade
matemática dificilmente se harmonizará com o interesse da sociedade
e com as exigências da justiça. Pode mesmo ser aconselhável que
esses aspectos práticos, decorrentes da presença e acção das
confissões religiosas na sociedade, sejam considerados em acordos
celebrados entre o Estado e as diversas confissões religiosas, como
aconteceu, no caso da Igreja Católica, com a celebração de uma
"Concordata" entre a Santa Sé e o Estado Português.
A
questão da Concordata 13. Quanto acaba de ser dito oferece o
enquadramento justificativo da existência da Concordata. Ela é a
expressão do respeito prático, por parte do Estado Português, da
liberdade de existência e de acção da Igreja Católica em Portugal, e
não pode ser interpretada como um atropelo à prática da liberdade
religiosa. Não é da competência da Igreja Católica decidir se o
Estado Português deve celebrar acordos com outras confissões
religiosas.
A Concordata pôs termo a uma velha "questão
religiosa", que durante décadas muito dilacerou a comunidade
nacional, e ofereceu, na ocasião, um ordenamento jurídico estável,
que enquadra as relações da Igreja com o Estado e a harmónica
inserção das suas actividades específicas na sociedade portuguesa.
Há estádios de convivência entre o Estado e a Igreja, conseguidos
pela Concordata, de que nós, Bispos de Portugal, não queremos
retroceder, tais como: ¨ O reconhecimento da visibilidade
institucional da Igreja Católica, como Pessoa Jurídica, com um
estatuto jurídico próprio, reconhecido pelo ordenamento jurídico
português; ¨ A inserção das Igrejas Diocesanas de Portugal numa
comunhão universal, a que preside o Santo Padre, reconhecida, nas
suas incidências práticas, pelo Estado Português; ¨ O
reconhecimento institucional do contributo da Igreja Católica para a
formação e animação da sociedade portuguesa, a cuja história está
profundamente ligada, nos diversos âmbitos da sua acção: religiosa e
missionária, educativa, social, cultural.
14. Sessenta anos
depois, é natural a vantagem de uma actualização da Concordata.
Muita coisa mudou, na Igreja, em Portugal e no mundo. Na Igreja,
aconteceu o "aggiornamento" do Concílio Vaticano II, que clarificou,
na frescura dos critérios evangélicos, o sentido da missão da Igreja
no mundo e da sua relação positiva com uma sociedade plural; em
Portugal implantou-se um regime político, baseado na democracia
parlamentar e participativa, mais consentâneo com o pensamento
social da Igreja; pôs-se fim à época colonial, com a independência
política dos Povos até aí administrados por Portugal, o que exige um
novo enquadramento institucional da acção missionária da Igreja e da
sua colaboração com as Igrejas dessas novas Nações independentes.
Já declarámos não nos opor a uma actualização da Concordata, se
essa for a decisão do Estado Português e da Santa Sé, a quem
prestaremos toda a cooperação. É nosso desejo a manutenção de uma
Concordata que enquadre a presença e acção da Igreja Católica na
sociedade e o relacionamento com o Estado, de maneira justa,
moderna, no contexto de uma visão superior dos interesses da
comunidade nacional e do dinamismo de um Estado democrático, neste
início de um novo século e de um novo milénio.
III. A NOBRE
FUNÇÃO DE LEGISLAR
15. Entre as funções do Estado democrático, a
mais nobre e empenhativa e que maior responsabilidade envolve é a de
legislar e aplicar as Leis. Estas funções, na estrutura do Estado
democrático, inspiraram áreas autónomas do poder: o legislativo e o
judicial. Da qualidade e equilíbrio dos diversos poderes depende a
harmonia da sociedade. Eles corporizam a legítima autoridade do
Estado perante a Nação, em todas as suas expressões e componentes, e
encarnam a verdadeira responsabilidade do Estado. Não é nossa
intenção apresentar aqui uma visão global da doutrina da Igreja
sobre a organização do Estado. Se referimos a nobreza do poder
legislativo é apenas para sublinhar o respeito que a hierarquia da
Igreja tem por ele e para referir alguns aspectos concretos de
grande actualidade, que nos preocupam, na linha da nossa missão.
Actividade legislativa e cultura 16. As Leis são uma
expressão da autoridade democrática, cuja finalidade é conduzir à
harmonia de um projecto comum a imensa variedade de dinamismos que
existem numa comunidade plural. Elas traçam objectivos, definem
métodos, sublinham valores comuns. A função legislativa é
inseparável da cultura envolvente, definitória da identidade
espiritual de um Povo. Embora a cultura não seja, hoje, uniforme e,
muito menos, monolítica, tem uma linha comum que a define e lhe
garante a continuidade, tecida por uma tradição. Quando as leis se
afastam dessa tradição cultural, ou a agridem, geram divisões e
conflitos e, nas situações mais graves, podem mesmo não ser aceites,
através da objecção de consciência.
É por isso que, num regime
democrático, as leis emergem da própria sociedade, que entrega a
função de legislar à Assembleia Legislativa, por ela eleita e de
quem espera coerência e fidelidade com os valores culturais que a
inspiram. Numa democracia representativa, compete ao órgão para isso
eleito, legislar, sendo seu dever fazê-lo em sintonia com o sentir
do Povo. Nas matérias mais delicadas, ou quando as leis se afastam
claramente dos valores da nossa cultura, pode justificar-se a
democracia directa, através do referendo, embora consideremos este
recurso uma via excepcional.
Afirmámos já haver uma grande
convergência entre os principais valores de uma sociedade
democrática e os propostos pela Doutrina Social da Igreja. Esta não
pretende dominar a actividade legislativa, mas mantém o direito,
enquanto inserida na sociedade civil, de manifestar a sua
discordância crítica e, nos casos mais graves, de apelar à objecção
de consciência.
Consideramos que isso, numa sociedade democrática,
não significa desrespeito pela dignidade do órgão legislativo. Temos
consciência de que os valores de inspiração cristã só poderão
exprimir-se nas leis na medida em que sejam assumidos pela
comunidade e pelos intervenientes no processo social. É por isso que
a evangelização é, para a Igreja, um dever premente e contínuo.
Há, na nossa sociedade, matérias que são objecto de legislação,
já aprovada ou em curso, que nos merecem uma atenção muito
particular. Referiremos algumas.
As leis sobre a família e a
vida 17. A família, considerada a célula básica da sociedade,
tem sofrido ataques diversos nas sociedades contemporâneas, vindos
uns da própria degenerescência dos costumes e do relativismo moral;
outros resultam do novo e difícil enquadramento da mulher na
sociedade, em que as exigências da maternidade não são harmonizadas
com a justa inserção no mercado de trabalho; outros ainda são
criados por legislação, em diversas áreas, que não promove a
família, antes lhe cria dificuldades acrescidas.
Não é surpresa para
ninguém a particular sensibilidade e interesse da Igreja nesta
matéria.
São vários os aspectos a que estamos particularmente
atentos.
Antes de mais, a própria identidade e definição de
família, que é de direito natural, confirmada e aprofundada pela
revelação bíblica: a família é a comunhão de vida e de amor, estável
e duradoura, entre um homem e uma mulher, fundada sobre o contrato
matrimonial, em ordem à ajuda mútua dos esposos e à geração e
educação dos filhos. A esta instituição natural deu Cristo a
dignidade de caminho de graça e de santidade, elevando-a à qualidade
de sacramento.
Preocupa-nos a recente recomendação do Parlamento
Europeu aos Parlamentos Nacionais dos países membros, de 16 de Março
de 2000 e que retoma uma anterior recomendação de 8 de Fevereiro de
1994. Pede aos Estados que garantam às famílias monoparentais, aos
casais não casados e aos pares de pessoas do mesmo sexo, os mesmos
direitos dos casais e famílias tradicionais, incluindo a adopção.
O
Santo Padre João Paulo II (9) e o Conselho Pontifício para a Família
(10) manifestaram o seu veemente repúdio por aquela recomendação,
apesar do respeito que lhes merece o Parlamento Europeu, na viva
esperança de que ela não seja seguida pelos Parlamentos dos países
membros, considerando-a lesiva da dignidade da Família. Fazemos
nosso este apelo do Santo Padre, com votos de que ele possa ser
ouvido pelos Senhores Deputados da nossa Assembleia da República.
Uma hipotética protecção jurídica às pessoas individuais nessas
situações não pode ser feita através de uma comparação com a
família, a única que pode garantir aos filhos que gera e àqueles que
adopta como seus, o são ambiente educativo.
São diferentes as
motivações para a rejeição daquela recomendação nas diversas
situações concretas que indica: ¨ Às "uniões de facto"
heterossexuais, falta-lhes a garantia de estabilidade duradoura, a
solidez institucional radicada no contrato matrimonial, que dá à
família uma visibilidade institucional, decisiva para a sua inserção
social como comunidade básica. Impressiona-nos que o Estado, que
tanto lutou pela institucionalização civil do matrimónio, esteja
agora disposto a renunciar a ela, equiparando as "uniões de facto" à
família juridicamente constituída. ¨ Mais graves ainda são as
razões para não equiparar às famílias as "uniões de facto" de
pessoas do mesmo sexo. Aí falha o próprio fundamento antropológico
da Família. Todo o respeito que possamos ter por esses nossos irmãos
e irmãs, com os seus problemas, não justifica uma qualquer
equiparação à instituição familiar.
18. Um outro aspecto a
que estamos particularmente atentos é o da defesa da vida, desde o
momento da concepção até à morte natural. O pensamento da Igreja
sobre esta matéria é bem conhecido e é irrenunciável. No nosso
ensinamento estaremos sempre em sintonia com o Magistério da Igreja
Universal, de modo particular com o do Concílio Ecuménico Vaticano
II e do Santo Padre. Temos consciência de que esse Magistério é,
frequentemente, considerado como indo contra a corrente de uma certa
opinião pública que aceita tudo mudar, mas fazemo-lo como serviço à
verdade em que acreditamos e que, igualmente, é um serviço à
humanidade e à civilização.
Mas as leis que promovam a família e a
vida não se podem limitar a estes aspectos; é igualmente importante
tudo o que diz respeito à educação.
As leis sobre a educação
19. Um outro capítulo da actividade legislativa que interessa
particularmente à Igreja é o que se refere à educação. Nela se
decide, em grande parte, o sentido futuro da nossa sociedade, a
salvaguarda dos valores da nossa tradição cultural, como é através
dela que se veicula um são sentido da modernidade.
O
aperfeiçoamento progressivo do sistema educativo, onde se sente a
evolução complexa da nossa sociedade, precisa de uma referência
cultural; caso contrário, cair-se-á no pragmatismo ausente de
valores, numa filosofia educativa do Estado, ou no primado do
subjectivismo cultural de cada educador. Mesmo a definição de uma
cultura democrática, que aceitamos como necessária, não poderá
deixar de integrar a nossa tradição cultural. Foi por isso que a
Concordata estabeleceu que o sistema educativo se inspirasse na
nossa tradição cultural alicerçada nos valores cristãos.
Estamos
particularmente atentos aos valores que inspiram o sistema
educativo, ao lugar dado à família como interlocutora da Escola e
interveniente no projecto educativo, à protecção da liberdade de
ensino, e ao direito das famílias de, em igualdade de
circunstâncias, escolherem para os seus filhos as escolas e os
projectos educativos do seu agrado.
Continua a preocupar-nos o
facto de as Escolas Católicas, como aliás todo o ensino não estatal,
continuar discriminado nas condições de financiamento. Não pedimos
que as instituições sejam financiadas, mas sim as famílias, para
poderem ter uma real liberdade de escolha. Uma sociedade plural e
democrática não pode ter um sistema monolítico de ensino, com uma
única orientação e em que só as Escolas do Estado oferecem as
normais e justas condições de acesso e de frequência. A Igreja quer
dar o contributo da sua experiência para fazer progredir em
qualidade o nosso sistema de ensino e de educação.
IV. A
IGREJA E A POLÍTICA
Dignidade da actividade política 20.
Queremos terminar esta Carta Pastoral com uma referência, ainda que
breve, à importância e à dignidade da actividade política. Ela
constitui um factor decisivo na construção da sociedade democrática,
porque é a expressão da pluralidade da Nação e o meio próprio para
que os cidadãos possam fazer repercutir na organização do Estado a
sua visão da vida e da sociedade. Um Estado prepotente assenta,
normalmente, sobre a fraca participação dos cidadãos na coisa
pública.
A actividade política é uma das expressões da nobreza
da democracia. Sobre esta escreve João Paulo II: "A Igreja encara
com simpatia o sistema da democracia, na medida em que assegura a
participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos
governados a possibilidade, quer de escolher e controlar os próprios
governantes, quer de os substituir pacificamente quando tal se torne
oportuno; ela não pode, portanto, favorecer a formação de grupos
restritos de dirigentes, que usurpem o poder do Estado a favor dos
seus interesses particulares ou de objectivos ideológicos" (11).
É
preciso dignificar a política, pois ela é uma actividade de serviço
do bem comum. Essa dignificação passará pela generosidade,
desprendimento e competência dos políticos, pela justeza dos
objectivos traçados, pelo aprofundamento cultural, por um diálogo
contínuo com a comunidade que servem e representam.
O
compromisso dos cristãos na política 21. A presença dos valores
evangélicos nas leis e nas estruturas do Estado depende, em grande
parte, do empenhamento político dos cristãos. O Concílio Vaticano II
é bem claro a esse respeito: "Todos os cristãos devem ter
consciência do papel próprio que lhes cabe na comunidade política.
Devem dar o exemplo, desenvolvendo o sentido de responsabilidade e
de dedicação ao bem comum. Mostrarão, assim, pelos factos, como se
pode harmonizar a autoridade com a liberdade, a iniciativa pessoal
com a solidariedade e as exigências de todo o corpo social, as
vantagens da unidade com as diversidades profundas" 12.
Nós, Bispos,
na qualidade de pastores, manifestamos a nossa estima por todos os
cristãos que se empenham profundamente nas tarefas políticas, como
meio de contribuir para o bem comum e consideramos essa actividade
como uma concretização da sua missão de cristãos, realização da
missão da Igreja no meio do mundo.
Convém recordar, a este
propósito, a afirmação de Paulo VI: "Tomar a sério a política, nos
seus diversos níveis - local, regional, nacional e mundial - é
afirmar o dever do homem, de todos os homens, de reconhecerem a
realidade concreta e o valor da liberdade de escolha que lhes é
proporcionada para procurarem realizar juntos o bem da cidade, da
nação, da humanidade. A política é uma forma exigente - se bem que
não seja a única - de viver o compromisso cristão ao serviço dos
outros" (13).
Devido à autonomia das realidades terrestres, a
hierarquia da Igreja, para salvaguardar a sua liberdade e
especificidade pastoral, não interfere nas actividades políticas,
sobretudo as expressas na opção partidária. Compete aos cristãos
leigos serem, nesse meio, presenças actuantes da perspectiva da
Igreja.
Esta isenção da hierarquia não significa menos respeito
pela acção partidária e pelos partidos políticos em si mesmos. Os
partidos políticos, embora não esgotem os modos de participação
democrática, são organizações fundamentais para dinamizar a acção
política. É aconselhável que os cristãos se empenhem nos partidos
cujas orientações sejam consentâneas com a sua consciência e com a
visão da doutrina da Igreja sobre a sociedade.
Importância
da educação cívica 22. A participação política torna-se mais
natural se se der atenção peculiar à educação cívica, nas famílias,
nas escolas, nas associações juvenis.
Já o Concílio Vaticano II
alertou para essa necessidade: "Para que todos os cidadãos possam
exercer o seu papel na vida da comunidade política, deve dar-se uma
grande atenção à educação cívica e política; ela é, hoje,
particularmente necessária, tanto para o conjunto dos povos, como,
sobretudo, para os jovens. Aqueles que são, ou podem vir a ser,
capazes de exercer a arte difícil, mas nobre, da política, devem
preparar-se para isso. Devem entregar-se a ela com zelo, sem se
preocuparem com o seu interesse pessoal ou com vantagens materiais"
(14).
Este espírito de gratuidade generosa e de serviço
dedicado, em prol do bem comum, é o segredo de todas as harmonias:
entre a Igreja e o Estado, entre o Estado e a Sociedade, entre as
diversas organizações da sociedade civil, pois a procura diligente
do bem comum é a génese da justiça e da paz.
CONCLUSÃO
23. Como afirmámos no início, esta Carta Pastoral foi sugerida
pelo momento presente da Sociedade Portuguesa. Isso explica a
selecção dos temas concretos abordados, sem referência explícita a
outras grandes questões da comunidade nacional. Na medida em que as
circunstâncias o sugiram ou exijam, é previsível que nos venhamos a
pronunciar sobre outras áreas da realidade portuguesa, tais como:
sistema educativo, economia, modelos de desenvolvimento, luta contra
a pobreza e justiça social, problemática do trabalho e do emprego,
promoção e defesa do ambiente, globalização e corresponsabilidade
internacional.
Ficou clara a disposição da Igreja de se empenhar
responsavelmente no progresso da nossa sociedade. Lembramos aos
cristãos que este seu dever é também decorrente da fé e que o
serviço à sociedade é uma concretização do amor fraterno.
Lisboa, 15 de Maio de 2000,
109.º aniversário da publicação
da Encíclica Rerum Novarum
do Papa Leão XIII
NOTAS
1.
CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et
spes, n.º 43. 2. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática Lumen gentium, n.º 8. 3. GS. n.º 40. 4. cf. GS, n.º 74.2.
5. GS, n.º 74.6; cf. JOÃO XXIII, Carta Encíclica Pacem in Terris,
n.º 68. 6. cf. GS, n.º 74.5. 7. GS, n.º 74.2-3. 8. GS, n.º
75.2. 9. cf. Alocução ao 'Angelus' de 20 de Fevereiro de 1994 e
Discurso aos participantes na XIV Assembleia Plenária do Conselho
Pontifício da Família, de 4 de Junho de 1999. 10. cf. Cartas aos
Presidentes das Conferências Episcopais da Europa, de 17 e 25 de
Março de 2000 (Prot. N. 32/2000 e N. 71/94R). 11. JOÃO PAULO II,
Carta Encíclica Centesimus Annus, n.º 46. 12. GS, n.º 75.5.
13. PAULO VI, Carta Encíclica Octogesima Adveniens, n.º 46.
14. GS, n.º 75.6. |