PROÉMIO
Íntima
união da Igreja com toda a família humana
1. As alegrias
e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de
hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são
também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.
Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em
Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em
demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação
para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se
real e intimamente ligada ao género humano e à sua história.
A quem se
dirige o Concílio: todos os homens
2. Por isso, o
Concílio Vaticano II, tendo investigado mais profundamente o
mistério da Igreja, não hesita agora em dirigir a sua palavra,
não já apenas aos filhos da Igreja e a quantos invocam o nome
de Cristo, mas a todos os homens. Deseja expor-lhes o seu modo
de conceber a presença e actividade da Igreja no mundo de
hoje.
Tem, portanto,
diante dos olhos o mundo dos homens, ou seja a inteira família
humana, com todas as realidades no meio das quais vive; esse
mundo que é teatro da história da humanidade, marcado pelo seu
engenho, pelas suas derrotas e vitórias; mundo, que os
cristãos acreditam ser criado e conservado pelo amor do
Criador; caído, sem dúvida, sob a escravidão do pecado, mas
libertado pela cruz e ressurreição de Cristo, vencedor do
poder do maligno; mundo, finalmente, destinado, segundo o
desígnio de Deus, a ser transformado e alcançar a própria
realização.
Para
iluminar a problemática humana e salvar o homem
3. Nos nossos
dias, a humanidade, cheia de admiração ante as próprias
descobertas e poder, debate, porém, muitas vezes, com
angústia, as questões relativas à evolução actual do mundo, ao
lugar e missão do homem no universo, ao significado do seu
esforço individual e colectivo, enfim, ao último destino das
criaturas e do homem.
Por isso, o
Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus por
Cristo congregado, não pode manifestar mais eloquentemente a
sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família
humana, na qual está inserido, do que estabelecendo com ela
diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do
Evangelho e pondo à disposição do género humano as energias
salvadoras que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe
do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de salvar a pessoa do
homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem
será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem na sua
unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência,
inteligência e vontade.
Eis a razão por
que este sagrado Concílio, proclamando a sublime vocação do
homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino,
oferece ao género humano a sincera cooperação da Igreja, a fim
de instaurar a fraternidade universal que a esta vocação
corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas
ùnicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do
Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para
dar testemunho da verdade (2), para salvar e não para julgar,
para servir e não para ser servido (3).
INTRODUÇÃO
A CONDIÇÃO DO HOMEM NO MUNDO ACTUAL
Esperanças e temores
4. Para levar a
cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o
momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do
Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em
cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do
sentido da vida presente e da futura, e da relação entre
ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo
em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu
carácter tantas vezes dramático. Algumas das principais
características do mundo actual podem delinear-se do seguinte
modo.
A humanidade
vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e
rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a
terra. Provocadas pela inteligência e actividade criadora do
homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus
juízos e desejos individuais e colectivos, sobre os seus modos
de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas.
De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação
social e cultural, que se reflecte também na vida religiosa.
Como acontece
em qualquer crise de crescimento, esta transformação traz
consigo não pequenas dificuldades. Assim, o homem, que tão
imensamente alarga o próprio poder, nem sempre é capaz de o
pôr ao seu serviço. Ao procurar penetrar mais fundo no
interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a
seu próprio respeito. E, descobrindo gradualmente com maior
clareza as leis da vida social, hesita quanto à direcção que a
esta deve imprimir.
Nunca o género
humano teve ao seu dispor tão grande abundância de riquezas,
possibilidades e poderio económico; e, no entanto, uma imensa
parte dos habitantes da terra é atormentada pela fome e pela
miséria, e inúmeros são ainda os analfabetos. Nunca os homens
tiveram um tão vivo sentido da liberdade como hoje, em que
surgem novas formas de servidão social e psicológica. Ao mesmo
tempo que o mundo experimenta intensamente a própria unidade e
a interdependência mútua dos seus membros na solidariedade
necessária, ei-lo gravemente dilacerado por forças
antagónicas; persistem ainda, com efeito, agudos conflitos
políticos, sociais, económicos, «raciais» e ideológicos, nem
está eliminado o perigo duma guerra que tudo subverta. Aumenta
o intercâmbio das ideias; mas as próprias palavras com que se
exprimem conceitos da maior importância assumem sentidos muito
diferentes segundo as diversas ideologias. Finalmente,
procura-se com todo o empenho uma ordem temporal mais
perfeita, mas sem que a acompanhe um progresso espiritual
proporcionado.
Marcados por
circunstâncias tão complexas, muitos dos nossos contemporâneos
são incapazes de discernir os valores verdadeiramente
permanentes e de os harmonizar com os novamente descobertos.
Daí que, agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se
oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da
evolução actual dos acontecimentos. Mas esta desafia o homem,
força-o até a uma resposta.
Evolução
e domínio da técnica e da ciência
5. A actual
perturbação dos espíritos e a mudança das condições de vida,
estão ligadas a uma transformação mais ampla, a qual tende a
dar o predomínio, na formação do espírito, às ciências
matemáticas e naturais, e, no plano da acção, às técnicas,
fruto dessas ciências. Esta mentalidade científica modela a
cultura e os modos de pensar duma maneira diferente do que no
passado. A técnica progrediu tanto que transforma a face da
terra e tenta já dominar o espaço.
Também sobre o
tempo estende a inteligência humana o seu domínio: quanto ao
passado, graças ao conhecimento histórico; relativamente ao
futuro, com a prospectiva e a planificação. Os progressos das
ciências biológicas, psicológicas e sociais não só ajudam o
homem a conhecer-se melhor, mas ainda lhe permitem exercer,
por meios técnicos, uma influência directa na vida das
sociedades. Ao mesmo tempo, a humanidade preocupa-se cada vez
mais com prever e ordenar o seu aumento demográfico.
O próprio
movimento da história torna-se tão rápido, que os indivíduos
dificilmente o podem seguir. O destino da comunidade humana
torna-se um só, e não já dividido entre histórias
independentes. A humanidade passa, assim, duma concepção
predominantemente estática da ordem das coisas para um outra,
preferentemente dinâmica e evolutiva; daqui nasce uma nova e
imensa problemática, a qual está a exigir novas análises e
novas sínteses.
Mudanças
na ordem social
6. Pelo mesmo
facto, verificam-se cada dia maiores transformações nas
comunidades locais tradicionais, como são famílias
patriarcais, as clãs, as tribos, aldeias e outros diferentes
grupos, e nas relações da convivência social.
Difunde-se
progressivamente a sociedade de tipo industrial, levando
algumas nações à opulência económica e transformando
radicalmente as concepções e as condições de vida social
vigentes desde há séculos. Aumentam também a preferência e a
busca da vida urbana, quer pelo aumento das cidades e do
número de seus habitantes, quer pela difusão do género de vida
urbana entre os camponeses.
Novos e mais
perfeitos meios de comunicação social permitem o conhecimento
dos acontecimentos e a rápida e vasta difusão dos modos de
pensar e de sentir; o que, por sua vez, dá origem a. numerosas
repercussões.
Nem se deve
minimizar o facto de muitos homens, levados por diversos
motivos a emigrar, mudarem com isso o próprio modo de viver.
Multiplicam-se
assim sem cessar as relações do homem com os seus semelhantes,
ao mesmo tempo que a própria socialização introduz novas
ligações, sem no entanto favorecer em todos os casos uma
conveniente maturação das pessoas e relações verdadeiramente
pessoais («personalização»).
É verdade que
tal evolução aparece mais claramente nas nações que beneficiam
já das vantagens do progresso económico e técnico, mas nota-se
também entre os povos ainda em vias de desenvolvimento, que
desejam alcançar para os seus países os benefícios da
industrialização e da urbanização. Esses povos, sobretudo os
que estão ligados a tradições mais antigas, sentem ao mesmo
tempo a exigência dum exercício cada vez mais pessoal da
liberdade.
Transformações psicológicas, morais e religiosas
7. A
transformação de mentalidade e de estruturas põe muitas vezes
em questão os valores admitidos, sobretudo no caso dos jovens.
Tornam-se frequentemente impacientes e mesmo, com a
inquietação, rebeldes; conscientes da própria importância na
vida social, aspiram a participar nela o mais depressa
possível. Por este motivo, os pais e educadores encontram não
raro crescentes dificuldades no desempenho da sua missão.
Por sua vez, as
instituições, as leis e a maneira de pensar e de sentir
herdadas do passado nem sempre parecem adaptadas à situação
actual; e daqui provém uma grave perturbação no comportamento
e até nas próprias normas de acção.
Por fim, as
novas circunstâncias afectam a própria vida religiosa. Por um
lado, um sentido crítico mais apurado purifica-a duma
concepção mágica do mundo e de certas sobrevivências
supersticiosas, e exige cada dia mais a adesão a uma fé
pessoal e operante; desta maneira, muitos chegam a um mais
vivo sentido de Deus. Mas, por outro lado, grandes massas
afastam-se praticamente da religião. Ao contrário do que
sucedia em tempos passados, negar Deus ou a religião, ou
prescindir deles já não é um facto individual e insólito:
hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado como
exigência do progresso científico ou dum novo tipo de
humanismo. Em muitas regiões, tudo isto não é apenas afirmado
no meio filosófico, mas invade em larga escala a literatura, a
arte, a interpretação das ciências do homem e da história e
até as próprias leis civis; o que provoca a desorientação de
muitos.
Desequilíbrios pessoais familiares e sociais
8. Uma tão
rápida evolução, muitas vezes processada desordenadamente e,
sobretudo, a consciência mais aguda das desigualdades
existentes no mundo, geram ou aumentam contradições e
desequilíbrios.
Ao nível da
própria pessoa, origina-se com frequência um desequilíbrio
entre o saber prático moderno e o pensar teórico, que não
consegue dominar o conjunto dos seus conhecimentos nem
ordená-los em sínteses satisfatórias. Surge também
desequilíbrio entre a preocupação da eficiência prática e as
exigências da consciência moral; outras vezes, as condições
colectivas da existência e as exigências do pensamento pessoal
e até da contemplação. Gera-se, finalmente, o desequilíbrio
entre a especialização da actividade humana e a visão global
da realidade.
No seio da
família, originam-se tensões, quer devido à pressão das
condições demográficas, económicas e sociais, quer pelas
dificuldades que surgem entre as diferentes gerações, quer
pelo novo tipo de relações sociais entre homens e mulheres.
Grandes
discrepâncias surgem entre as raças e os diversos grupos
sociais; entre as nações ricas, as menos prósperas e as
pobres; finalmente, entre as instituições internacionais,
nascidas do desejo de paz que os povos têm, e a ambição de
propagar a própria ideologia ou os egoísmos colectivos
existentes nas nações e em outros grupos.
Daqui nascem
desconfianças e inimizades mútuas, conflitos e desgraças, das
quais o homem é simultâneamente causa e vítima.
Aspirações mais universais do género humano
9. Entretanto,
vai crescendo a convicção de que o género humano não só pode e
deve aumentar cada vez mais o seu domínio sobre as coisas
criadas, mas também lhe compete estabelecer uma ordem
política, social e econó. mica, que o sirva cada vez melhor e
ajude indivíduos e grupos a afirmarem e desenvolverem a
própria dignidade.
Daqui vem a
insistência com que muitos reivindicam aqueles bens de que,
com uma consciência muito viva, se julgam privados por
injustiça ou por desigual distribuição. As nações em vias de
desenvolvimento, e as de recente independência desejam
participar dos bens da civilização, não só no campo político
mas também no económico, e aspiram a desempenhar livre. mente
o seu papel no plano mundial; e, no entanto, aumenta cada dia
mais a sua distância, e muitas vezes, simultâneamente, a sua
dependência mesmo económica com relação às outras nações mais
ricas e de mais rápido progresso. Os povos oprimidos pela fome
interpelam os povos mais ricos. As mulheres reivindicam, onde
ainda a não alcançaram, a paridade de direito e de facto com
os homens. Os operários e os camponeses querem não apenas
ganhar o necessário para viver, mas desenvolver, graças ao
trabalho, as próprias qualidades; mais ainda, querem
participar na organização da vida económica, social, política
e cultural. Pela primeira vez na história dos homens, todos os
povos têm já a convicção de que os bens da cultura podem e
devem estender-se efectivamente a todos.
Subjacente a
todas estas exigências, esconde-se, porém, uma aspiração mais
profunda e universal: as pessoas e os grupos anelam por uma
vida plena e livre, digna do homem, pondo ao próprio serviço
tudo quanto o mundo de hoje lhes pode proporcionar em tanta
abundância. E as nações fazem esforços cada dia maiores por
chegar a uma certa comunidade universal.
O mundo actual
apresenta-se, assim, simultâneamente poderoso e débil, capaz
do melhor e do pior, tendo patente diante de si o caminho da
liberdade ou da servidão, do progresso ou da regressão, da
fraternidade ou do ódio. E o homem torna-se consciente de que
a ele compete dirigir as forças que suscitou, e que tanto o
podem esmagar como servir. Por isso se interroga a si mesmo.
Jesus
Cristo, resposta e solução da problemática humana
10. Na verdade,
os desequilíbrios de que sofre o mundo actual estão ligados
com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração
do homem. Porque no íntimo do próprio homem muitos elementos
se com batem. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta,
como criatura que é, mùltiplamente limitado, por outra
sente-se ilimitado nos seus desejos, e chamado a uma vida
superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a
escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco
e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza
o que desejaria fazer (4). Sofre assim em si mesmo a divisão,
da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a
sociedade. Muitos, sem dúvida, que levam uma vida impregnada
de materialismo prático, não podem ter uma clara percepção
desta situação dramática; ou, oprimidos pela miséria, não lhe
podem prestar atenção. Outros pensam encontrar a paz nas
diversas interpretações da realidade que lhes são propostas.
Alguns só do esforço humano esperam a verdadeira e plena
libertação do género humano, e estão convencidos que o futuro
império do homem sobre a terra satisfará todas as aspirações
do seu coração. E não faltam os que, desesperando de poder
encontrar um sentido para a vida, louvam a coragem daqueles
que, julgando a existência humana vazia de qualquer
significado, se esforçam por lhe conferir, por si mesmos, todo
o seu valor. Todavia, perante a evolução actual do mundo, cada
dia são mais numerosos os que põem ou sentem com nova acuidade
as questões fundamentais: Que é o homem? Qual o sentido da
dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso
alcançado, continuam a existir? Para que servem essas
vitórias, ganhas a tão grande preço? Que pode o homem dar à
sociedade, e que coisas pode dela receber? Que há para além
desta vida terrena?
A Igreja, por
sua parte, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por
todos (5), oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a
força para poderem corresponder à sua altíssima vocação; nem
foi dado aos homens sob o céu outro nome, no qual devam ser
salvos (6). Acredita também que a chave, o centro e o fim de
toda a história humana se encontram no seu Senhor e mestre. E
afirma, além disso, que, subjacentes a todas as
transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último
fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e para sempre (7).
Quer, portanto, o Concílio, à luz de Cristo, imagem de Deus
invisível e primogénito de toda a criação (8), dirigir-se a
todos, para iluminar o mistério do homem e cooperar na solução
das principais questões do nosso tempo.
PRIMEIRA PARTE
A IGREJA E A VOCAÇÃO DO HOMEM
Que pensa
a Igreja sobre o homem
11. O Povo de
Deus, movido pela fé com que acredita ser conduzido pelo
Espírito do Senhor, o qual enche o universo, esforça-se por
discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em
que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os
verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus. Porque a
fé ilumina todas as coisas com uma luz nova, e faz conhecer o
desígnio divino acerca da vocação integral do homem e, dessa
forma, orienta o espírito para soluções plenamente humanas.
O Concílio
propõe-se, antes de mais, julgar a esta luz os valores que
hoje são mais apreciados e pô-los em relação com a sua fonte
divina. Tais valores, com efeito, na medida em que são fruto
do engenho que Deus concedeu aos homens, são excelentes, mas,
por causa da corrupção do coração humano, não raro são
desviados da sua recta ordenação e precisam de ser
purificados.
Que pensa a
Igreja acerca do homem? Que recomendações parecem dever
fazer-se, em ordem à construção da sociedade actual? Qual é o
significado último da actividade humana no universo? Espera-se
uma resposta para estas perguntas. Aparecerá então mais
claramente que o Povo de Deus e o género humano, no qual
aquele está inserido, se prestam mútuo serviço;
manifestar-se-á assim o carácter religioso e, por isso mesmo,
profundamente humano da missão da Igreja.
CAPÍTULO I
A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O homem
criado à imagem de Deus
12. Tudo quanto
existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem,
como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo
quase geral entre crentes e não-crentes.
Mas, que é o
homem? Ele próprio já formulou, e continua a formular, acerca
de si mesmo, inúmeras opiniões, diferentes entre si e até
contraditórias. Segundo estas, muitas vezes se exalta até se
constituir norma absoluta, outras se abate até ao desespero.
Daí as suas dúvidas e angústias. A Igreja sente profundamente
estas dificuldades e, instruída pela revelação de Deus, pode
dar-lhes uma resposta que defina a verdadeira condição do
homem, explique as suas fraquezas, ao mesmo tempo que permita
conhecer com exactidão a sua dignidade e vocação.
A Sagrada
Escritura ensina que o homem foi criado «à imagem de Deus»,
capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído
senhor de todas as criaturas terrenas (1), para as dominar e
delas se servir, dando glória a Deus (2). «Que é, pois, o
homem, para que dele te lembres? ou o filho do homem, para que
te preocupes com ele? Fizeste dele pouco menos que um anjo,
coroando-o de glória e de esplendor. Estabeleceste-o sobre a
obra de tuas mãos, tudo puseste sob os seus pés» (Salmo 8,
5-7).
Deus, porém,
não criou o homem sòzinho: desde o princípio criou-os «varão e
mulher (Gén. 1,27); e a sua união constitui a primeira forma
de comunhão entre pessoas. Pois o homem, por sua própria
natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver
as suas qualidades sem entrar em relação com os outros.
Como também
lemos na Sagrada Escritura, Deus viu «todas as coisas que
fizera, e eram excelentes» (Gén. 1,31).
O pecado
e suas consequências
13.
Estabelecido por Deus num estado de santidade, o homem,
seduzido pelo maligno, logo no começo da sua história abusou
da própria liberdade, levantando-se contra Deus e desejando
alcançar o seu fim fora d'Ele. Tendo conhecido a Deus, não lhe
prestou a glória a Ele devida, mas o seu coração insensato
obscureceu-se e ele serviu à criatura, preferindo-a ao Criador
(3). E isto que a revelação divina nos dá a conhecer, concorda
com os dados da experiência. Quando o homem olha para dentro
do próprio coração, descobre-se inclinado também para o mal, e
imerso em muitos males, que não podem provir de seu Criador,
que é bom. Muitas vezes, recusando reconhecer Deus como seu
princípio, perturbou também a devida orientação para o fim
último e, ao mesmo tempo, toda a sua ordenação quer para si
mesmo, quer para os demais homens e para toda a criação.
O homem
encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E assim, toda a vida
humana, quer singular quer colectiva, apresenta-se como uma
luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas.
Mais: o homem descobre-se incapaz de repelir por si mesmo as
arremetidas do inimigo: cada um sente-se como que preso com
cadeias. Mas o Senhor em pessoa veio para libertar e
fortalecer o homem, renovando-o interiormente e lançando fora
o príncipe deste mundo (cfr. Jo. 12,31), que o mantinha na
servidão do pecado (4). Porque o pecado diminui o homem,
impedindo-o de atingir a sua plena realização.
A sublime
vocação e a profunda miséria que os homens em si mesmos
experimentam, encontram a sua explicação última à luz desta
revelação.
Constituição do homem: sua natureza
14. O homem,
ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo, pela
sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os
quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam
livremente o Criador (5). Não pode, portanto, desprezar a vida
corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu corpo como
bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há-de
ressuscitar no último dia. Todavia, ferido pelo pecado, o
homem experimenta as revoltas do corpo. É, pois, a própria
dignidade humana que exige que o homem glorifique a Deus no
seu corpo (6), não deixando que este se escravize às más
inclinações do próprio coração. Não se engana o homem, quando
se reconhece por superior às coisas materiais e se considera
como algo mais do que simples parcela da natureza ou anónimo
elemento d a cidade dos homens. Pela sua interioridade,
transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento
profundo que ele alcança quando reentra no seu interior, onde
Deus, que perscruta os corações (7), o espera, e onde ele, sob
o olhar do Senhor, decide da própria sorte. Ao reconhecer,
pois, em si uma alma espiritual e imortal, não se ilude com
uma enganosa criação imaginativa, mero resultado de condições
físicas e sociais; atinge, pelo contrário, a verdade profunda
das coisas.
Dignidade
do entendimento
15.
Participando da luz da inteligência divina, com razão pensa o
homem que supera, pela inteligência, o universo. Exercitando
incansàvelmente, no decurso dos séculos, o próprio engenho,
conseguiu ele grandes progressos nas ciências empíricas, nas
técnicas e nas artes liberais. Nos nossos dias, alcançou
notáveis sucessos, sobretudo na investigação e conquista do
mundo material. Mas buscou sempre, e encontrou, uma verdade
mais profunda. Porque a inteligência não se limita ao domínio
dos fenómenos; embora, em consequência do pecado, esteja
parcialmente obscurecida e debilitada, ela é capaz de atingir
com certeza a realidade inteligível.
Finalmente, a
natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar
a sua perfeição na sabedoria, que suavemente atrai o espírito
do homem à busca e amor da verdade e do bem, e graças à qual
ele é levado por meio das coisas visíveis até às invisíveis.
Mais do que os
séculos passados, o nosso tempo precisa de uma tal sabedoria,
para que se humanizem as novas descobertas dos homens. Está
ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem
homens cheios de sabedoria. E é de notar que muitas nações,
pobres em bens económicos, mas ricas em sabedoria, podem
trazer às outras inapreciável contribuição.
Pelo dom do
Espírito Santo, o homem chega a contemplar e saborear, na fé,
o mistério do plano divino (8).
Dignidade
da consciência moral
16. No fundo da
própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs
a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o
está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento
oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita
aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio
Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que
será julgado(9). A consciência é o centro mais secreto e o
santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja
voz se faz ouvir na intimidade do seu ser (10). Graças à
consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se
realiza no amor de Deus e do próximo (11). Pela fidelidade à
voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais
homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos
problemas morais que surgem na vida individual e social.
Quanto mais, portanto, prevalecer a recta consciência, tanto
mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade
cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas da
moralidade. Não raro, porém, acontece que a consciência erra,
por ignorância invencível, sem por isso perder a própria
dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se
descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência
se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado.
Grandeza
da liberdade
17. Mas é só na
liberdade que o homem se pode converter ao bem. Os homens de
hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade;
e com toda a razão. Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo
condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o
que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade
verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem.
Pois Deus quis «deixar o homem entregue à sua própria decisão»
(12), para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente
chegue à total e beatífica perfeição, aderindo a Ele. Exige,
portanto, a dignidade do homem que ele proceda segundo a
própria consciência e por livre adesão, ou seja movido e
induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos
impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem
atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das
paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura
a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes. A
liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a ajuda da
graça divina pode tornar plenamente efectiva esta orientação
para Deus. E cada um deve dar conta da própria vida perante o
tribunal de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver praticado
(13).
A
imortalidade e o enigma da morte
18. É em face
da morte que o enigma da condição humana mais se adensa. Não é
só a dor e a progressiva dissolução do corpo que atormentam o
homem, mas também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe
para sempre. Mas a intuição do próprio coração fá-lo acertar,
quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o
desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de
eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria,
insurge-se contra a morte. Todas as tentativas da técnica, por
muito úteis que sejam, não conseguem acalmar a ansiedade do
homem: o prolongamento da longevidade biológica não pode
satisfazer aquele desejo duma vida ulterior, invencivelmente
radicado no seu coração.
Enquanto,
diante da morte, qualquer imaginação se revela impotente, a
Igreja, ensinada pela revelação divina, afirma que o homem foi
criado por Deus para um fim feliz, para além dos limites da
miséria terrena. A fé cristã ensina que a própria morte
corporal, de que o homem seria isento se não tivesse pecado
(14) - acabará por ser vencida, quando o homem for pelo
omnipotente e misericordioso Salvador restituído à salvação
que por sua culpa perdera. Com efeito, Deus chamou e chama o
homem a unir-se a Ele com todo o seu ser na perpétua comunhão
da incorruptível vida divina. Esta vitória, alcançou-a Cristo
ressuscitado, libertando o homem da morte com a própria morte
(15). Portanto, a fé, que se apresenta à reflexão do homem
apoiada em sólidos argumentos, dá uma resposta à sua ansiedade
acerca do seu destino futuro; e ao mesmo tempo oferece a
possibilidade de comunicar em Cristo com os irmãos queridos
que a morte já levou, fazendo esperar que eles alcançaram a
verdadeira vida junto de Deus.
Formas e
raízes do ateísmo
19. A razão
mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à
união com Deus. É desde o começo da sua existência que o homem
é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque,
criado por Deus por amor, é por Ele por amor constantemente
conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se
não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu
Criador. Porém, muitos dos nossos contemporâneos não atendem a
esta íntima e vital ligação a Deus, ou até a rejeitam
explicitamente; de tal maneira que o ateísmo deve ser
considerado entre os factos mais graves do tempo actual e
submetido a atento exame.
Com a palavra
«ateísmo», designam-se fenómenos muito diversos entre si. Com
efeito, enquanto alguns negam expressamente Deus, outros
pensam que o homem não pode afirmar seja o que for a seu
respeito; outros ainda, tratam o problema de Deus de tal
maneira que ele parece não ter significado. Muitos,
ultrapassando indevidamente os limites das ciências positivas,
ou pretendem explicar todas as coisas só com os recursos da
ciência, ou, pelo contrário, já não admitem nenhuma verdade
absoluta. Alguns, exaltam de tal modo o homem, que a fé em
Deus perde toda a força, e parecem mais inclinados a afirmar o
homem do que a negar Deus. Outros, con. cebem Deus de uma tal
maneira, que aquilo que rejeitam não é de modo algum o Deus do
Evangelho. Outros há que nem sequer abordam o problema de
Deus: parecem alheios a qualquer inquietação religiosa e não
percebem por que se devem ainda preocupar com a religião. Além
disso, o ateísmo nasce muitas vezes dum protesto violento
contra o mal que existe no mundo, ou de se ter atribuído
indevidamente o carácter de absoluto a certos valores humanos
que passam a ocupar o lugar de Deus. A própria civilização
actual, não por si mesma mas pelo facto de estar muito ligada
com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil
o acesso a Deus.
Sem dúvida que
não estão imunes de culpa todos aqueles que procuram
voluntariamente expulsar Deus do seu coração e evitar os
problemas religiosos, não seguindo o ditame da própria
consciência; mas os próprios crentes, muitas vezes, têm
responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo,
considerado no seu conjunto, não é um fenómeno originário,
antes resulta de várias causas, entre as quais se conta também
a reacção crítica contra as religiões e, nalguns países,
principalmente contra a religião cristã. Pelo que os crentes
podem ter tido parte não pequena na génese do ateísmo, na
medida em que, pela negligência na educação da sua fé, ou por
exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências
da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes
esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da
religião.
O ateísmo sistemático
20. O ateísmo
moderno apresenta muitas vezes uma forma sistemática, a qual,
pescindindo de outros motivos, leva o desejo de autonomia do
homem a um tal grau que constitui um obstáculo a qualquer
dependência com relação a Deus. Os que professam tal ateísmo,
pretendem que a liberdade consiste em ser o homem o seu
próprio fim, autor único e demiurgo da sua história; e pensam
que isso é incompatível com o reconhecimento de um Senhor,
autor e fim de todas as coisas; ou que, pelo menos, torna tal
afirmação plenamente supérflua. O sentimento de poder que os
progressos técnicos hodiernos deram ao homem pode favorecer
esta doutrina.
Não se deve
passar em silêncio, entre as formas actuais de ateísmo, aquela
que espera a libertação do homem sobretudo da sua libertação
económica. A esta, dizem, opõe-se por sua natureza a religião,
na medida em que, dando ao homem a esperança duma enganosa
vida futura, o afasta da construção da cidade terrena. Por
isso, os que professam esta doutrina, quando alcançam o poder,
atacam violentamente a religião, difundindo o ateísmo também
por aqueles meios de pressão de que dispõe o poder público,
sobretudo na educação da juventude.
Atitude
da Igreja perante o ateísmo
21. A Igreja,
fiel a Deus e aos homens, não pode deixar de reprovar com dor
e com toda a firmeza, como já o fez no passado (16), essas
doutrinas e actividades perniciosas, contrárias à razão e à
experiência comum dos homens, e que destronam o homem da sua
inata dignidade.
Procura, no
entanto, descobrir no espírito dos ateus as causas da sua
negação de Deus, e, consciente da gravidade dos problemas
levantados pelo ateísmo, e, levada pelo amor dos homens,
entende que elas devem ser objecto de um exame sério e
profundo.
A Igreja
defende que o reconhecimento de Deus de modo algum se opõe à
dignidade do homem, uma vez que esta dignidade se funda e se
realiza no próprio Deus. Com efeito, o homem inteligente e
livre, foi constituído em sociedade por Deus Criador; mas é
sobretudo chamado a unir-se, como filho, a Deus e a participar
na sua felicidade. Ensina, além disso, a Igreja que a
importância das tarefas terrenas não é diminuída pela
esperança escatológica, mas que esta antes reforça com novos
motivos a sua execução. Pelo contrário, se faltam o fundamento
divino e a esperança da vida eterna, a dignidade humana é
gravemente lesada, como tantas vezes se verifica nos nossos
dias, e os enigmas da vida e da morte, do pecado e da dor,
ficam sem solução, o que frequentemente leva os homens ao
desespero.
Entretanto,
cada homem permanece para si mesmo um problema insolúvel,
apenas confusamente pressentido. Ninguém pode, na verdade,
evitar inteiramente esta questão em certos momentos, e
sobretudo nos acontecimentos mais importantes da vida. Só Deus
pode responder plenamente e com toda a certeza, Ele que chama
o homem a uma reflexão mais profunda e a uma busca mais
humilde.
Quanto ao
remédio para o ateísmo, ele há-de vir da conveniente exposição
da doutrina e da vida íntegra da Igreja e dos seus membros.
Pois a Igreja deve tornar presente e como que visível a Deus
Pai e a seu Filho encarnado, renovando-se e purificando-se
continuamente sob a direcção do Espírito Santo (17). Isto
há-de alcançar-se, antes de mais, com o testemunho duma fé
viva e adulta, educada de modo a poder perceber claramente e
superar as dificuldades. Magnífico testemunho desta fé deram e
continuam a dar inúmeros mártires. Ela deve manifestar a sua
fecundidade, penetrando toda a vida dos fiéis, mesmo a
profana, levando-os à justiça e ao amor, sobretudo para com os
necessitados. Finalmente, o que contribui mais que tudo para
manifestar a presença de Deus é a caridade fraterna dos fiéis
que unânimemente colaboram com a fé do Evangelho (18) e se
apresentam como sinal de unidade.
Ainda que
rejeite inteiramente o ateísmo, todavia a Igreja proclama
sinceramente que todos os homens, crentes e não-crentes, devem
contribuir para a recta construção do mundo no qual vivem em
comum. O que não é possível sem um prudente e sincero diálogo.
Deplora, por isso, a discriminação que certos governantes
introduzem entre crentes e não-crentes, com desconhecimento
dos direitos fundamentais da pessoa humana. Para os crentes,
reclama a liberdade efectiva, que lhes permita edificar neste
mundo também o templo de Deus. Quanto aos ateus, convida-os
cortêsmente a considerar com espírito aberto o Evangelho de
Cristo.
Pois a Igreja
sabe perfeitamente que, ao defender a dignidade da vocação do
homem, restituindo a esperança àqueles que já desesperam do
seu destino sublime, a sua mensagem está de acordo com os
desejos mais profundos do coração humano. Longe de diminuir o
homem, a sua mensagem contribui para o seu bem, difundindo
luz, vida e liberdade; e, fora dela, nada pode satisfazer o
coração humano: «fizeste-nos para Ti», Senhor, e o nosso
coração está inquieto, enquanto não repousa em Ti» (19).
Cristo, o homem novo
22. Na
realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo
encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro
homem, era efectivamente figura do futuro (20), isto é, de
Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do
mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar
que as verdades acima ditas tenham n'Ele a sua fonte e n'Ele
atinjam a plenitude.
«Imagem de Deus
invisível» (Col. 1,15) (21), Ele é o homem perfeito, que
restitui aos filhos de Adão semelhança divina, deformada desde
o primeiro pecado. Já que, n'Ele, a natureza humana foi
assumida, e não destruída (22), por isso mesmo também em nós
foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua
encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada
homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência
humana, agiu com uma vontade humana (23), amou com um coração
humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um
de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado (24).
Cordeiro
inocente, mereceu-nos a vida com a livre efusão do seu sangue;
n 'Ele nos reconciliou Deus consigo e uns com os outros (25) e
nos arrancou da escravidão do demónio e do pecado. De maneira
que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: o Filho de Deus
«amou-me e entregou-se por mim» (Gál. 2,20). Sofrendo por nós,
não só nos deu exemplo, para que sigamos os seus passos (26),
mas também abriu um novo caminho, em que a vida e a morte são
santificados e recebem um novo sentido.
O cristão,
tornado conforme à imagem do Filho que é o primogénito entre a
multidão dos irmãos (27), recebe «as primícias do Espírito» (Rom.
8,23), que o tornam capaz de cumprir a lei nova do amor (28).
Por meio deste Espírito, «penhor da herança (Ef. 1,14), o
homem todo é renovado interiormente, até à «redenção do corpo»
(Rom. 8,23): «Se o Espírito d'Aquele que ressuscitou Jesus de
entre os mortos habita em vós, Aquele que ressuscitou Jesus de
entre os mortos dará também a vida aos vossos corpos mortais,
pelo seu Espírito que em vós habita» (Rom. 8,11) (29). É
verdade que para o cristão é uma necessidade e um dever lutar
contra o mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte;
mas, associado ao mistério pascal, e configurado à morte de
Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela
esperança (30).
E o que fica
dito, vale não só dos cristãos, mas de todos os homens de boa
vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente (31). Com
efeito, já que por todos morreu Cristo (32) e a vocação última
de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina,
devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade
de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus
conhecido.
Tal é, e tão
grande, o mistério do homem, que a revelação cristã manifesta
aos que crêem. E assim, por Cristo e em Cristo, esclarece-se o
enigma da dor e da morte, o qual, fora do Seu Evangelho, nos
esmaga. Cristo ressuscitou, destruindo a morte com a própria
morte, e deu-nos a vida (33), para que, tornados filhos no
Filho, exclamemos no Espírito: Abba, Pai (34).
CAPÍTULO II
A COMUNIDADE HUMANA
Propósito
do Concílio
23. Entre os
principais aspectos do mundo actual conta-se a multiplicação
das relações entre os homens, cujo desenvolvimento é muito
favorecido pelos progressos técnicos hodiernos. Todavia, o
diálogo fraterno entre os homens não se realiza ao nível
destes progressos, mas ao nível mais profundo da comunidade de
pessoas, a qual exige o mútuo respeito da sua plena dignidade
espiritual. A revelação cristã favorece poderosamente esta
comunhão entre as pessoas, ao mesmo tempo que nós leva a uma
compreensão mais profunda das leis da vida social que o
Criador inscreveu na natureza espiritual e moral do homem.
Dado, porém,
que recentes documentos do magistério eclesiástico expuseram a
doutrina cristã acerca da sociedade humana (1), o Concílio
limita-se a recordar algumas verdades mais importantes e a
expor o seu fundamento à luz da revelação. Insiste,
seguidamente, em algumas consequências de maior importância
para o nosso tempo.
Índole
comunitária da vocação humana
24. Deus, que
por todos cuida com solicitude paternal, quis que os homens
formassem uma só família, e se tratassem uns aos outros como
irmãos. Criados todos à imagem e semelhança daquele Deus que
«fez habitar sobre toda a face da terra o inteiro género
humano, saído dum princípio único» (Act. 17,26), todos são
chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus.
E por isso, o
amor de Deus e do próximo é o primeiro e maior de todos os
mandamentos. Mas a Sagrada Escritura ensina-nos que o amor de
Deus não se pode separar do amor do próximo, «...todos os
outros mandamentos se resumem neste: amarás o próximo como a
ti mesmo... A caridade é, pois, a lei na sua plenitude» (Rom.
13, 9-10; cfr. 1 Jo. 4,20). Isto revela-se como sendo da maior
importância, hoje que os homens se tornam cada dia mais
dependentes uns dos outros e o mundo se unifica cada vez mais.
Mais ainda:
quando o Senhor Jesus pede ao Pai «que todos sejam um..., como
nós somos um» (Jo. 17, 21-22), sugere -abrindo perspectivas
inacessíveis à razão humana- que dá uma certa analogia entre a
união das pessoas divinas entre si e a união dos filhos de
Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna manifesto
que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por
Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser
no sincero dom de si mesmo (2).
Interdependência da
pessoa humana e da sociedade humana
25. A natureza
social do homem torna claro que o progresso da pessoa humana e
o desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua
dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua
natureza, necessita absolutamente da vida social (3), é e deve
ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições
sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício
ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e
torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao
contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus
irmãos.
Entre os laços
sociais, necessários para o desenvolvimento do homem, alguns,
como a família e a sociedade política, correspondem mais
imediatamente à sua natureza íntima; outros são antes fruto da
sua livre vontade. No nosso tempo, devido a várias causas, as
relações e interdependências mútuas multiplicam-se cada vez
mais; o que dá origem a diversas associações e instituições,
quer públicas quer privadas. Este facto, denominado
socialização, embora não esteja isento de perigos, traz,
todavia, consigo muitas vantagens, em ordem a confirmar e
desenvolver as qualidades da pessoa humana e a proteger os
seus direitos (4).
Porém, se é
verdade que as pessoas humanas recebem muito desta vida
social, em ordem a realizar a própria vocação, mesmo a
religiosa, também não se pode negar que os homens são muitas
vezes afastados do bem ou impelidos ao mal pelas condições em
que vivem e estão mergulhados desde a infância. É certo que as
perturbações tão frequentes da ordem social vêm, em grande
parte, das tensões existentes no seio das formas económicas,
políticas e sociais. Mas, mais profundamente, nascem do
egoísmo e do orgulho dos homens, os quais também pervertem o
ambiente social. Onde a ordem das coisas se encontra viciada
pelas consequências do pecado, o homem, nascido com uma
inclinação para o mal, encontra novos incitamentos para o
pecado, que não pode superar sem grandes esforços e ajudado
pela graça.
Promoção
do bem-comum
26. A
interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente
estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum - ou seja, o
conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos
grupos como a cada membro, alcançar mais plena e fàcilmente a
própria perfeição-se torne hoje cada vez mais universal e que,
por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem
respeito a todo o género humano. Cada grupo deve ter em conta
as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e
mesmo o bem comum de toda a família humana (5).
Simultâneamente,
aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana,
por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e
deveres serem universais e invioláveis. É necessário,
portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que
necessita para levar uma vida verdadeiramente humana:
alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o
estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao
trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação,
direito de agir segundo as normas da própria consciência,
direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em
matéria religiosa.
A ordem social
e o seu progresso devem, pois, reverter sempre em bem das
pessoas, já que a ordem das coisas deve estar subordinada à
ordem das pessoas e não ao contrário; foi o próprio Senhor
quem o insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o homem,
não o homem para o sábado (6). Essa ordem, fundada na verdade,
construída sobre a justiça e vivificada pelo amor, deve ser
cada vez mais desenvolvida e, na liberdade, deve encontrar um
equilíbrio cada vez mais humano (7). Para o conseguir, será
necessária a renovação da mentalidade e a introdução de amplas
reformas sociais.
O Espírito de
Deus, que dirige o curso dos tempos e renova a face da terra
com admirável providência, está presente a esta evolução. E o
fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma
irreprimível exigência de dignidade.
Respeito da pessoa humana
27. Vindo a
conclusões práticas e mais urgentes, o Concílio recomenda a
reverência para com o homem, de maneira que cada um deve
considerar o próximo, sem excepção, como um «outro eu», tendo
em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários
para a levar dignamente (8), não imitando aquele homem rico
que não fez caso algum do pobre Lázaro (9).
Sobretudo em
nossos dias, urge a obrigação de nos tornarmos o próximo de
todo e qualquer homem, e de o servir efectivamente quando vem
ao nosso . encontro - quer seja o ancião, abandonado de todos,
ou o operário estrangeiro injustamente desprezado, ou o
exilado, ou o filho duma união ilegítima que sofre
injustamente por causa dum pecado que não cometeu, ou o
indigente que interpela a nossa consciência, recordando a
palavra do Senhor: «todas as vezes que o fizestes a um destes
meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes» (Mt. 25,40).
Além disso, são
infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como
seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia
e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da
pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e
mentais e as tentativas para violentar as próprias
consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana,
como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições
degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como
meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e
responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são
infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana,
desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que
padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao
Criador.
Respeito e amor dos
adversários
28. O nosso
respeito e amor devem estender-se também àqueles que pensam ou
actuam diferentemente de nós em matéria social, política ou
até religiosa. Aliás, quanto mais intimamente compreendermos,
com delicadeza e caridade, a sua maneira de ver, tanto mais
facilmente poderemos com eles dialogar.
Evidentemente,
este amor e benevolência de modo algum nos devem tornar
indiferentes perante a verdade e o bem. Pelo contrário, é o
próprio amor que incita os discípulos de Cristo a anunciar a
todos a verdade salvadora. Mas deve distinguir-se entre o
erro, sempre de rejeitar, e aquele que erra, o qual conserva
sempre a dignidade própria de pessoas, mesmo quando está
atingido por ideias religiosas falsas ou menos exactas (10).
Só Deus é juiz e penetra os corações; por esse motivo,
proibe-nos Ele de julgar da culpabilidade interna de qualquer
pessoa (11).
A doutrina de
Cristo exige que também perdoemos as injúrias (12), e estende
a todos os inimigos o preceito do amor, que é o mandamento da
lei nova: «ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo, e
odiarás o teu inimigo. Mas eu digo-vos: amai os vossos
inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos
perseguem e caluniam» (Mt. 5, 43-44).
Igualdade essencial entre
todos os homens
29. A igualdade
fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais
reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à
imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e,
remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino
divinos.
Sem dúvida, os
homens não são todos iguais quanto à capacidade física e
forças intelectuais e morais, variadas e diferentes em cada
um. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à
vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de
discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por
razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião.
É realmente de lamentar que esses direitos fundamentais da
pessoa ainda não sejam respeitados em toda a parte. Por
exemplo, quando se nega à mulher o poder de escolher
livremente o esposo ou o estado de vida ou de conseguir uma
educação e cultura iguais às do homem.
Além disso,
embora entre os homens haja justas diferenças, a igual
dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a
condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as
excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros
e povos da única família humana provocam o escândalo e são
obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa
humana e, finalmente, à paz social e internacional.
Procurem as
instituições humanas, privadas ou públicas, servir a dignidade
e o destino do homem, combatendo ao mesmo tempo valorosamente
contra qualquer forma de sujeição política ou social e
salvaguardando, sob qualquer regime político, os direitos
humanos fundamentais. Mais ainda: é necessário que tais
instituições se adaptem progressivamente às realidades
espirituais, que são as mais elevadas de todas; embora por
vezes se requeira um tempo razoavelmente longo para chegar a
esse desejado fim.
Superação da ética
individualista
30. A
profundidade e rapidez das transformações reclamam com maior
urgência que ninguém se contente, por não atender à evolução
das coisas ou por inércia, com uma ética puramente
individualística. O dever de justiça e caridade cumpre-se cada
vez mais com a contribuição de cada um em favor do bem comum,
segundo as próprias possibilidades e as necessidades dos
outros, promovendo instituições públicas ou privadas e
ajudando as que servem para melhorar as condições de vida dos
homens. Mas há pessoas que, fazendo profissão de ideias amplas
e generosas, vivem sempre, no entanto, de tal modo como se
nenhum caso fizessem das necessidades sociais. E até, em
vários países, muitos desprezam as leis e prescrições sociais.
Não poucos atrevem-se a eximir-se, com várias fraudes e
enganos, aos impostos e outras obrigações sociais. Outros
desprezam certas normas da vida social, como por exemplo as
estabelecidas para defender a saúde ou para regularizar o
trânsito de veículos, sem repararem que esse seu descuido põe
em perigo a vida própria e alheia.
Todos tomem a
peito considerar e respeitar as relações sociais como um dos
principais deveres do homem de hoje. Com efeito, quanto mais o
mundo se unifica, tanto mais as obrigações dos homens
transcendem os grupos particulares e se estendem
progressivamente a todo o mundo. O que só se poderá fazer se
os indivíduos e grupos cultivarem em si mesmos e difundirem na
sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira a
tornarem-se realmente, com o necessário auxílio da graça
divina, homens novos e construtores duma humanidade nova.
Responsabilidade e
participação social
31. Para que
cada homem possa cumprir mais perfeitamente os seus deveres de
consciência quer para consigo quer em relação aos vários
grupos de que é membro, deve-se ter o cuidado de que todos
recebam uma formação mais ampla, empregando-se para tal os
consideráveis meios de que hoje dispõe a humanidade. Antes de
mais, a educação dos jovens, de qualquer origem social, deve
ser de tal maneira organizada que suscite homens e mulheres
não apenas cultos mas também de forte personalidade, tão
urgentemente exigidos pelo nosso tempo.
Mal poderá,
contudo, o homem chegar a este sentido de responsabilidade, se
as condições de vida lhe não permitirem tornar-se consciente
da própria dignidade e responder à sua vocação, empenhando-se
no serviço de Deus e dos outros homens. Ora a liberdade humana
com frequência se debilita quando o homem cai em extrema
miséria, e degrada-se quando ele, cedendo às demasiadas
facilidades da vida, se fecha numa espécie de solidão dourada.
Pelo contrário, ela robustece-se quando o homem aceita as
inevitáveis dificuldades da vida social, assume as multiformes
exigências da vida em comum e se empenha no serviço da
comunidade humana.
Deve, por isso,
estimular-se em todos a vontade de tomar parte nos
empreendimentos comuns. E é de louvar o modo de agir das
nações em que a maior parte dos cidadãos participa, com
verdadeira liberdade, nos assuntos públicos. É preciso, porém,
ter sempre em conta a. situação real de cada povo e o
necessário vigor da autoridade pública. Mas para que todos os
cidadãos se sintam inclinados a participar na vida dos vários
grupos de que se forma o corpo social, é necessário que
encontrem nesses grupos bens que os atraiam e os predisponham
ao serviço dos outros. Podemos legitimamente pensar que o
destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que
souberem dar às gerações vindoiras razões de viver e de
esperar.
O Verbo encarnado e a
solidariedade humana
32. Do mesmo
modo que Deus não criou os homens para viverem isolados, mas
para se unirem em sociedade, assim também Lhe «aprouve...
santificar e salvar os homens não individualmente e com
exclusão de qualquer ligação mútua, mas fazendo deles um povo
que O reconhecesse em verdade e O servisse santamente» (13).
Desde o começo da história da salvação, Ele escolheu os homens
não só como indivíduos mas ainda como membros duma comunidade.
Com efeito, manifestando o seu desígnio, chamou a esses
escolhidos o «seu povo» (Ex. 3, 7-12), com o qual estabeleceu
aliança no Sinai (14).
Esta índole
comunitária aperfeiçoa-se e completa-se com a obra de Jesus
Cristo. Pois o próprio Verbo encarnado quis participar da vida
social dos homens. Tomou parte nas bodas de Caná, entrou na
casa de Zaqueu, comeu com os publicanos e pecadores. Revelou o
amor do Pai e a sublime vocação dos homens, evocando
realidades sociais comuns e servindo-se de modos de falar e de
imagens da vida de todos os dias. Santificou os laços sociais
e antes de mais os familiares, fonte da vida social; e
submeteu-se livremente às leis do seu país. Quis levar a vida
dum operário do seu tempo e da sua terra.
Na sua pregação
claramente mandou aos filhos de Deus que se tratassem como
irmãos. E na sua oração pediu que todos os seus discípulos
fossem «um». Ele próprio se ofereceu à morte por todos, de
todos feito Redentor. «Não há maior amor do que dar alguém a
vida pelos seus amigos» (Jo. 15, 13). E mandou aos Apóstolos
pregar a todos a mensagem evangélica para que a humanidade se
tornasse a família de Deus, na qual o amor fosse toda a lei.
Primogénito
entre muitos irmãos, estabeleceu, depois da sua morte e
ressurreição, com o dom do seu Espírito, uma nova comunhão
fraterna entre todos os que O recebem com fé e caridade, a
saber, na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos, membros
uns dos outros, se prestam mutuamente serviço segundo os
diversos dons a cada um concedidos.
Esta
solidariedade deve crescer sem cessar, até se consumar naquele
dia em que os homens, salvos pela graça, darão perfeita glória
a Deus, como família amada do Senhor e de Cristo seu irmão.
CAPÍTULO III
A ACTIVIDADE HUMANA NO MUNDO
Problema do sentido da
actividade humana
33. Sempre o
homem procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais
a própria vida; hoje, porém, sobretudo graças à ciência e à
técnica, estendeu o seu domínio à natureza inteira, e
continuamente o aumenta; e a família humana, sobretudo devido
ao aumento de múltiplos meios de comunicação entre as nações,
vai-se descobrindo e organizando progressivamente como uma só
comunidade espalhada pelo mundo inteiro. Acontece assim que
muitos bens que o homem noutro tempo esperava sobretudo das
forças superiores, os alcança hoje por seus próprios meios.
Muitas são as
questões que se levantam entre os homens, perante este imenso
empreendimento, que já atingiu o inteiro género humano. Qual o
sentido e valor desta actividade? Como se devem usar estes
bens? Para que fim tendem os esforços dos indivíduos e das
sociedades? Guarda do depósito da palavra divina, onde se vão
buscar os princípios da ordem religiosa e moral, a Igreja,
embora nem sempre tenha uma resposta já pronta para cada uma
destas perguntas, deseja, no entanto, juntar a luz da
revelação à competência de todos os homens, para que assim
receba luz o caminho recentemente empreendido pela humanidade.
Valor da
actividade humana
34. Uma coisa é
certa para os crentes: a actividade humana individual e
colectiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso
dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida,
corresponde à vontade de Deus. Pois o homem, criado à imagem
de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o
que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade(1)
e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si
e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as
coisas sujeitas ao homem, seja glorificado em toda a terra o
nome de Deus (2).
Isto aplica-se
também às actividades de todos os dias. Assim, os homens e as
mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias, de
tal modo exercem a própria actividade que prestam conveniente
serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam
com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e
dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios
de Deus na história (3).
Longe de pensar
que as obras do engenho e poder humano se opõem ao poder de
Deus, ou de considerar a criatura racional como rival do
Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar convencidos
de que as vitórias do género humano manifestam a grandeza de
Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais
aumenta o poder dos homens, tanto mais cresce a sua
responsabilidade, pessoal e comunitária. Vê-se, portanto, que
a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir
o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes,
mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essas
actividades (4).
Ordenação da actividade
humana
35. A
actividade humana, do mesmo modo que procede do homem, assim
para ele se ordena. De facto, quando age, o homem não
transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si
mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias
faculdades, sai de si e eleva-se sobre si mesmo. Este
desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens
externos que se possam conseguir. O homem vale mais por aquilo
que é do que por aquilo que tem (5). Do mesmo modo, tudo o que
o homem faz para conseguir mais justiça, mais fraternidade,
uma organização mais humana das relações sociais, vale mais do
que os progressos técnicos. Pois tais progressos podem
proporcionar a base material para a promoção humana, mas, por
si sós, são incapazes de a realizar.
A norma da
actividade humana é pois a seguinte: segundo o plano e vontade
de Deus, ser conforme com o verdadeiro bem da humanidade e
tornar possível ao homem, individualmente considerado ou em
sociedade, cultivar e realizar a sua vocação integral.
Justa autonomia das
actividades terrestres
36. No entanto,
muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima
ligação entre a actividade humana e a religião constitua um
obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das
ciências. Se por autonomia das realidades terrenas se entende
que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e
valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo,
utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal
autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso
tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade
do Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação,
todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis
próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos
peculiares de cada ciência e arte. Por esta razão, a
investigação metódica em todos os campos do saber, quando
levada a cado de um modo verdadeiramente científico e segundo
as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as
realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus (6).
Antes, quem se esforça com humildade e constância por
perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não
tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual
sustenta as coisas e as faz ser o que são. Seja permitido, por
isso, deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram
entre os mesmos cristãos, por não reconhecerem suficientemente
a legítima autonomia da ciência e que, pelas disputas e
controvérsias a que deram origem, levaram muitos espíritos a
pensar que a fé e a ciência eram incompatíveis (7).
Se, porém, com
as palavras «autonomia das realidades temporais» se entende
que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar
delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus
deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o
Criador, a criatura não subsiste. De resto, todos os crentes,
de qualquer religião, sempre souberam ouvir a sua voz e
manifestação na linguagem das criaturas. Antes, se se esquece
Deus, a própria criatura se obscurece.
A actividade humana
viciada pelo pecado
37. A Sagrada
Escritura, confirmada pela experiência dos séculos, ensina à
família humana que o progresso humano, tão grande bem para o
homem, traz consigo também uma grande tentação: perturbada a
ordem de valores e misturado o bem com o mal, os homens e os
grupos consideram apenas o que é seu, esquecendo o dos outros.
Deixa assim o mundo de ser um lugar de verdadeira
fraternidade, enquanto que o acrescido dos homens ameaça já
destruir o próprio género humano.
Um duro combate
contra os poderes das trevas atravessa, com efeito. toda a
história humana; começou no princípio do mundo e, segundo a
palavra do Senhor (8), durará até ao último dia. Inserido
nesta luta, o homem deve combater constantemente, se quer ser
fiel ao bem; e só com grandes esforços e a ajuda da graça de
Deus conseguirá realizar a sua própria unidade.
Por isso, a
Igreja de Cristo, confiando no desígnio do Criador, ao mesmo
tempo que reconhece que o progresso humano pode servir para a
verdadeira felicidade dos homens, não pode deixar de repetir
aquela palavra do Apóstolo: «não vos conformeis com este
mundo» (Rom. 12, 2), isto é, com aquele espírito de vaidade e
malícia que transforma a actividade humana, destinada ao
serviço de Deus e do homem, em instrumento de pecado.
E se alguém
quer saber de que maneira se pode superar esta situação
miserável, os cristãos professam que todas as actividades
humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor próprio
desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela
cruz e ressurreição de Cristo. Porque, remido por Cristo e
tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve
amar até as coisas criadas por Deus. Pois recebeu-as de Deus e
considera-as e respeita-as como vindas da mão do Senhor. Dando
por elas graças ao benfeitor e usando e aproveitando as
criaturas em pobreza e liberdade de espírito, é introduzido no
verdadeiro senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo possui
(9). «Todas as coisas são vossas; mas vós sois de Cristo e
Cristo é de Deus» (1 Cor. 3, 22-23).
A actividade humana
aperfeiçoada na Encarnação e no mistério pascal
38. O Verbo de
Deus, pelo qual todas as coisas foram feitas, fazendo-se homem
e vivendo na terra dos homens (10), entrou como homem perfeito
na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a (11). Ele
revela-nos que «Deus é amor» (1 Jo. 4, 8) e ensina-nos ao
mesmo tempo que a lei fundamental da perfeição humana e,
portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento do
amor. Dá, assim, aos que acreditam no amor de Deus, a certeza
de que o caminho do amor está aberto para todos e que o
esforço por estabelecer a universal fraternidade não é vão.
Adverte, ao mesmo tempo, que este amor não se deve exercitar
apenas nas coisas grandes, mas, antes de mais, nas
circunstâncias ordinárias da vida. Suportando a morte por
todos nós pecadores (12), ensina-nos com o seu exemplo que
também devemos levar a cruz que a carne e o mundo fazem pesar
sobre os ombros daqueles que buscam a paz e a justiça.
Constituído Senhor pela sua ressurreição, Cristo, a quem foi
dado todo o poder no céu e na terra (13), actua já pela força
do Espírito Santo nos corações dos homens; não suscita neles
apenas o desejo da vida futura, mas, por isso mesmo, anima,
purifica e fortalece também aquelas generosas aspirações que
levam a humanidade a tentar tornar a vida mais humana e a
submeter para esse fim toda a terra. Sem dúvida, os dons do
Espírito são diversos: enquanto chama alguns a darem claro
testemunho do desejo da pátria celeste e a conservarem-no vivo
no seio da família humana, chama outros a dedicarem-se ao
serviço terreno dos homens, preparando com esta sua actividade
como que a matéria do reino dos céus. Liberta, porém, a todos,
para que, deixando o amor próprio e empregando em favor da
vida humana todas as energias terrenas, se lancem para o
futuro, em que a humanidade se tornará oblação agradável a
Deus (14).
O penhor desta
esperança e o viático para este caminho deixou-os o Senhor aos
seus naquele sacramento da fé, em que os elementos naturais,
cultivados pelo homem, se convertem no Corpo e Sangue
gloriosos, na ceia da comunhão fraterna e na prelibação do
banquete celeste.
A nova terra e o novo céu
39. Ignoramos o
tempo em que a terra e a humanidade atingirão a sua plenitude
(15), e também não sabemos que transformação sofrerá o
universo. Porque a figura deste mundo, deformada pelo pecado,
passa certamente (16), mas Deus ensina-nos que se prepara uma
nova habitação e uma nova terra, na qual reina a justiça (17)
e cuja felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz
que se levantam no coração dos homens (18). Então, vencida a
morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo e aquilo que
foi semeado na fraqueza e corrupção, revestir-se-á de
incorruptibilidade (19); permanecendo a caridade e as suas
obras (20), todas as criaturas que Deus criou para o homem
serão libertadas da escravidão da vaidade (21).
É certo que
é-nos lembrado que de nada serve ao homem ganhar o mundo
inteiro, se a si mesmo se vem a perder (22). A expectativa da
nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes activar a
solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o
corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma
certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o
progresso terreno se deva cuidadosamente distinguir do
crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em que pode
contribuir para a melhor organização da sociedade humana,
interessa muito ao reino de Deus (23).
Todos estes
valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da
liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os
termos difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o
seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então
purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados,
quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal:
«reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça,
reino de justiça, de amor e de paz» (24). Sobre a terra, o
reino já está misteriosamente presente; quando o Senhor vier,
atingirá a perfeição.
CAPÍTULO IV
A FUNÇÃO DA IGREJA NO MUNDO ACTUAL
Relação mútua entre a
Igreja e o mundo
40. Tudo quanto
dissemos acerca da dignidade da pessoa humana, da comunidade
dos homens, do significado profundo da actividade humana,
constitui o fundamento das relações entre a Igreja e o mundo e
a base do seu diálogo recíproco(1). Pelo que, no presente
capítulo, pressupondo tudo o que o Concílio já declarou acerca
do mistério da Igreja, considerar-se-á a mesma Igreja enquanto
existe neste mundo e com ele vive e actua.
A Igreja, que
tem a sua origem no amor do eterno Pai (2), foi fundada, no
tempo, por Cristo Redentor, e reune-se no Espírito Santo (3),
tem um fim salvador e escatológico, o qual só se poderá
atingir plenamente no outro mundo. Mas ela existe já
actualmente na terra, composta de homens que são membros da
cidade terrena e chamados a formar já na história humana a
família dos filhos de Deus, a qual deve crescer continuamente
até à vinda do Senhor. Unida em vista dos bens celestes e com
eles enriquecida, esta família foi por Cristo «constituída e
organizada como sociedade neste mundo» (4), dispondo de
«convenientes meios de unidade visível e social» (5). Deste
modo, a Igreja, simultâneamente «agrupamento visível e
comunidade espiritual» (6), caminha juntamente com toda a
humanidade, participa da mesma sorte terrena do mundo e é como
que o fermento e a alma da sociedade humana (7), a qual deve
ser renovada em Cristo e transformada em família de Deus.
Esta
compenetração da cidade terrena com a celeste só pela fé se
pode perceber; mais, ela permanece o mistério da história
humana, sempre perturbada pelo pecado, enquanto não chega a
plena manifestação da glória dos filhos de Deus. Procurando o
seu fim salvífico, a Igreja não se limita a comunicar ao homem
a vida divina; espalha sobre todo o mundo os reflexos da sua
luz, sobretudo enquanto cura e eleva a dignidade da pessoa
humana, consolida a coesão da sociedade e dá um sentido mais
profundo à quotidiana actividade dos homens. A Igreja pensa,
assim, que por meio de cada um dos seus membros e por toda a
sua comunidade, muito pode ajudar para tornar mais humana a
família dos homens e a sua história.
Além disso, a
Igreja católica aprecia grandemente a contribuição que as
outras igrejas cristãs ou comunidades eclesiais têm dado e
continuam a dar para a consecução do mesmo fim. E está também
firmemente persuadida de que pode receber muita ajuda, de
vários modos, do mundo, pelas qualidades e acção dos
indivíduos e das sociedades, na preparação do Evangelho.
Expõem-se, a seguir, alguns princípios gerais para promover
convenientemente o intercâmbio e ajuda recíproca entre a
Igreja e o mundo, nos domínios que são de algum modo comuns a
ambos.
Ajuda que a Igreja
oferece ao homem
41. O homem
actual está a caminho de um desenvolvimento mais pleno da
personalidade e uma maior descoberta e afirmação dos próprios
direitos. Tendo a Igreja, por sua parte, a missão de
manifestar o mistério de Deus, último fim do homem, ela
descobre ao mesmo tempo ao homem o sentido da sua existência,
a verdade profunda àcerca dele mesmo. A Igreja sabe muito bem
que só Deus, a quem serve, pode responder às aspirações mais
profundas do coração humano, que nunca plenamente se satisfaz
com os alimentos terrestres. Sabe também que o homem,
solicitado pelo Espírito de Deus, nunca será totalmente
indiferente ao problema religioso, como o confirmam não só a
experiência dos tempos passados, mas também inúmeros
testemunhos do presente. Com efeito, o homem sempre desejará
saber, ao menos confusamente, qual é o significado da sua
vida, da sua actividade e da sua morte. E a própria presença
da Igreja lhe traz à mente estes problemas. Mas só Deus, que
criou o homem à sua imagem e o remiu, dá plena resposta a
estas perguntas, pela revelação em Cristo seu Filho feito
homem. Aquele que segue Cristo, o homem perfeito, torna-se
mais homem.
Apoiada nesta
fé, a Igreja pode subtrair a dignidade da natureza humana a
quaisquer flutuações de opiniões, por exemplo, as que rebaixam
exageradamente o corpo humano ou, pelo contrário, o exaltam
sem medida. Nenhuma lei humana pode salvaguardar tão
perfeitamente a dignidade pessoal e a liberdade do homem como
o Evangelho de Cristo, confiado à Igreja. Pois este Evangelho
anuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus; rejeita
toda a espécie de servidão, a qual tem a sua última origem no
pecado (8); respeita escrupulosamente a dignidade da
consciência e a sua livre decisão; sem descanso recorda que
todos os talentos humanos devem redundar em serviço de Deus e
bem dos homens; e a todos recomenda, finalmente, a caridade
(9). É o que corresponde à lei fundamental da economia cristã.
Porque, embora seja o mesmo Deus o Criador e o Salvador, o
senhor da história humana e o da história da salvação,
todavia, segundo a ordenação divina, a justa autonomia das
criaturas e sobretudo do homem, não só não é delimitada mas
antes é restituída à sua dignidade e nela confirmada.
Por isso, a
Igreja, em virtude do Evangelho que lhe foi confiado, proclama
os direitos do homem e reconhece e tem em grande apreço o
dinamismo do nosso tempo, que por toda a parte promove tais
direitos. Este movimento, porém, deve ser penetrado pelo
espírito do Evangelho, e defendido de qualquer espécie de
falsa autonomia. Pois estamos sujeitos à tentação de julgar
que os nossos direitos pessoais só são plenamente assegurados
quando nos libertamos de toda a norma da lei divina. Enquanto
que, por este caminho, a dignidade da pessoa humana, em vez de
se salvar, perde-se.
Ajuda que a Igreja
oferece à sociedade
42. A unidade
da família humana recebe um grande reforço e encontra o seu
acabamento na unidade da família dos filhos de Deus -.
Certamente, a missão própria confiada por Cristo à sua Igreja,
não é de ordem política, económica ou social: o fim que lhe
propôs é, com efeito, de ordem religiosa (11). Mas desta mesma
missão religiosa deriva um encargo, uma luz e uma energia que
podem servir para o estabelecimento e consolidação da
comunidade humana segundo a lei divina. E também, quando for
necessário, tendo em conta as circunstâncias de tempos e
lugares, pode ela própria, e até deve, suscitar obras
destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres, tais
como obras caritativas e outras semelhantes.
A Igreja
reconhece, além disso, tudo o que há de bom no dinamismo
social hodierno; sobretudo o movimento para a unidade, o
processo duma sã socialização e associação civil e económica.
Promover a unidade é, efectivamente, algo que se harmoniza com
a missão essencial da Igreja, pois ela é, «em Cristo, como que
o sacramento ou sinal e o instrumento da íntima união com Deus
e da unidade de todo o género humano» (12). Ela própria
manifesta assim ao mundo que a verdadeira união social eterna
flui da união dos espíritos e dos corações, daquela fé e
caridade em que indissoluvelmente se funda, no Espírito Santo,
a sua própria unidade. Porque a energia que a Igreja pode
insuflar à sociedade actual consiste nessa fé e caridade
efectivamente vividas e não em qualquer domínio externo,
actuado com meios puramente humanos.
Além disso,
dado que a Igreja não está ligada, por força da sua missão e
natureza, a nenhuma forma particular de cultura ou sistema
político, económico ou social, pode, graças a esta sua
universalidade, constituir um laço muito estreito entre as
diversas comunidades e nações, contanto que nela confiem e lhe
reconheçam a verdadeira liberdade para cumprir esta sua
missão. Por esta razão, a Igreja recomenda a todos os seus
filhos, e também a todos os homens, que superem com este
espírito de família próprio dos filhos de Deus, todos os
conflitos entre nações e raças, e consolidem internamente as
legítimas associações humanas.
O Concílio
considera com muito respeito o que há de bom, verdadeiro e
justo nas instituições tão diversas que o género humano criou
e sem cessar continua a criar. E a Igreja declara querer
ajudar e promover todas essas instituições, na medida em que
isso dela dependa e seja compatível com a sua própria missão.
Ela nada deseja mais ardentemente do que, servindo o bem de
todos, poder desenvolver-se livremente sob qualquer regime que
reconheça os direitos fundamentais da pessoa e da família e os
imperativos do bem comum.
Ajuda que a Igreja
oferece à actividade humana
43. O Concílio
exorta os cristãos, cidadãos de ambas as cidades, a que
procurem cumprir fielmente os seus deveres terrenos, guiados
pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que,
sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, mas
que vamos em demanda da futura (13), pensam que podem por isso
descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a
própria fé ainda os obriga mais a cumpri-los, segundo a
vocação própria de cada um (14). Mas não menos erram os que,
pelo contrário, opinam poder entregar-se às ocupações
terrenas, como se estas fossem inteiramente alheias à vida
religiosa, a qual pensam consistir apenas no cumprimento dos
actos de culto e de certos deveres morais. Este divórcio entre
a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve
ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo. Já no
Antigo Testamento os profetas denunciam este escândalo (15);
no Novo, Cristo ameaçou-o ainda mais veementemente com graves
castigos (16). Não se oponham, pois, infundadamente, as
actividades profissionais e sociais, por um lado, e a vida
religiosa, por outro. O cristão que descuida os seus deveres
temporais, falta aos seus deveres para com o próximo e até
para com o próprio Deus, e põe em risco a sua salvação eterna.
A exemplo de Cristo que exerceu um mister de operário,
alegrem-se antes os cristãos por poderem exercer todas as
actividades terrenas, unindo numa síntese vital todos os seus
esforços humanos, domésticos, profissionais, científicos ou
técnicos com os valores religiosos, sob cuja elevada
ordenação, tudo se coordena para glória de Deus.
As tarefas e
actividades seculares competem como próprias, embora não
exclusivamente, aos leigos. Por esta razão, sempre que, sós ou
associados, actuam como cidadãos do mundo, não só devem
respeitar as leis próprias de cada domínio, mas procurarão
alcançar neles uma real competência. Cooperarão de boa vontade
com os homens que prosseguem os mesmos fins. Reconhecendo
quais são as exigências da fé, e por ela robustecidos, não
hesitem, quando for oportuno, em idear novas iniciativas e
levá-las a realização. Compete à sua consciência préviamente
bem formada, imprimir a lei divina na vida da cidade
terrestre. Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e força
espiritual. Mas não pensem que os seus pastores estão sempre
de tal modo preparados que tenham uma solução pronta para
qualquer questão, mesmo grave, que surja, ou que tal é a sua
missão. Antes, esclarecidos pela sabedoria cristã, e atendendo
à doutrina do magistério (17), tomem por si mesmos as próprias
responsabilidades.
Muitas vezes, a
concepção cristã da vida incliná-los-á para determinada
solução, em certas circunstâncias concretas. Outros fiéis,
porém, com não menos sinceridade, pensarão diferentemente
acerca do mesmo assunto, como tantas vezes acontece, e
legitimamente. Embora as soluções propostas por uma e outra
parte, mesmo independentemente da sua intenção, sejam por
muitos fácilmente vinculadas à mensagem evangélica, devem, no
entanto, lembrar-se de que a ninguém é permitido, em tais
casos, invocar exclusivamente a favor da própria opinião a
autoridade da Igreja. Mas procurem sempre esclarecer-se
mutuamente, num diálogo sincero, salvaguardando a caridade
recíproca e atendendo, antes de mais, ao bem comum.
Os leigos, que
devem tomar parte activa em toda a vida da Igreja, não devem
apenas impregnar o mundo com o espírito cristão, mas são
também chamados a serem testemunhas de Cristo, em todas as
circunstâncias, no seio da comunidade humana.
Quanto aos
Bispos, a quem está confiado o encargo de governar a Igreja de
Deus, preguem juntamente com os seus sacerdotes a mensagem de
Cristo de tal maneira que todas as actividades terrenas dos
fiéis sejam penetradas pela luz do Evangelho. Lembrem-se, além
disso, os pastores que, com o seu comportamento e solicitude
quotidanos (18), manifestam ao mundo o rosto da Igreja com
base no qual os homens julgam da força e da verdade da
mensagem cristã. Com a sua vida e palavra, juntos com os
religiosos e os seus fiéis, mostrem que a Igreja, com todos os
dons que contém em si, é só pela sua simples presença uma
fonte inexaurível daquelas virtudes de que tanto necessita o
mundo de hoje. Por meio de assíduo estudo, tornem-se capazes
de tomar parte no diálogo com o mundo e com os homens de
qualquer opinião. Mas sobretudo, tenham no seu coração as
palavras deste Concílio: «Dado que o género humano caminha
hoje cada vez mais para a unidade civil, económica e social,
tanto mais necessário é que os sacerdotes em conjunto e sob a
direcção dos Bispos e do Sumo Pontífice, evitem todo o motivo
de divisão, para que a humanidade toda seja conduzida à
unidade da família de Deus» (19).
Ainda que a
Igreja, pela virtude do Espírito Santo, se tenha mantido
esposa fiel do Senhor e nunca tenha deixado de ser um sinal de
salvação no mundo, no entanto, ela não ignora que entre os
seus membros (20), clérigos ou leigos, não faltaram, no
decurso de tantos séculos, alguns que foram infiéis ao
Espírito de Deus. E também nos nossos dias, a Igreja não deixa
de ver quanta distância separa a mensagem por ela proclamada e
a humana fraqueza daqueles a quem foi confiado o Evangelho.
Seja qual for o juízo da história acerca destas deficiências,
devemos delas ter consciência e combatê-las com vigor, para
que não sejam obstáculo à difusão, do Evangelho. Também sabe a
Igreja quanto deve aprender com a experiência dos séculos, no
que se refere ao desenvolvimento das suas relações com o
mundo. Conduzida pelo Espírito Santo, a Igreja mãe «exorta sem
cessar os seus filhos a que se purifiquem e renovem, para que
o sinal de Cristo brilhe mais claramente no rosto da Igreja»
(21).
Ajuda que a Igreja recebe
do mundo
44. Assim como
é do interesse do mundo que ele reconheça a Igreja como
realidade social da história e seu fermento, assim também a
Igreja não ignora quanto recebeu da história e evolução do
género humano.
A experiência
dos séculos passados, os progressos científicos, os tesoiros
encerrados nas várias formas de cultura humana, os quais
manifestam mais plenamente a natureza do homem e abrem novos
caminhos para a verdade, aproveitam igualmente à Igreja. Ela
aprendeu, desde os começos da sua história, a formular a
mensagem de Cristo por meio dos conceitos e línguas dos
diversos povos, e procurou ilustrá-la com o saber filosófico.
Tudo isto com o fim de adaptar o Evangelho à capacidade de
compreensão de todos e às exigências dos sábios. Esta maneira
adaptada de pregar a palavra revelada deve permanecer a lei de
toda a evangelização. Deste modo, com efeito, suscita-se em
cada nação a possibilidade de exprimir a mensagem de Cristo
segundo a sua maneira própria, ao mesmo tempo que se fomenta
um intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos
diferentes povos (22). Para aumentar este intercâmbio,
necessita especialmente a Igreja - sobretudo hoje, em que tudo
muda tão ràpidamente e os modos de pensar variam tanto - da
ajuda daqueles que, vivendo no mundo, conhecem bem o espírito
e conteúdo das várias instituições e disciplinas, sejam eles
crentes ou não. É dever de todo o Povo de Deus e sobretudo dos
pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber
ouvir, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso
tempo, e julgá-las à luz da palavra de Deus, de modo que a
verdade revelada possa ser cada vez mais intimamente
percebida, melhor compreendida e apresentada de um modo
conveniente.
Como a Igreja
tem uma estrutura social visível, sinal da sua unidade em
Cristo, pode também ser enriquecida, e de facto o é, com a
evolução da vida social. Não porque falte algo na constituição
que Cristo lhe deu, mas para mais profundamente a conhecer e
melhor a exprimir e para a adaptar mais convenientemente aos
nossos tempos. Ela verifica com gratidão que, tanto no seu
conjunto como em cada um dos seus filhos, recebe variadas
ajudas dos homens de toda a classe e condição. Na realidade,
todos os que, de acordo com a vontade de Deus, promovem a
comunidade humana no plano familiar, cultural, da vida
económica e social e também política, seja nacional ou
internacional, prestam não pequena ajuda à comunidade eclesial,
na medida em que esta depende das realidades exteriores.
Mais ainda, a
Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar da
própria oposição daqueles que a hostilizam e perseguem (23).
Jesus Cristo Alfa e Omega
45. Ao ajudar o
mundo e recebendo dele ao mesmo tempo muitas coisas, o único
fim da Igreja é o advento do reino de Deus e o estabelecimento
da salvação de todo o género humano. E todo o bem que o Povo
de Deus pode prestar à família dos homens durante o tempo da
sua peregrinação deriva do facto que a Igreja é o «sacramento
universal da salvação» (24), manifestando e actuando
simultâneamente o mistério do amor de Deus pelos homens.
Com efeito, o
próprio Verbo de Deus, por quem tudo foi feito, fez-se homem,
para, homem perfeito, a todos salvar e tudo recapitular. O
Senhor é o fim da história humana, o ponto para onde tendem os
desejos da história e da civilização, o centro do género
humano, a alegria de todos os corações e a plenitude das suas
aspirações (25). Foi Ele que o Pai ressuscitou dos mortos,
exaltou e colocou à sua direita, estabelecendo-o juiz dos
vivos e dos mortos. Vivificados e reunidos no seu Espírito,
caminhamos em direcção à consumação da história humana, a qual
corresponde plenamente ao seu desígnio de amor: «recapitular
todas as coisas em Cristo, tanto as do céu como as da terra» (Ef.
1,10).
O próprio
Senhor o diz: «Eis que venho em breve, trazendo comigo a minha
recompensa, para dar a cada um segundo as suas obras. Eu sou o
alfa e o ómega, o primeiro e o último, o começo e o fim» (Apoc.
22, 12-13).
II PARTE
ALGUNS PROBLEMAS MAIS URGENTES
Atitude
do Concílio perante esses problemas
46. Depois de
ter exposto a dignidade da pessoa humana, bem como a missão
individual e social que está chamada a realizar no mundo, o
Concílio dirige agora a atenção de todos, à luz do Evangelho e
da experiência humana, para algumas necessidades mais urgentes
do nosso tempo, que profundamente afectam a humanidade.
Entre as muitas
questões que hoje a todos preocupam, importa relevar
particularmente as seguintes: o matrimónio e a família, a
cultura humana, a vida económico-social e política, a
comunidade internacional e a paz. Sobre cada uma delas devem
resplandecer os princípios e as luzes que provêm de Cristo e
que dirigirão os cristãos e iluminarão todos os homens na
busca da solução para tantos e tão complexos problemas.
CAPÍTULO I
A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DO MATRIMÓNIO E DA FAMÍLIA
O matrimónio e a família
no mundo actual
47. O bem-estar
da pessoa e da sociedade humana e cristã está intimamente
ligado com uma favorável situação da comunidade conjugal e
familiar. Por esse motivo, os cristãos, juntamente com todos
os que têm em grande apreço esta comunidade, alegram-se
sinceramente com os vários factores que fazem aumentar entre
os homens a estima desta comunidade de amor e o respeito pela
vida e que auxiliam os cônjuges e os pais na sua sublime
missão. Esperam daí ainda melhores resultados e esforçam-se
por os ampliar.
Porém, a
dignidade desta instituição não resplandece em toda a parte
com igual brilho. Encontra-se obscurecida pela poligamia, pela
epidemia do divórcio, pelo chamado amor livre e outras
deformações. Além disso, o amor conjugal é muitas vezes
profanado pelo egoísmo, amor do prazer e por práticas ilícitas
contra a geração. E as actuais condições económicas,
socio-psicológicas e civis introduzem ainda na família não
pequenas perturbações. Finalmente, em certas partes do globo,
verificam-se, com inquietação, os problemas postos pelo
aumento demográfico. Com tudo isto, angustiam-se as
consciências. Mas o vigor e a solidez da instituição
matrimonial e familiar também nisto se manifestam: as
profundas transformações da sociedade contemporânea, apesar
das dificuldades a que dão origem, muito frequentemente
revelam de diversos modos a verdadeira natureza de tal
instituição.
Por tal motivo,
o Concílio, esclarecendo alguns pontos da doutrina da Igreja,
deseja ilustrar e robustecer os cristãos e todos os homens que
se esforçam por proteger e fomentar a nativa dignidade do
estado matrimonial e o seu alto e sagrado valor.
A
santidade do matrimónio e da família
48. A íntima
comunidade da vida e do amor conjugal, fundada pelo Criador e
dotada de leis próprias, é instituída por meio da aliança
matrimonial, eu seja pelo irrevogável consentimento pessoal.
Deste modo, por meio do acto humano com o qual os cônjuges
mùtuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição
também à face da sociedade, confirmada pela lei divina. Em
vista do bem tanto dos esposos e da prole como da sociedade,
este sagrado vínculo não está ao arbítrio da vontade humana. O
próprio Deus é o autor do matrimónio, o qual possui diversos
bens e fins,(1) todos eles da máxima importância, quer para a
propagação do género humano, quer para o proveito pessoal e
sorte eterna de cada um dos membros da família, quer mesmo,
finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade
de toda a família humana. Por sua própria índole, a
instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordenados para
a procriação e educação da prole, que constituem como que a
sua coroa. O homem e a mulher, que, pela aliança conjugal «já
não são dois, mas uma só carne» (Mt. 19, 6), prestam-se
recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas
e actividades, tomam consciência da própria unidade e cada vez
mais a realizam. Esta união íntima, já que é o dom recíproco
de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a
inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilidade da sua
união (2).
Cristo Senhor
abençoou copiosamente este amor de múltiplos aspectos, nascido
da fonte divina da caridade e constituído à imagem da sua
própria união com a Igreja. E assim como outrora Deus veio ao
encontro do seu povo com uma aliança de amor e fidelidade (3),
assim agora o Salvador dos homens e esposo da Igreja (4) vem
ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do
matrimónio. E permanece com eles, para que, assim como Ele
amou a Igreja e se entregou por ela (5), de igual modo os
cônjuges, dando-se um ao outro, se amem com perpétua
fidelidade. O autêntico amor conjugal é assumido no amor
divino, e dirigido e enriquecido pela força redentora de
Cristo e pela acção salvadora da Igreja, para que, assim, os
esposos caminhem eficazmente para Deus e sejam ajudados e
fortalecidos na sua missão sublime de pai e mãe(6). Por este
motivo, os esposos cristãos são fortalecidos e como que
consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um
sacramento especial (7); cumprindo, graças à força deste, a
própria missão conjugal e familiar, penetrados do espírito de
Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e
caridade, avançam sempre mais na própria perfeição e mútua
santificação e cooperam assim juntos para a glorificação de
Deus.
Precedidos
assim pelo exemplo e oração familiar dos pais, tanto os filhos
como todos os que vivem no círculo familiar encontrarão mais
fàcilmente o caminho da existência humana, da salvação e da
santidade. Quanto aos esposos, revestidos com a dignidade e o
encargo da paternidade e maternidade, cumprirão diligentemente
o seu dever de educação, sobretudo religiosa, que a eles cabe
em primeiro lugar. Os filhos, como membros vivos dá família,
contribuem a seu modo para a santificação dos pais.
Corresponderão, com a sua gratidão, piedade filial e confiança
aos benefícios recebidos dos pais e assisti-los-ão, como bons
filhos, nas dificuldades e na solidão da velhice. A viuvez,
corajosamente assumida na sequência da vocação conjugal, por
todos deve ser respeitada (8). Cada família comunicará
generosamente com as outras as próprias riquezas espirituais.
Por isso, a família cristã, nascida de um matrimónio que é
imagem e participação da aliança de amor entre Cristo e a
Igreja (9), manifestará a todos a presença viva do Salvador no
mundo e a autêntica natureza da Igreja, quer por meio do amor
dos esposos, quer pela sua generosa fecundidade, unidade e
fidelidade, quer pela amável cooperação de todos os seus
membros.
O amor conjugal
49. A Palavra
de Deus convida repetidas vezes os noivos a alimentar e
robustecer o seu noivado com um amor casto, e os esposos a sua
união com um amor indiviso (10). E também muitos dos nossos
contemporâneos têm em grande apreço o verdadeiro amor entre
marido e mulher, manifestado de diversas maneiras, de acordo
com os honestos costumes dos povos e dos tempos. Esse amor,
dado que é eminentemente humano - pois vai de pessoa a pessoa
com um afecto voluntário - compreende o bem de toda a pessoa
e, por conseguinte, pode conferir especial dignidade às
manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como
elementos e sinais peculiares do amor conjugal. E o Senhor
dignou-se sanar, aperfeiçoar e elevar este amor com um dom
especial de graça e caridade. Unindo o humano e o divino, esse
amor leva os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos,
que se manifesta com a ternura do afecto e, com as obras, e
penetra toda a sua vida (11); e aperfeiçoa-se e aumenta pela
sua própria generosa actuação. Ele transcende, por isso, de
longe a mera inclinação erótica, a qual, fomentada
egoisticamente, rápida e miserávelmente se desvanece.
Este amor tem a
sua expressão e realização peculiar no acto próprio do
matrimónio. São, portanto, honestos e dignos os actos pelos
quais os esposos se unem em intimidade e pureza; realizados de
modo autênticamente humano, exprimem e alimentam a mútua
entrega pela qual se enriquecem um ao outro na alegria e
gratidão. Esse amor, ratificado pela promessa de ambos e,
sobretudo, sancionado pelo sacramento de Cristo, é
indissoluvelmente fiel, de corpo e de espírito, na
prosperidade e na adversidade; exclui, por isso, toda e
qualquer espécie de adultério e divórcio. A unidade do
matrimónio, confirmada pelo Senhor, manifesta-se também
claramente na igual dignidade da mulher e do homem que se deve
reconhecer no mútuo e pleno amor. Mas, para cumprir com
perseverança os deveres desta vocação cristã, requere-se uma
virtude notável; por este motivo, hão-de os esposos,
fortalecidos pela graça para levarem uma vida de santidade,
cultivar assiduamente e impetrar com a oração a fortaleza do
próprio amor, a magnanimidade e o espírito de sacrifício.
O autêntico
amor conjugal será mais apreciado, e formar-se-á a seu
respeito uma sã opinião pública, se os esposos cristãos derem
um testemunho eminente de fidelidade e harmonia e de
solicitude na educação dos filhos e se participarem na
necessária renovação cultural, psicológica e social em favor
do casamento e da família. Os jovens devem ser conveniente e
oportunamente instruídos, sobretudo no seio da própria
família, acerca da dignidade, missão e exercício do amor
conjugal. Deste modo, educados na castidade, poderão, chegada
a idade conveniente, entrar no casamento depois dum noivado
puro.
A fecundidade do
matrimónio
50. O
matrimónio e o amor conjugal ordenam-se por sua própria
natureza à geração e educação da prole. Os filhos são, sem
dúvida, o maior dom do matrimónio e contribuem muito para o
bem dos próprios pais. O mesmo Deus que disse «não é bom que o
homem esteja só» (Gén. 2,88) e que «desde a origem fez o homem
varão e mulher» (Mt. 19,14), querendo comunicar-lhe uma
participação especial na Sua obra criadora, abençoou o homem e
a mulher dizendo: «sede fecundos e multiplicai-vos» (Gén.
1,28). Por isso, o autêntico cultivo do amor conjugal, e toda
a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os outros fins
do matrimónio, tendem a que os esposos, com fortaleza de
ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor do criador e
salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece
a sua família.
Os esposos
sabem que no dever de transmitir e educar a vida humana -
dever que deve ser considerado como a sua missão específica -
eles são os cooperadores do amor de Deus criador e como que os
seus intérpretes. Desempenhar-se-ão, portanto, desta missão
com a sua responsabilidade humana e cristã; com um respeito
cheio de docilidade para com Deus, de comum acordo e com
esforço comum, formarão rectamente a própria consciência,
tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou
que prevêem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo
e da própria situação e tendo, finalmente, em consideração o
bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria
Igreja. São os próprios esposos que, em última instância,
devem diante de Deus tomar esta decisão. Mas, no seu modo de
proceder, tenham os esposos consciência de que não podem agir
arbitràriamente, mas que sempre se devem guiar pela
consciência, que se deve conformar com a lei divina, e ser
dóceis ao magistério dia Igreja, que autenticamente a
interpreta à luz do Evangelho. Essa lei divina manifesta a
plena significação do amor conjugal, protege-o e estimula-o
para a sua perfeição autenticamente humana. Assim, os esposos
cristãos, confiados na divina Providência e cultivando o
espírito de sacrifício (12), dão glória ao Criador e caminham
para a perfeição em Cristo quando se desempenham do seu dever
de procriar com responsabilidade generosa, humana e cristã.
Entre os esposos que deste modo satisfazem à missão que Deus
lhes confiou, devem ser especialmente lembrados aqueles que,
de comum acordo e com prudência, aceitam com grandeza de ânimo
educar uma prole numerosa (13).
No entanto, o
matrimónio não foi instituído só em ordem à procriação da
prole. A própria natureza da aliança indissolúvel entre as
pessoas e o bem da prole exigem que o mútuo amor dos esposos
se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade. E
por isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes
ardentemente desejados, o matrimónio conserva o seu valor e
indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida.
O amor conjugal e o
respeito pela vida
51. O Concílio
não ignora que os esposos, na sua vontade de conduzir
harmonicamente a própria vida conjugal, encontram frequentes
dificuldades em certas circunstâncias da vida actual; que se
podem encontrar em situações em que, pelo menos
temporariamente, não lhes é possível aumentar o número de
filhos e em que só dificilmente se mantêm a fidelidade do amor
e a plena comunidade de vida. Mas quando se suspende a
intimidade da vida conjugal, não raro se põe em risco a
fidelidade e se compromete o bem da prole; porque, nesse caso,
ficam ameaçadas tanto a educação dos filhos como a coragem
necessária para ter mais filhos.
Não falta quem
se atreva a dar soluções imorais a estes problemas, sem recuar
sequer perante o homicídio. Mas a Igreja-recorda que não pode
haver verdadeira incompatibilidade entre as leis divinas que
regem a transmissão da vida e o desenvolvimento do autêntico
amor conjugal.
Com efeito,
Deus, senhor da vida, confiou aos homens, para que estes
desempenhassem dum modo digno dos mesmos homens, o nobre
encargo de conservar a vida. Esta deve, pois, ser
salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro
momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes
abomináveis. A índole sexual humana e o poder gerador do
homem, eles superam de modo admirável o que se encontra nos
graus inferiores da vida; daqui se segue que os mesmos actos
específicos da vida conjugal, realizados segundo a autêntica
dignidade humana, devem ser objecto de grande respeito. Quando
se trata, portanto, de conciliar o amor conjugal com a
transmissão responsável da vida, a moralidade do comportamento
não depende apenas da sinceridade da intenção e da apreciação
dos motivos; deve também determinar-se por critérios
objectivos, tomados da natureza da pessoa e dos seus actos;
critérios que respeitem, num contexto de autêntico amor, o
sentido da mútua doação e da procriação humana. Tudo isto só é
possível se se cultivar sinceramente a virtude da castidade
conjugal. Segundo estes princípios, não é lícito aos filhos da
Igreja adoptar, na regulação dos nascimentos, caminhos que o
magistério, explicitando a lei divina, reprova (14).
Todos,
finalmente, tenham bem presente que a vida humana e a missão
de a transmitir não se limitam a este mundo, nem podem ser
medidas ou compreendidas únicamente em função dele, mas que
estão sempre relacionadas com o eterno destino do homem.
O progresso e a promoção
do matrimónio e da família
52. A família é
como que uma escola de valorização humana. Para que esteja em
condições de alcançar a plenitude da sua vida e missão, exige,
porém, a benévola comunhão de almas e o comum acordo dos
esposos, e a diligente cooperação dos pais na educação dos
filhos. A presença activa do pai contribui poderosamente para
a formação destes; mas é preciso assegurar também a
assistência ao lar por parte da mãe, da qual os filhos,
sobretudo os mais pequenos, têm tanta necessidade; sem
descurar, aliás, a legítima promoção social da mulher. Os
filhos sejam educados de tal modo que, chegados à idade
adulta, sejam capazes de seguir com inteira responsabilidade a
sua vocação, incluindo a sagrada, e escolher um estado de
vida; e, se casarem, possam constituir uma família própria, em
condições morais, sociais e económicas favoráveis. Compete aos
pais ou tutores guiar os jovens na constituição da família com
prudentes conselhos que eles devem ouvir de bom grado; mas
evitem cuidadosamente forçá-los, directa ou indirectamente, a
casar-se ou a escolher o cônjuge.
A família - na
qual se congregam as diferentes gerações que reciprocamente se
ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os
direitos pessoais com as outras exigências da vida social
-constitui assim o fundamento da sociedade. E por esta razão,
todos aqueles que têm alguma influência nas comunidades e
grupos sociais, devem contribuís eficazmente para a promoção
do matrimónio e da família. A autoridade civil há-de
considerar como um dever sagrado reconhecer, proteger e
favorecer a sua verdadeira natureza, assegurar a moralidade
pública e fomentar a prosperidade doméstica. Deve
salvaguardar-se o direito de os pais gerarem e educarem os
filhos no seio da família. Protejam-se também e ajudem-se
convenientemente, por meio duma previdente legislação e com
iniciativas várias, aqueles que por infelicidade não
beneficiam duma família.
Os cristãos,
resgatando o tempo presente (15), e distinguindo o que é
eterno das formas mutáveis, promovam com empenho o bem do
matrimónio e da família, com o testemunho da própria vida e
cooperando com os homens de boa vontade; deste modo, superando
as dificuldades, proverão às necessidades e vantagens da
família, de acordo com os novos tempos. Para alcançar este
fim, muito ajudarão o sentir cristão dos fiéis, a rectidão de
consciência moral dos homens, bem como o saber e competência
dos que se dedicam às ciências sagradas.
Os cientistas,
particularmente os especialistas nas ciências biológicas,
médicas, sociais e psicológicas, podem prestar um grande
serviço para bem do matrimónio e da família se, juntando os
seus esforços, procurarem esclarecer mais profundamente as
condições que favorecem a honesta regulação da procriação
humana.
Cabe aos
sacerdotes, devidamente informados acerca das realidades
familiares, auxiliar a vocação dos esposos na sua vida
conjugal e familiar por vários meios pastorais, com a pregação
da palavra de Deus, o culto litúrgico e outras ajudas
espirituais; devem ainda fortalecê-los, com bondade e
paciência, nas suas dificuldades e reconfortá-los com a
caridade, para que assim se formem famílias verdadeiramente
irradiantes.
As diferentes
obras, sobretudo as associações de famílias, procurem
fortalecer com a doutrina e a acção os jovens e os esposos,
especialmente os casados de há pouco, e formá-los para a vida
familiar, social e apostólica.
Finalmente, os
próprios esposos, feitos à imagem de Deus e estabelecidos numa
ordem verdadeiramente pessoal, estejam unidos em comunhão de
afecto e de pensamento e com mútua santidade (16) de modo que,
seguindo a Cristo, princípio da vida (17), se tornem, pela
fidelidade do seu amor, através das alegrias e sacrifícios da
sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que Deus
revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição (18).
CAPÍTULO II
A CONVENIENTE PROMOÇÃO DO PROGRESSO CULTURAL
A cultura e a sua relação
com o homem
53. É próprio
da pessoa humana necessitar da cultura, isto é, de desenvolver
os bens e valores da natureza, para chegar a uma autêntica e
plena realização. Por isso, sempre que se trata da vida
humana, natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas.
A palavra
«cultura» indica, em geral, todas as coisas por meio das quais
o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu
espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e
pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o
progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer
na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no
decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas
suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à
inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e
as suas aspirações.
Daqui se segue
que a cultura humana implica necessàriamente um aspecto
histórico e social e que o termo «cultura» assume
frequentemente um sentido sociológico e etnológico. É neste
sentido que se fala da pluralidade das culturas. Com efeito,
diferentes modos de usar das coisas, de trabalhar e de se
exprimir, de praticar a religião e de formar os costumes, de
estabelecer leis e instituições jurídicas, de desenvolver as
ciências e as artes e de cultivar a beleza, dão origem a
diferentes estilos de vida e diversas escalas de valores. E
assim, a partir dos usos tradicionais, se constitui o
património de cada comunidade humana. Define-se também por
este modo o meio histórico determinado no qual se integra o
homem raça ou época, e do qual tira os bens necessários para a
promoção da civilização.
Secção 1
CONDIÇÕES DA CULTURA NO MUNDO ACTUAL
Novos estilos de vida
54. As
condições de vida do homem moderno sofreram tão profunda
transformação no campo social e cultural, que é lícito falar
duma nova era da história humana (1). Novos caminhos se abrem
assim ao progresso e difusão da cultura, preparados pelo
imenso avanço das ciências naturais, humanas e sociais, pelo
desenvolvimento das técnicas e pelo progresso no
aperfeiçoamento e coordenação dos meios de comunicação. Daqui
provêm algumas notas características da cultura actual: as
chamadas ciências exactas desenvolvem grandemente o sentido
crítico; as recentes investigações psicológicas explicam
profundamente a actividade humana; as disciplinas históricas
contribuem muito para considerar as coisas sob o seu aspecto
mutável e evolutivo; as maneiras de viver e os costumes
tornam-se cada vez mais uniformes; a industrialização, a
urbanização e outras causas que favorecem a vida comunitária,
criam novas formas de cultura de que resultam novas maneiras
de sentir e de agir e de utilizar o tempo livre; o aumento de
intercâmbio entre os vários povos e grupos sociais revela mais
amplamente a todos e a cada um os tesouros das várias formas
de cultura, preparando-se deste modo, progressivamente, um
tipo mais universal de cultura humana, a qual tanto mais
favorecerá e expressará a unidade do género humano, quanto
melhor souber respeitar as peculiaridades das diversas
culturas.
O homem, autor da cultura
55. Cresce cada
vez mais o número dos homens e mulheres, de qualquer grupo ou
nação, que têm consciência de serem os artífices e autores da
cultura da própria comunidade. Aumenta também cada dia mais no
mundo inteiro o sentido da autonomia e responsabilidade, o
qual é de máxima importância para a maturidade espiritual e
moral do género humano. O que aparece ainda mais claramente,
se tivermos diante dos olhos a unificação do mundo e o encargo
que nos incumbe de construirmos, na verdade e na justiça, um
mundo melhor. Somos assim testemunhas do nascer de um novo
humanismo, no qual o homem se define antes de mais pela sua
responsabilidade com relação aos seus irmãos e à história.
Antinomias da cultura
actual e actuação do homem
56. Nestas
condições, não é de admirar que o homem, sentindo a
responsabilidade que.tem na promoção da cultura, alimente mais
dilatadas esperanças, e ao mesmo tempo encare com inquietação
as múltiplas antinomias existentes e que ele tem de resolver.
Que se deve
fazer para que os frequentes contactos entre culturas, que
deveriam levar os diferentes grupos e culturas a um diálogo
verdadeiro e fecundo, não perturbem a vida das comunidades, ou
subvertam a sabedoria dos antigos, ou ponham em perigo o génio
próprio de cada povo?
Como fomentar o
dinamismo e expansão da nova cultura, sem deixar perder a
fidelidade viva à herança tradicional? Problema que se põe com
particular acuidade quando se trata de harmonizar uma cultura
nascida dum grande progresso das ciências e da técnica com a
que se alimenta dos estudos clássicos das diversas tradições.
Como conciliar
a rápida e progressiva especialização das várias disciplinas
com a necessidade de construir a sua síntese e ainda de
conservar no homem as capacidades de contemplação e admiração
que conduzem à sabedoria?
Que fazer para
que todos os homens participem dos bens culturais, uma vez que
a cultura das elites é cada vez mais elevada e complexa?
Enfim, como reconhecer a legitimidade da autonomia que a
cultura reclama, sem cair num humanismo meramente terreno ou
até hostil à religião?
É preciso, que,
no meio de todas estas antinomias, a cultura humana progrida
hoje de tal modo, que desenvolva harmónica e integralmente a
pessoa humana e ajude os homens no desempenho das tarefas a
que todos, e sobretudo os cristãos, estão chamados,
fraternalmente unidos numa única família humana.
Secção 2
ALGUNS PRINCÍPIOS PARA A CONVENIENTE PROMOÇÃO DA CULTURA
Fé e
cultura
57. Os
cristãos, peregrinos da cidade celestial, devem buscar e
saborear as coisas do alto (2). Mas, com isso, de modo algum
diminui, antes aumenta a importância do seu dever de colaborar
com todos os outros homens na edificação dum mundo mais
humano. E, na verdade, o mistério da fé cristã fornece-lhes
valiosos estímulos e ajudas para cumprirem mais intensamente
essa missão e sobretudo para descobrirem o pleno significado
de tal actividade, assinalando assim o lugar privilegiado da
cultura na vocação integral do homem.
Quando o homem,
usando as suas mãos ou recorrendo à técnica, trabalha a terra
para que ela produza frutos e se torne habitação digna para
toda a humanidade, ou quando participa conscientemente na vida
social dos diversos grupos, está a dar realização à vontade
que Deus manifestou no começo dos tempos, de que dominasse a
terra (3) e completasse a obra da criação, ao mesmo tempo que
se vai aperfeiçoando a si mesmo; cumpre igualmente o
mandamento de Cristo, de se consagrar ao serviço de seus
irmãos.
Além disso,
dedicando-se às várias disciplinas da história, filosofia,
ciências matemáticas e naturais, e cultivando as artes, pode o
homem ajudar muito a família humana a elevar-se a concepções
mais sublimes da verdade, do bem e da beleza e a um juízo de
valor universal, e ser assim luminosamente esclarecida por
aquela admirável sabedoria, que desde a eternidade estava
junto de Deus, dispondo com Ele todas as coisas, e encontrando
as suas delícias em estar com os filhos dos homens (4).
Pelo mesmo
facto, o espírito do homem, mais liberto da escravidão das
coisas, pode mais facilmente levantar-se ao culto e
contemplação do Criador. Mais ainda, dispõe-se assim, sob o
impulso da graça, a reconhecer o Verbo de Deus, o qual antes
de se fazer homem para tudo salvar e em si recapitular, já
«estava no mundo», como «verdadeira luz que ilumina todo o
homem» (Jo. 1, 9-10) (5).
O progresso
hodierno das ciências e das técnicas que, em virtude do seu
próprio método, não penetram até às causas últimas das coisas,
pode sem dúvida dar azo a certo fenomenismo e agnosticismo,
sempre que o método de investigação de que usam estas
disciplinas se arvora indevidamente em norma suprema de toda a
investigação da verdade. É mesmo de temer que o homem,
fiando-se demasiadamente nas descobertas actuais, julgue que
se basta a si mesmo e já não procure coisas mais altas.
Estas
deploráveis manifestações não são, porém, consequências
necessárias da cultura actual, nem nos devem fazer cair na
tentação de desconhecer os seus valores positivos. Tais são,
entre outros: o gosto das ciências e a exacta objectividade
nas investigações científicas; a necessidade de colaborar com
os outros nas equipas técnicas; o sentido de solidariedade
internacional; a consciência cada vez mais nítida da
responsabilidade que os sábios têm de ajudar e até de proteger
os homens; a vontade de tornar as condições de vida melhores
para todos e especialmente para aqueles que sofrem da privação
de responsabilidade ou de pobreza cultural. Tudo isto pode
constituir uma certa preparação para a recepção da mensagem
evangélica, preparação que pode ser informada com a caridade
divina por Aquele que veio para salvar o mundo.
A mensagem de Cristo e a
cultura humana
58. Múltiplos
laços existem entre a mensagem da salvação e a cultura humana.
Deus, com efeito, revelando-se ao seu povo até à plena
manifestação de Si mesmo no Filho encarnado, falou segundo a
cultura própria de cada época.
Do mesmo modo,
a Igreja, vivendo no decurso dos tempos em diversos
condicionalismos, empregou os recursos das diversas culturas
para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo, para
a explicar, investigar e penetrar mais profundamente e para
lhe dar melhor expressão na celebração da Liturgia e na vida
da multiforme comunidade dos fiéis.
Mas, por outro
lado, tendo sido enviada aos homens de todos os tempos e
lugares, a Igreja não está exclusiva e indissolùvelmente
ligada . a nenhuma raça ou nação, a nenhum género de vida
particular, a nenhuma tradição, antiga ou moderna. Aderindo à
própria tradição e, ao mesmo tempo, consciente da sua missão
universal, é capaz de entrar em comunicação com as diversas
formas de cultura, com o que se enriquecem tanto a própria
Igreja como essas várias culturas.
O Evangelho de
Cristo renova continuamente a vida e cultura do homem decaído,
e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente
sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os
costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os
tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de
todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e
restaura-os em Cristo (6). Deste modo, a Igreja, só com
realizar a própria missão (7), já com isso mesmo estimula e
ajuda a civilização, e com a sua actividade, incluindo a
litúrgica, educa a interior liberdade do homem.
Harmonia
entre as diversas ordens humanas e culturais
59. Pelas
razões aduzidas, a Igreja lembra a todos que a cultura deve
orientar-se para a perfeição integral da pessoa humana, para o
bem da comunidade e de toda a sociedade. Por isso, é
necessário cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a.
capacidade de admirar, de intuir, de contemplar, de formar um
juizo pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e
social.
Pois a cultura,
uma vez que deriva imediatamente da natureza racional e social
do homem, tem uma constante necessidade de justa liberdade e
de legítima autonomia, de agir segundo os seus próprios
princípios para se desenvolver. Com razão, pois, exige ser
respeitada e goza duma certa inviolabilidade, salvaguardados,
evidentemente, os direitos da pessoa e da comunidade,
particular ou universal, dentro dos limites do bem comum.
O sagrado
Concílio, recordando o que ensinou o primeiro Concílio do
Vaticano, declara que existem «duas ordens de conhecimento»
distintas, a da fé e a da razão, e que a Igreja de modo algum
proíbe que «as artes e disciplinas humanas usem de princípios
e métodos próprios nos seus campos respectivos»; «reconhecendo
esta justa liberdade», afirma por isso a legítima autonomia da
cultura humana e sobretudo das ciências (8).
Tudo isto
requer também que, salvaguardados a ordem moral e o bem comum,
o homem possa investigar livremente a verdade, expor e
divulgar a sua opinião e dedicar-se a qualquer arte; isto
postula, finalmente, que seja informado com verdade dos
acontecimentos públicos (9).
À autoridade
pública pertence, não determinar o carácter próprio das formas
de cultura mas favorecer as condições e as ajudas necessárias
para o desenvolvimento cultural de todos, mesmo das minorias
de alguma nação (10). Deve, por isso, insistir-se, antes de
mais, para que a cultura, desviando-se do seu fim, não seja
obrigada a servir as forças políticas ou económicas.
Secção 3
ALGUNS DEVERES MAIS URGENTES DOS CRISTÃOS
COM RELAÇÃO À CULTURA
Reconhecimento do direito
do homem à cultura
60. Dado que
hoje há a possibilidade de libertar muitos homens da miséria
da ignorância, é dever muito próprio do nosso tempo,
principalmente para os cristãos, trabalhar enèrgicamente para
que, tanto no campo económico como no político, no nacional
como no internacional, se estabeleçam os princípios
fundamentais segundo os quais se reconheça e se actue em toda
a parte efectivamente o direito de todos à cultura
correspondente à dignidade humana, sem discriminação de raça,
sexo, nação, religião ou situação social. Pelo que a todos se
deve suficiente abundância dos bens culturais, sobretudo
daqueles que constituem a chamada educação de base, a fim de
que muitos, por causa do analfabetismo e da privação duma
actividade responsável, não se vejam impedidos de contribuir
para o bem comum de modo verdadeiramente humano.
Deve tender-se,
portanto, para que todos os que são disso capazes tenham a
possibilidade de seguir estudos superiores; de modo que subam
na sociedade às funções, cargos e serviços correspondentes às
próprias aptidões ou à competência que adquirirem (11). Deste
modo, todos os homens e todos os agrupamentos sociais poderão
chegar ao pleno desenvolvimento da sua vida cultural, segundo
as qualidades e tradições próprias de cada um.
É preciso, além
disso, trabalhar muito para que todos tomem consciência, não
só do direito à cultura, mas também do dever que têm de se
cultivar e de ajudar os outros nesse campo. Existem, com
efeito, por vezes, condições de vida e de trabalho que impedem
as aspirações culturais dos povos e destroem neles o desejo da
cultura. Isto vale especialmente para os camponeses e
trabalhadores, aos quais se devem proporcionar condições de
trabalho tais que não impeçam mas antes ajudem a sua cultura
humana. As mulheres trabalham já em quase todos os sectores de
actividade; mas convém que possam exercer plenamente a sua
participação, segundo a própria índole. Será um dever para
todos reconhecer e fomentar a necessária e específica
participação das mulheres na vida cultural.
Educação
cultural integral do homem
61. É mais
difícil hoje do que outrora fazer uma síntese dos vários ramos
do saber e das artes. Porque ao mesmo tempo que aumenta a
multidão e diversidade dos elementos que constituem a cultura,
diminui para cada homem a possibilidade de os compreender e
organizar; a figura do «homem universal» desaparece assim cada
vez mais. No entanto, cada homem continua a ter o dever de
salvaguardar a integridade da pessoa humana, na qual
sobressaem os valores da inteligência, da vontade, da
consciência e da fraternidade, valores que se fundam em Deus
Criador e por Cristo foram admiràvelmente restaurados e
elevados.
A família é,
prioritariamente, como que a mãe e a fonte da educação: nela,
os filhos, rodeados de amor, aprendem mais facilmente a recta
ordem das coisas, enquanto que as formas aprovadas da cultura
vão penetrando como que naturalmente na alma dos adolescentes,
à medida que vão crescendo.
Para esta mesma
educação existem nas sociedades hodiernas, sobretudo graças à
crescente difusão de livros e aos novos meios de comunicação
cultural e social, possibilidades que podem favorecer a
universalização da cultura. Com efeito, com a diminuição
generalizada do tempo de trabalho, crescem progressivamente
para muitos homens as facilidades para tal. Os tempos livres
sejam bem empregados, para descanso do espírito e saúde da
alma e do corpo, ora com actividades e estudos livremente
escolhidos, ora com viagens a outras regiões (turismo), com as
quais sé educa o espírito e os homens se enriquecem com o
conhecimento mútuo, ora também com exercícios e manifestações
desportivas, que contribuem para manter o equilíbrio psíquico,
mesmo na comunidade, e para estabelecer relações fraternas
entre os homens de todas as condições e nações, ou de raças
diversas . Colaborem, portanto, os cristãos, a fim de que as
manifestações e actividades culturais colectivas,
características do nosso tempo, sejam penetradas de espírito
humano e cristão.
Mas todas estas
vantagens não conseguirão levar o homem à educação cultural
integral se, ao mesmo tempo, não se tiver o cuidado de
investigar o significado profundo da cultura e da ciência para
a pessoa humana.
Harmonia entre a cultura
humana e a formação cristã
62. Ainda que a
Igreja muito tem contribuído para o progresso cultural,
mostra, contudo, a experiência que, devido a causas
contingentes, a harmonia da cultura com a doutrina nem sempre
se realiza sem dificuldades.
Tais
dificuldades não são necessariamente danosas para a vida da
fé; antes, podem levar o espírito a uma compreensão mais
exacta e mais profunda da mesma fé. Efectivamente, as recentes
investigações e descobertas das ciências, da história e da
filosofia, levantam novos problemas, que implicam
consequências também para a vida e exigem dos teólogos novos
estudos. Além disso, os teólogos são convidados a buscar
constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias
do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar
a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o
depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo como elas se
enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado
(12). Na actividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se
suficientemente, não apenas os princípios teológicos, mas
também os dados das ciências profanas, principalmente da
psicologia e sociologia, para que assim os fiéis sejam
conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta.
A literatura e
as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria, de
grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar
expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à
experiência das suas tentativas para conhecer-se e
aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a
sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas
misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um
futuro melhor. Conseguem assim elevar a vida humana, que
exprimem sob muito diferentes formas, segundo os tempos e
lugares.
Por
conseguinte, deve trabalhar-se por que os artistas se sintam
compreendidos, na sua actividade, pela Igreja e que, gozando
duma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de
contactos com a comunidade cristã. A Igreja deve também
reconhecer as novas formas artísticas, que segundo o génio
próprio das várias nações e regiões se adaptam às exigências
dos nossos contemporâneos. Sejam admitidas nos templos quando,
com linguagem conveniente e conforme às exigências litúrgicas,
levantam o espírito a Deus (13).
Deste modo, o
conhecimento de Deus é mais perfeitamente manifestado; a
pregação evangélica torna-se mais compreensível ao espírito
dos homens e aparece como integrada nas suas condições normais
de vida.
Vivam, pois, os
fiéis em estreita união com os demais homens do seu tempo e
procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e
sentir, qual se exprime pela cultura. Saibam conciliar os
conhecimentos das novas ciências e doutrinas e últimas
descobertas com os costumes e doutrina cristã, a fim de que a
prática religiosa e a rectidão moral acompanhem neles o
conhecimento científico e o progresso técnico e sejam capazes
de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico
sentido cristão.
Os que se
dedicam às ciências teológicas nos Seminários e Universidades,
procurem colaborar com os especialistas doutros ramos do
saber, pondo em comum trabalhos e conhecimentos. A
investigação teológica deve simultâneamente procurar um
profundo conhecimento da verdade revelada e não descurar a
ligação com o seu tempo, para que assim possa ajudar os homens
formados nas diversas matérias a alcançar um conhecimento mais
completo da fé. Esta colaboração ajudará muitíssimo a formação
dos ministros sagrados. Estes poderão assim expor de maneira
mais adequada aos homens do nosso tempo a doutrina da Igreja
acerca de Deus, do homem e do mundo; e a sua palavra por eles
melhor acolhida (14). É, mesmo de desejar que muitos leigos
adquiram uma conveniente formação nas disciplinas sagradas e
que muitos deles se consagrem expressamente a cultivar e
aprofundar estes estudos. E para que possam desempenhar bem a
sua tarefa, deve reconhecer-se aos fiéis, clérigos ou leigos,
uma justa liberdade de investigação, de pensamento e de
expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza, nos
domínios da sua competência (15).
CAPÍTULO III
A VIDA ECONÓMICO-SOCIAL
Alguns aspectos da vida
económica actual
63. Também na
vida económica e social se devem respeitar e promover a
dignidade e a vocação integral da pessoa humana e o bem de
toda a sociedade. Com efeito, o homem é o protagonista, o
centro e o fim de toda a vida económico-social.
A economia
actual, de modo semelhante ao que sucede noutros campos da
vida social, é caracterizada por um crescente domínio do homem
sobre a natureza, pela multiplicação e intensificação das
relações e mútua dependência entre os cidadãos, grupos e
nações e, finalmente, por mais frequentes intervenções do
poder político. Ao mesmo tempo, o progresso das técnicas de
produção e do intercâmbio de bens e serviços fizeram da
economia um instrumento capaz de prover mais satisfatòriamente
às acrescidas necessidades da família humana.
Mas não faltam
motivos de inquietação. Não poucos homens, com efeito,
sobretudo nos países econòmicamente desenvolvidos, parecem
dominados pela realidade económica; toda a sua vida está
penetrada por um certo espírito economístico tanto nas nações
favoráveis à economia colectiva como nas outras. No preciso
momento em que o progresso da vida económica permite mitigar
as desigualdades sociais, se for dirigido e organizado de modo
racional e humano, vemo-lo muitas vezes levar ao agravamento
das mesmas desigualdades e até em algumas partes a uma
regressão dos socialmente débeis e ao desprezo dos pobres.
Enquanto multidões imensas carecem ainda do estritamente
necessário, alguns, mesmo nas regiões menos desenvolvidas,
vivem na opulência e na dissipação. Coexistem o luxo e a
miséria. Enquanto um pequeno número dispõe dum grande poder de
decisão, muitos estão quase inteiramente privados da
possibilidade de agir por própria iniciativa e
responsabilidade, e vivem e trabalham em condições indignas da
pessoa humana.
Semelhantes
desequilíbrios se verificam tanto entre a agricultura, a
indústria e os serviços como entre as diferentes regiões do
mesmo país. A oposição entre as econòmicamente mais
desenvolvidas e as outras torna-se cada vez mais grave e pode
pôr em risco a própria paz mundial.
Os nossos
contemporâneos têm uma consciência cada vez mais viva destas
desigualdades, pois estão convencidos de que as maiores
possibilidades técnicas e económicas de que disfruta o mundo
actual podem e devem corrigir este funesto estado de coisas.
Mas, para tanto, requerem-se muitas reformas na vida
económico-social. e uma mudança de mentalidade e de hábitos
por parte de todos. Com esse fim, a Igreja, no decurso dos
séculos e sobretudo nos últimos tempos, formulou e proclamou à
luz do Evangelho os princípios de justiça e equidade,
postulados pela recta razão tanto na vida individual e social
como na internacional. O sagrado Concílio quer confirmar estes
princípios, tendo em conta as condições actuais e dar algumas
orientações, tendo presentes antes de mais as exigências do
progresso económico(1).
Secção I
O DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO
Desenvolvimento económico ao serviço do homem
64. Hoje, mais
do que nunca, para fazer frente ao aumento populacional e
satisfazer às crescentes aspirações do género humano, com
razão se faz um esforço por aumentar a produção agrícola e
industrial e a prestação de serviços. Deve, por isso,
favorecer-se o progresso técnico, o espírito de inventiva, a
criação e ampliação dos empreendimentos, a adaptação dos
métodos e os esforços valorosos de todos os que participam na
produção; numa palavra, todos os factores que contribuem para
tal desenvolvimento. Mas a finalidade fundamental da produção
não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poderio,
mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em
conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências
da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de
qualquer homem ou grupo de homens, de qualquer raça ou região
do mundo. A actividade económica, regulando-se pelos métodos e
leis próprias, deve, portanto, exercer-se dentro dos limites
da ordem moral (2), para que assim se cumpra o desígnio de
Deus sobre o homem (3).
O
controle do desenvolvimento económico
65. O
desenvolvimento económico deve permanecer sob a direcção do
homem; nem se deve deixar entregue só ao arbítrio de alguns
poucos indivíduos ou grupos economicamente mais fortes ou só
da comunidade política ou de algumas nações mais poderosas.
Pelo contrário, é necessário que, em todos os níveis, tenha
parte na sua direcção o maior número possível de homens, ou
todas as nações, se se trata de relações internacionais. De
igual modo, é necessário que as iniciativas dos indivíduos e
das associações livres sejam coordenadas e organizadas
harmónicamente com a actividade dos poderes públicos.
O
desenvolvimento não se deve abandonar ao simples curso quase
mecânico da actividade económica, ou à autoridade pública
sómente. Devem, por isso, denunciar-se como erróneas tanto as
doutrinas que, a pretexto duma falsa liberdade, se opõem às
necessárias reformas, como as que sacrificam os direitos
fundamentais dos indivíduos e das associações à organização
colectiva da produção (4).
Lembrem-se, de
resto, os cidadãos, ser direito e dever seu, que o poder civil
deve reconhecer, contribuir, na medida das próprias
possibilidades, para o verdadeiro desenvolvimento da sua
comunidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos
desenvolvidas, onde é urgente o emprego de todos os recursos
disponíveis, fazem correr grave risco ao bem comum todos
aqueles que conservam improdutivas as suas riquezas ou, salvo
o direito pessoal de emigração, privam a própria comunidade
dos meios materiais ou espirituais de que necessita.
A remoção
das desigualdades económico-sociais
66. Para
satisfazer às exigências da justiça e da equidade, é
necessário esforçar-se enérgicamente para que, respeitando os
direitos das pessoas e a índole própria de cada povo, se
eliminem o mais depressa possível as grandes e por vezes
crescentes desigualdades económicas actualmente existentes,
acompanhadas da discriminação individual e social. De igual
modo, tendo em conta as especiais dificuldades da agricultura
em muitas regiões, quer na produção quer na comercialização
dos produtos, é preciso ajudar os agricultores no aumento e
venda da produção, na introdução das necessárias
transformações e inovações e na obtenção dum justo rendimento;
para que não continuem a ser, como muitas vezes acontece,
cidadãos de segunda categoria. Quanto aos agricultores,
sobretudo os jovens, dediquem-se com empenho a desenvolver a
própria competência profissional, sem a qual é impossível o
progresso da agricultura (5).
É também
exigência da justiça e da equidade que a mobilidade,
necessária para o progresso económico, seja regulada de tal
maneira que a vida dos indivíduos e das famílias não se torne
insegura e precária. Deve, portanto, evitar-se cuidadosamente
toda e qualquer espécie de discriminação quanto às condições
de remuneração ou de trabalho com relação aos trabalhadores
oriundos de outro país ou região, que contribuem com o seu
trabalho para o desenvolvimento económico da nação ou da
província. Além disso, todos, e antes de mais os poderes
públicos, devem tratá-los como pessoas, e não como simples
instrumentos de produção, ajudá-los para que possam trazer
para junto de si a própria família e arranjar conveniente
habitação, e favorecer a sua integração na vida social do povo
ou da região que os acolhe. Todavia, na medida do possível,
criem-se fontes de trabalho nas suas próprias regiões.
Nas economias
hoje em transformação, bem-como nas novas formas de sociedade
industrial, nas quais, por exemplo, a automação se vai
impondo, deve ter-se o cuidado de que se proporcione a cada um
trabalho suficiente e adaptado, juntamente com a possibilidade
duma conveniente formação técnica e profissional; e
garantam-se o sustento e a dignidade humana sobretudo àqueles
que, por causa de doença ou de idade, têm maiores
dificuldades.
Secção 2
ALGUNS PRINCÍPIOS ORIENTADORES
DE TODA A VIDA ECONÓMICO-SOCIAL
Trabalho, condições de
trabalho, descanso
67. O trabalho
humano, que se exerce na produção e na troca dos bens
económicos e na prestação de serviços, sobreleva aos demais
factores da vida económica, que apenas têm valor de
instrumentos.
Este trabalho,
empreendido por conta própria ou ao serviço de outrem, procede
imediatamente da pessoa, a qual como que marca com o seu zelo
as coisas da natureza, e as sujeita ao seu domínio. É com o
seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida
e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos,
pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no
acabamento da criação divina. Mais ainda: sabemos que,
oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra
redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade
sublime, trabalhando com as suas próprias mãos em Nazaré. Daí
nasce para cada um o dever de trabalhar fielmente, e também o
direito ao trabalho; à sociedade cabe, por sua parte, ajudar
em quanto possa, segundo as circunstâncias vigentes, os
cidadãos para que possam encontrar oportunidade de trabalho
suficiente. Finalmente, tendo em conta as funções e
produtividade de cada um, bem como a situação da empresa e o
bem comum, o trabalho deve ser remunerado de maneira a dar ao
homem a possibilidade de cultivar dignamente a própria vida
material, social, cultural e espiritual e a dos seus (6).
Dado que a
actividade económica é, na maior parte dos casos, fruto do
trabalho associado dos homens, é injusto e desumano
organizá-la e dispô-la de tal modo que isso resulte em
prejuízo para qualquer dos que trabalham.
Ora, é
demasiado frequente, mesmo em nossos dias, que os
trabalhadores estão de algum modo escravizados à própria
actividade. Isto não encontra justificação alguma nas
pretensas leis económicas. É preciso, portanto, adaptar todo o
processo do trabalho produtivo às necessidades da pessoa e às
formas de vida; primeiro que tudo da doméstica, especialmente
no que se refere às mães, e tendo sempre em conta o sexo e a
idade. Proporcione-se, além disso, aos trabalhadores a
possibilidade de desenvolver, na execução do próprio trabalho,
as suas qualidades e personalidade. Ao mesmo tempo que aplicam
responsàvelmente a esta execução o seu tempo e forças, gozem,
porém, todos de suficiente descanso e tempo livre para atender
à vida familiar, cultural, social e religiosa. Tenham mesmo
oportunidade de desenvolver livremente as energias e
capacidades que talvez pouco possam exercitar no seu trabalho
profissional.
Participação na empresa e
no conjunto da economia.
Conflitos de trabalho
68. Nas
empresas económicas, são pessoas as que se associam, isto é
homens livres e autónomos, criados à imagem de Deus. Por isso,
tendo em conta as funções de cada um -proprietários,
empresários, dirigentes ou operários - e salva a necessária
unidade de direcção, promova-se, segundo modalidades a
determinar convenientemente, a participação activa de todos na
gestão das empresas (7). E dado que frequentemente não é ao
nível da empresa mas num mais alto de instituições superiores
que se tomam as decisões económicas e sociais de que depende o
futuro dos trabalhadores e de seus filhos, eles devem
participar também no estabelecimento dessas decisões, por si
ou por delegados livremente eleitos.
Entre os
direitos fundamentais da pessoa humana deve contar-se o de os
trabalhadores criarem livremente associações que os possam
representar autênticamente e contribuir para a recta ordenação
da vida económica; e ainda o direito de participar,
livremente, sem risco de represálias, na actividade das
mesmas. Graças a esta ordenada participação, junta com uma
progressiva formação económica e social, aumentará cada vez
mais em todos a consciência da própria função e dever; ela os
levará a sentirem-se associados, segundo as próprias
possibilidades e aptidões, a todo o trabalho de
desenvolvimento económico e social e à realização do bem comum
universal.
Quando, porém,
surgem conflitos económico-sociais, devem fazer-se esforços
para que se chegue a uma solução pacífica dos mesmos. Mas
ainda que, antes de mais, se deva recorrer ao sincero diálogo
entre as partes, toda via, a greve pode ainda constituir,
mesmo nas actuais circunstâncias, um meio necessário, embora
extremo, para defender os próprios direitos e alcançar as
justas reivindicações dos trabalhadores. Mas procure-se
retomar o mais depressa possível o caminho da negociação e do
diálogo da conciliação.
Os bens
da terra, destinados a todos
69. Deus
destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos
os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar
equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada
pela caridade (8). Sejam quais forem as formas de propriedade,
conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as
diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a
este destino universal dos bens. Por esta razão, quem usa
desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que
legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns,
no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos
outros (9). De resto, todos têm o direito de ter uma parte de
bens suficientes para si e suas famílias. Assim pensaram os
Padres e Doutores da Igreja, ensinando que os homens têm
obrigação de auxiliar os pobres e não apenas com os bens
supérfluos (10). Aquele, porém, que se encontra em extrema
necessidade, tem direito de tomar, dos bens dos outros, o que
necessita (11). Sendo tão numerosos os que no mundo padecem
fome, o sagrado Concílio insiste com todos, indivíduos e
autoridades, para que, recordados daquela palavra dos Padres -
«alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentaste,
mataste-o» (12) - repartam realmente e distribuam os seus
bens, procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos
daqueles auxílios que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se
a si mesmos.
Nas sociedades
económicamente menos desenvolvidas, o destino comum dos bens é
frequentes vezes parcialmente atendido graças a costumes e
tradições próprias da comunidade, que asseguram a cada membro
os bens indis pensáveis. Mas deve evitar-se considerar certos
costumes como absolutamente imutáveis, se já não correspondem
às exigências do tempo actual; por outro lado, não se proceda
imprudentemente contra os costumes honestos, que, uma vez
convenientemente adaptados às circunstâncias actuais,
continuam a ser muito úteis. De modo análogo, nas nações muito
desenvolvidas económicamente, um conjunto de instituições
sociais de previdência e seguro pode constituir uma realidade
parcial do destino comum dos bens. Deve prosseguir-se o
desenvolvimento dos serviços familiares e sociais, sobretudo
daqueles que atendem à cultura e educação. Na organização de
todas estas instituições, porém, deve atender-se a que os
cidadãos não sejam levados a uma certa passividade com relação
à sociedade ou à irresponsabilidade e recusa de serviço.
Inversões e política
monetária
70. Os
investimentos, por sua parte, devem tender a assegurar
suficientes empregos e rendimentos, tanto para a população
actual como para a de amanhã. Todos os que decidem destes
investimentos e da organização da vida económica - indivíduos,
grupos ou poderes públicos - devem ter presentes estes fins e
reconhecer a grave obrigação que têm de vigiar para que
assegurem os requisitos necessários a uma vida digna dos
indivíduos e de toda a comunidade; e, ainda, de prever o
futuro e garantir um são equilíbrio entre as necessidades do
consumo hodierno, individual e colectivo, e as exigências de
investimentos para a geração futura. Tenham-se sempre também
em conta as necessidades urgentes das nações ou regiões
económicamente menos desenvolvidas. Em matéria de política
monetária, evite-se prejudicar o bem quer da própria nação
quer das outras. E tomem-se providências para que os
económicamente débeis não sofram injusto prejuízo com a
desvalorização da moeda.
Acesso à
propriedade e domínio privado. Problemas dos latifúndios
71. Dado que a
propriedade e as outras formas de domínio privado dos bens
externos contribuem para a expressão da pessoa e lhe dão
ocasião de exercer a própria função na sociedade e na
economia, é de grande importância que se fomente o acesso dos
indivíduos e grupos a um certo domínio desses bens.
A propriedade
privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a
cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e
familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da
liberdade humana. Finalmente, como estimulam o exercício da
responsabilidade, constituem uma das condições das liberdades
civis (13).
As formas desse
domínio ou propriedade são actualmente variadas e cada dia se
diversificam mais. Mas todas continuam a ser, apesar dos
fundos sociais e dos direitos e serviços assegurados pela
sociedade, um factor não desprezível de segurança. O que se
deve dizer não só dos bens materiais, mas também dos
imateriais, como é a capacidade profissional.
No entanto, o
direito à propriedade privada não é incompatível com as várias
formas legítimas de direito de propriedade pública. Quanto à
apropriação pública dos bens, ela só pode ser levada a cabo
pela legítima autoridade, segundo as exigências e dentro dos
limites do bem comum, e mediante uma compensação equitativa.
Compete, além disso, à autoridade pública impedir o abuso da
propriedade privada em detrimento do bem comum (14).
De resto, a
mesma propriedade privada é de índole social, fundada na lei
do destino comum dos bens (15). O desprezo deste carácter
social foi muitas vezes ocasião de cobiças e de graves
desordens, chegando mesmo a fornecer um pretexto para os que
contestam esse próprio direito.
Em bastantes
regiões económicamente pouco desenvolvidas, existem grandes e
até vastíssimas propriedades rústicas, fracamente cultivadas
ou até deixadas totalmente incultas com intentos lucrativos,
enquanto a maior parte do povo não tem terras ou apenas possui
pequenos campos e, por outro lado, o aumento da produção
agrícola apresenta um evidente carácter de urgência. Não raro,
os que são contratados a trabalhar pelos proprietários ou
exploram, em regime de arrendamento, uma parte das
propriedades, apenas recebem um salário ou um rendimento
indigno de um homem, carecem de habitação decente e são
explorados pelos intermediários. Desprovidos de qualquer
segurança, vivem num tal regime de dependência pessoal que
perdem quase por completo a capacidade de iniciativa e
responsabilidade e lhes está vedada toda e qualquer promoção
cultural ou participação na vida social e política. Impõem-se,
portanto, reformas necessárias, segundo os vários casos: para
aumentar os rendimentos, corrigir as condições de trabalho,
reforçar a segurança do emprego, estimular a iniciativa e,
mesmo, para distribuir terras não suficientemente cultivadas
àqueles que as possam tornar produtivas. Neste último caso,
devem assegurar-se os bens e meios necessários, sobretudo de
educação e possibilidades duma adequada organização
cooperativa. Sempre, porém, que o bem comum exigir a
expropriação, a compensação deve ser equitativamente
calculada, tendo em conta todas as circunstâncias.
A
actividade económico-social e o reino de Cristo
72. Os cristãos
que desempenham parte activa no actual desenvolvimento
económico-social e lutam pela justiça e pela caridade, estejam
convencidos de que podem contribuir muito para o bem da
humanidade e paz dó mundo. Em todas estas actividades, quer
sòzinhos quer associados, sejam exemplo para todos. Adquirindo
a competência e experiência absolutamente indispensáveis,
respeitem a devida hierarquia entre as actividades terrenas,
fiéis a Cristo e ao seu Evangelho, de maneira que toda a sua
vida, tanto individual como social, seja penetrada do espírito
das bem-aventuranças, e especialmente do espírito de pobreza.
Todo aquele que, obedecendo a Cristo, busca primeiramente o
reino de Deus, recebe daí um amor mais forte e mais puro, para
ajudar os seus irmãos e realizar, sob o impulso da caridade, a
obra da justiça (16).
CAPÍTULO IV
A VIDA DA COMUNIDADE POLÍTICA
A vida
política actual
73. Profundas
transformações se verificam nos nossos dias também nas
estruturas e instituições dos povos, em consequência da sua
evolução cultural, económica e social; pois todas estas
transformações têm uma grande influência na vida da comunidade
política, especialmente no que se refere aos direitos e
deveres de cada um no exercício da liberdade cívica, na
promoção do bem comum e na estruturação das relações dos
cidadãos entre si e com o poder público.
A consciência
mais sentida da dignidade humana dá origem em diversas regiões
do mundo ao desejo de instaurar uma ordem político-jurídica em
que os direitos da pessoa na vida pública sejam melhor
assegurados, tais como os direitos de livre reunião e
associação, de expressão das próprias opiniões e de profissão
privada e pública da religião. A salvaguarda dos direitos da
pessoa é, com efeito, uma condição necessária para que os
cidadãos, quer individualmente quer em grupo, possam
participar activamente na vida e gestão da coisa pública.
Paralelamente
com o progresso cultural, económico e social, cresce em muitos
o desejo de tomar maior parte na organização da comunidade
política. Aumenta na consciência de muitos o empenho em
assegurar os direitos das minorias, sem esquecer de resto os
seus deveres para com a comunidade política; cresce, além
disso, cada dia o respeito pelos homens que professam uma
opinião ou religião diferente; e estabelece-se ao mesmo tempo
uma colaboração mais ampla, a fim de que todos os cidadãos, e
não apenas alguns privilegiados, possam gozar realmente dós
direitos da pessoa.
Condenam-se,
pelo contrário, todas as formas políticas, existentes em
algumas regiões, que impedem a liberdade civil ou religiosa,
multiplicam as vítimas das paixões e dos crimes políticos e
desviam do bem comum o exercício da autoridade, em benefício
de alguma facção ou dos próprios governantes.
Para
estabelecer uma vida política verdadeiramente humana, nada
melhor do que fomentar sentimentos interiores de justiça e
benevolência e serviço do bem comum e reforçar as convicções
fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade
política, bem como do fim, recto exercício e limites da
autoridade.
Natureza e fim da
comunidade política
74. Os
indivíduos, as famílias e os diferentes grupos que constituem
a sociedade civil, têm consciência da própria insuficiência
para realizar uma vida plenamente humana e percebem a
necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual todos
conjuguem diàriamente as próprias forças para cada vez melhor
promoverem o bem comum (1). E por esta razão constituem,
segundo diversas formas, a comunidade política. A comunidade
política existe, portanto, em vista do bem comum; nele
encontra a sua completa justificação e significado e dele
deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum,
ele compreende o conjunto das condições de vida social que
permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais
plena e fàcilmente a própria perfeição (2).
Porém, os
homens que se reunem na comunidade política são muitos e
diferentes, e podem legitimamente divergir de opinião. E
assim, para impedir que a comunidade política se desagregue ao
seguir cada um o próprio parecer, requere-se uma autoridade
que faça convergir para o bem comum as energias de todos os
cidadãos; não duma maneira mecânica ou despótica, mas
sobretudo como força moral, que se apoia na liberdade e na
consciência do próprio dever e sentido de responsabilidade.
Resulta,
portanto, claro que a comunidade política e a autoridade
pública se fundam na natureza humana e que, por conseguinte,
pertencem à ordem estabelecida por Deus, embora a determinação
do regime político e a designação dos governantes se deixem à
livre vontade dos cidadãos (3).
Segue-se também
que o exercício da autoridade política, seja na comunidade
como tal, seja nos organismos representativos, se deve sempre
desenvolver e actuar dentro dos limites da ordem. moral, em
vista do bem comum, dinâmicamente concebido, de acordo com a
ordem jurídica legitimamente estabelecida ou a estabelecer.
Nestas condições, os cidadãos têm obrigação moral de obedecer
(4). Daqui a responsabilidade, dignidade e importância dos que
governam.
Mas quando a
autoridade pública, excedendo os limites da própria
competência, oprime os cidadãos, estes não se recusem às
exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro
dos limites traçados pela lei natural e pelo Evangelho,
defender os próprios direitos e os dos seus concidadãos,
contra o abuso desta autoridade.
Os modos
concretos como a comunidade política organiza a própria
estrutura e o equilíbrio dos poderes públicos, podem variar,
segundo a diferente índole e o progresso histórico dos povos;
mas devem sempre ordenar-se à formação de homens cultos,
pacíficos e benévolos para com todos, em proveito de toda a
família humana.
A
colaboração de todos na vida política
75. É
plenamente conforme com a natureza do homem que se encontrem
estruturas jurídico-políticas nas quais todos os cidadãos
tenham a possibilidade efectiva de participar livre e
activamente, dum modo cada vez mais perfeito e sem qualquer
discriminação, tanto no estabelecimento das bases jurídicas da
comunidade política, como na gestão da coisa pública e na
determinação do campo e fim das várias instituições e na
escolha dos governantes (5). Todos os cidadãos se lembrem,
portanto, do direito e simultâneamente
do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da
promoção do bem comum. A Igreja louva e aprecia o trabalho de
quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de
tal cargo, em serviço dos homens.
Para que a cooperação
responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida
pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem
jurídica positiva, que estabeleça convenientemente divisão das
funções .e dos orgãos da autoridade pública e ao mesmo tempo
protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem
quer que seja. Juntamente com os deveres a que todos os
cidadãos estão obrigados, sejam reconhecidos, assegurados e
fomentados s os direitos das pessoas, famílias e grupos
sociais, bem como o exercício dos mesmos. Entre aqueles, é
preciso recordar o dever de prestar à nação os serviços
materiais e pessoais que são requeridos pelo bem comum. Os
governantes tenham o cuidado de não impedir as associações
familiares, sociais ou culturais e os corpos ou organismos
intermédios, nem os privem da sua actividade legítima e
eficaz; pelo contrário, procurem de bom grado promovê-la
ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individual
quer associativamente, conceder à autoridade um poder
excessivo, nem lhe peçam, de modo inoportuno, demasiadas
vantagens e facilidades, de modo a que se diminua a
responsabilidade das pessoas, famílias e grupos sociais.
A crescente complexidade das
actuais circunstâncias força com frequência o poder público a
intervir nos assuntos sociais, económicos e culturais, com o
fim de introduzir condições mais favoráveis em que os cidadãos
e grupos possam livremente e com mais eficácia promover o bem
humano integral. As relações entre a socialização (6) e a
autonomia e desenvolvimento pessoais podem conceber-se
diferentemente, conforme a diversidade das regiões e o grau de
desenvolvimento dos povos. Mas quando, por exigência do bem
comum, se limitar temporariamente o exercício dos direitos,
restabeleça-se quanto antes a liberdade, logo que mudem as
circunstâncias. É, porém, desumano que a autoridade política
assuma formas totalitárias ou ditatoriais, que lesam os
direitos das pessoas ou dos grupos sociais.
Os cidadãos cultivem com
magnanimidade e lealdade o amor da pátria, mas sem estreiteza
de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, tenham sempre
presente o bem de toda a família humana, que resulta das
várias ligações entre as raças, povos e nações.
Todos os cristãos tenham
consciência da sua vocação especial e própria na comunidade
política; por ela são obrigados a dar exemplo de sentida
responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de maneira a
mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e
a liberdade, a iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro
corpo social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade.
Reconheçam as legítimas opiniões, divergentes entre si, acerca
da organização da ordem temporal, e respeitem os cidadãos e
grupos que as defendem honestamente. Os partidos políticos
devem promover o que julgam ser exigido pelo bem comum, sem
que jamais seja lícito antepor o próprio interesse ao bem
comum.
Deve atender-se cuidadosamente
à educação cívica e política, hoje tão necessária à população
e sobretudo aos jovens, para que todos os cidadãos possam
participar na vida da comunidade política. Os que são ou podem
tornar-se aptos para exercer a difícil e muito nobre (7) arte
da política, preparem-se para ela; e procurem exercê-la sem
pensar no interesse próprio ou em vantagens materiais.
Procedam com inteireza e prudência contra a injustiça e a
opressão, contra o arbitrário domínio de uma pessoa ou de um
partido, e contra a intolerância. E dediquem-se com
sinceridade e equidade, mais ainda, com caridade e fortaleza
política, ao bem de todos.
A comunidade política e a
Igreja
76. E de grande importância,
sobretudo onde existe uma sociedade pluralística, que se tenha
uma concepção exacta das relações entre a comunidade política
e a Igreja, e, ainda, que se distingam claramente as
actividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo,
desempenham em próprio nome como cidadãos guiados pela sua
consciência de cristãos, e aquelas que exercitam em nome da
Igreja e em união com os seus pastores.
A Igreja que, em razão da sua
missão e competência, de modo algum se confunde com a
sociedade nem está ligada a qualquer sistema político
determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da
transcendência da pessoa humana.
No domínio próprio de cada uma,
comunidade política e Igreja são independentes e autónomas.
Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação
pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente
exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor
cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em
conta as circunstâncias de lugar e tempo. Porque o homem não
se limita à ordem temporal sòmente; vivendo na história
humana, fundada sobre o amor do Redentor, ela contribui para
que se difundam mais amplamente, nas nações e entre as nações,
a justiça e a caridade. Pregando a verdade evangélica e
iluminando com a sua doutrina e o testemunho dos cristãos
todos os campos da actividade humana, ela respeita e promove
também a liberdade e responsabilidade política dos cidadãos.
Os Apóstolos e os sucessores
dos mesmos, com os seus cooperadores, enviados para anunciar
aos homens Cristo, salvador do mundo, têm por sustentáculo do
seu apostolado o poder de Deus, o qual muitas vezes manifesta
a força do Evangelho na fraqueza das suas testemunhas. É
preciso, pois, que todos os que se consagram ao ministério da
palavra de Deus utilizem os caminhos e meios próprios do
Evangelho, tantas vezes diferentes dos meios da cidade
terrena.
É certo que as coisas terrenas
e as que, na condição humana, transcendem este mundo, se
encontram intimamente ligadas; a própria Igreja usa das
coisas temporais, na medida em
que a sua missão o exige. Mas ela não coloca a sua esperança
nos privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais
ainda, ela renunciará ao exercício de alguns direitos
legitimamente adquiridos, quando verificar que o seu uso põe
em causa a sinceridade do seu testemunho ou que novas
condições de vida exigem outras disposições. Porém, sempre lhe
deve ser permitido pregar com verdadeira liberdade a fé;
ensinar a sua doutrina acerca da sociedade; exercer sem
entraves a própria missão entre os homens; e pronunciar o seu
juízo moral mesmo acerca das realidades políticas, sempre que
os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o
exigirem e utilizando todos e só aqueles meios que são
conformes com o Evangelho e, segundo a variedade dos tempos e
circunstâncias, são para o bem de todos.
Aderindo
fielmente ao Evangelho e realizando a sua missão no mundo, a
Igreja -a quem pertence fomentar e elevar tudo o que de
verdadeiro, bom e belo se encontra na comunidade dos homens
(8) - consolida, para glória de Deus, a paz entre os homens
(9).
CAPÍTULO V
A PROMOÇÃO DA PAZ E A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Necessidade e desejos
actuais da paz
77. Nestes
nossos tempos, em que as dores e angústias derivadas da guerra
ou da sua ameaça ainda oprimem tão duramente os homens, a
família humana chegou a uma hora decisiva no seu processo de
maturação. Progressivamente unificada, e por toda a parte mais
consciente da própria unidade, não pode levar a cabo a tarefa
que lhe incumbe de construir um mundo mais humano para todos
os homens, a não ser que todos se orientem com espírito
renovado à verdadeira paz. A mensagem evangélica, tão em
harmonia com os mais altos desejos e aspirações do género
humano, brilha assim com novo esplendor nos tempos de hoje, ao
proclamar felizes os construtores da paz «porque serão
chamados filhos de Deus» (Mt. 5,9). Por isso, o Concílio,
explicando a verdadeira e nobilíssima natureza da paz, e uma
vez condenada a desumanidade da guerra, quer apelar
ardentemente para que os cristãos, com a ajuda de Cristo,
autor da paz, colaborem com todos os homens no estabelecimento
da paz na justiça e no amor e na preparação dos instrumentos
da mesma paz.
Natureza
da paz e sua consecução
78. A paz não é
ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do
equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma
dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é
chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que
o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que
deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais
perfeita justiça. Com efeito, o bem comum do género humano é
regido, primária e fundamentalmente, pela lei eterna; mas,
quanto às suas exigências concretas, está sujeito a constantes
mudanças, com o decorrer do tempo. Por esta razão, a paz nunca
se alcança duma vez para sempre, antes deve estar
constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade
humana é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o
constante domínio das paixões de cada um e a vigilância da
autoridade legítima. Mas tudo isto não basta. Esta paz não se
pode alcançar na terra a não ser que se assegure o bem das
pessoas e que os homens compartilhem entre si livre e
confiadamente as riquezas do seu espírito criador.
Absolutamente necessárias para a edificação da paz são ainda a
vontade firme de respeitar a dignidade dos outros homens e
povos e a prática assídua da fraternidade. A paz é assim
também fruto do amor, o qual vai além do que a justiça
consegue alcançar. A paz terrena, nascida do amor do próximo,
é imagem e efeito da paz de Cristo, vinda do Pai. Pois o
próprio Filho encarnado, príncipe da paz, reconciliou com
Deus, pela cruz, todos os homens; restabelecendo a unidade de
todos num só povo e num só corpo, extinguiu o ódio (1) e,
exaltado na ressurreição, derramou nos corações o Espírito de
amor.
Todos os
cristãos são, por isso, insistentemente chamados a que
«praticando a verdade na caridade» (Ef. 4, 15), se unam com os
homens verdadeiramente pacíficos para implorarem e edificarem
a paz.
Levados pelo
mesmo espírito, não podemos deixar de louvar aqueles que,
renunciando à violência na reivindicação dos próprios
direitos, recorrem a meios de defesa que estão também ao
alcance dos mais fracos — sempre que isto se possa fazer sem
lesar os direitos e obrigações de outros ou da comunidade.
Na medida em
que os homens são pecadores, o perigo da guerra ameaça-os e
continuará a ameaça-los até à vinda de Cristo; mas na medida
em que, unidos em caridade, superam o pecado, superadas ficam
também as lutas, até que se realize aquela palavra: «com as
espadas forjarão arados e foices com as lanças. Nenhum povo
levantará a espada contra outro e jamais se exercitarão para a
guerra» (Is. 2, 4).
Secção 1
EVITAR A GUERRA
Refrear a
crueldade das guerras
79. Apesar de
as últimas guerras terem trazido tão grandes danos materiais e
morais, ainda todos os dias a guerra leva por diante as suas
devastações em alguma parte da terra. Mais ainda, o emprego de
armas científicas de todo o género para fazer a guerra,
ameaça, dada a selvajaria daquelas, levar os combatentes a uma
barbárie muito pior que a de outros tempos. Além disso, a
complexidade da actual situação e o intrincado dos relações
entre países tornam possível o prolongar-se de guerras mais ou
menos larvadas, pelo recurso a novos métodos insidiosos e
subversivos. Em muitos casos, o recurso aos métodos do
terrorismo é considerado como uma nova forma de guerra.
Tendo diante
dos olhos este estado de prostração da humanidade, o Concílio
quer, antes de mais, recordar o valor permanente do direito
natural internacional e dos seus princípios universais. A.
própria consciência da humanidade afirma cada vez com maior
força estes princípios. As acções que lhes são deliberadamente
contrárias, bem como as ordens que as mandam executar, são
portanto, criminosas; nem a obediência cega pode desculpar os
que as cumprem. Entre tais actos devem-se contar, antes de
mais, aqueles com que se leva metódicamente a cabo o
extermínio de toda uma raça, nação ou minoria étnica. Tais
acções devem ser veementemente condenadas como horríveis
crimes e louvada no mais alto grau a coragem de quantos não
temem resistir abertamente aos que as querem impor.
Existem
diversas convenções internacionais relativas à guerra
assinadas por bastantes nações, e que visam a tornar menos
desumanas as actividades bélicas e suas consequências; tais,
por exemplo, as que se referem à sorte dos soldados feridos ou
prisioneiros, e outras semelhantes. Estes acordos devem ser
observados. Mais ainda, todos, sobretudo os poderes públicos e
os peritos nestas matérias, têm obrigação de procurar
aperfeiçoa-los quanto lhes for
possível, de maneira a
que sejam capazes de melhor e mais eficazmente refrearem a
crueldade das guerras. Parece, além disso, justo que as leis
tenham em conta com humanidade o caso daqueles que, por motivo
de consciência, recusam combater, contanto que aceitem outra
forma de servir a comunidade humana.
Na realidade, a
guerra não foi eliminada do mundo dos homens. E enquanto
existir o perigo de guerra e não houver uma autoridade
internacional competente e dotada dos convenientes meios, não
se pode negar aos governos, depois de esgotados todos os
recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima
defesa. Cabe assim aos governantes e aos demais que participam
na responsabilidade dos negócios públicos, o dever de
assegurar a defesa das populações que lhes estão confiadas,
tratando com toda a seriedade um assunto tão sério. Mas uma
coisa é utilizar a força militar para defender justamente as
populações, outra coisa é querer subjugar as outras nações. O
poderio bélico não legitima qualquer uso militar ou político
que dele se faça. Nem, finalmente, uma vez começada
lamentavelmente a guerra, já tudo se torna lícito entre as
partes beligerantes.
Aqueles que se
dedicam ao serviço da pátria no exército, considerem-se
servidores da segurança e da liberdade dos povos; na medida em
que se desempenham como convém desta tarefa, contribuem
verdadeiramente para o estabelecimento da paz.
A guerra
total
80. Com o
incremento das armas científicas, tem aumentado
desmesuradamente o horror e maldade da guerra. Pois, com o
emprego de tais armas, as acções bélicas podem causar enormes
e indiscriminadas destruições, que desse modo já vão muito
além dos limites da legítima defesa. Mais ainda: se se
empregasse integralmente o material existente nos arsenais das
grandes potências, resultaria daí o quase total e recíproco
extermínio de ambos os adversários, sem falar nas inúmeras
devastações provocadas no mundo e nos funestos efeitos que do
uso de tais armas se seguiriam.
Tudo isto nos
força a considerar a guerra com um espírito inteiramente novo
(2). Saibam os homens de hoje que darão grave conta das suas
actividades bélicas. Pois das suas decisões actuais dependerá
em grande parte o curso dos tempos futuros.
Tendo em
atenção todas estas coisas, e fazendo suas as condenações da
guerra total já anteriormente pronunciadas pelos Sumos
Pontífices (3), este sagrado Concílio declara:
Toda a acção
bélica que tende indiscriminadamente à destruição de cidades
inteiras ou vastas regiões e seus habitantes é um crime contra
Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza e sem
hesitação.
O perigo
peculiar da guerra hodierna está em que ela fornece, por assim
dizer, a oportunidade de cometer tais crimes àqueles que estão
de posse das modernas armas científicas; e, por uma
consequência quase fatal, pode impelir as vontades dos homens
às mais atrozes decisões. Para que tal nunca venha a suceder,
os Bispos de todo o mundo, reunidos, imploram a todos,
sobretudo aos governantes e chefes militares, que ponderem sem
cessar a sua tão grande responsabilidade perante Deus e a
humanidade.
A corrida
aos armamentos
81. É verdade
que não se acumulam as armas científicas só com o fim de serem
empregadas na guerra. Com efeito, dado que se pensa que a
solidez defensiva de cada parte depende da sua capacidade de
resposta fulminante, esta acumulação de armas, que aumenta de
ano para ano, serve, paradoxalmente, para dissuadir possíveis
inimigos. Muitos pensam que este é hoje o meio mais eficaz
para assegurar uma certa paz entre as nações.
Seja o que for
deste meio de dissuasão, convençam-se os homens de que a
corrida aos armamentos, a que se entregam muitas nações, não é
caminho seguro para uma firme manutenção da paz; e de que o
pretenso equilíbrio daí resultante não é uma paz segura nem
verdadeira. Corre-se o perigo de que, com isso, em vez de se
eliminarem as causas da guerra, antes se agravem
progressivamente. E enquanto se dilapidam riquezas imensas no
constante fabrico de novas armas, torna-se impossível dar
remédio suficiente a tantas misérias de que sofre o mundo
actualmente. Mais do que sanar verdadeiramente e plenamente as
discórdias entre as nações, o que se consegue é contagiar com
elas outras partes do mundo. É preciso escolher outros
caminhos, partindo da reforma das mentalidades, para eliminar
este escândalo e poder-se restituir ao mundo, liberto da
angústia que o oprime, uma paz verdadeira.
Por tal razão,
de novo se deve declarar que a corrida aos armamentos é um
terrível flagelo para a humanidade e prejudica os pobres dum
modo intolerável. E é muito de temer, se ela continuar, que um
dia provoque as exterminadoras calamidades de que já
presentemente prepara os meios.
Advertidos
pelas calamidades que o género humano tornou possíveis,
aproveitemos o tempo de que ainda dispomos para, tornados mais
conscientes da própria responsabilidade, encontrarmos os
caminhos que tornem possível resolver os nossos conflitos dum
modo mais digno de homens. A providência divina instantemente
nos pede que nos libertemos da antiga servidão da guerra. Se
nos recusamos a fazer este esforço, não sabemos aonde nos
levará o funesto caminho por onde enveredámos.
Proscrição total da guerra e acção internacional para a evitar
82. É,
portanto, claro, que nos devemos esforçar por todos os meios
por preparar os tempos em que, por comum acordo das nações, se
possa interditar absolutamente qualquer espécie de guerra.
Isto exige, certamente, a criação duma autoridade pública
mundial, por todos reconhecida e com poder suficiente para que
fiquem garantidos a todos a segurança, o cumprimento da
justiça e o respeito dos direitos. Porém, antes que esta
desejável autoridade possa ser instituída, é necessário que os
supremos organismos internacionais se dediquem com toda a
energia a buscar os meios mais aptos para conseguir á
segurança comum. Já que a paz deve antes nascer da confiança
mútua do que ser imposta pelo terror das armas, todos devem
trabalhar por que se ponha, finalmente, um termo à corrida aos
armamentos e por que se inicie progressivamente e com
garantias reais e eficazes, a redução dos mesmos armamentos,
não unilateral evidentemente, mas simultânea e segundo o que
for estatuído (4).
Entretanto, não
se devem subestimar as tentativas já feitas ou ainda em curso
para afastar o perigo da guerra. Procure-se antes ajudar a boa
vontade de muitos que, carregados com as ingentes preocupações
dos seus altos ofícios, mas movidos do seriíssimo dever que os
obriga, se esforçam por eliminar a guerra de que têm horror,
embora não possam prescindir da complexidade objectiva das
situações. E dirijam-se a Deus instantes preces, para que lhes
dê a força necessária para empreender com perseverança e levar
a cabo com fortaleza esta obra de imenso amor dos homens, de
construir virilmente a paz. Hoje em dia, isto exige certamente
deles que alarguem o espírito mais além das fronteiras da
própria nação, deponham o egoísmo nacional e a ambição de
dominar sobre os outros países, fomentem um grande respeito
por toda a humanidade, que já avança tão laboriosamente para
uma maior unidade.
As sondagens
até agora diligente e incansavelmente levadas a cabo acerca
dos problemas da paz e desarmamento, e as reuniões
internacionais que trataram deste assunto, devem ser
consideradas como os primeiros passos para a solução de tão
graves problemas e devem no futuro promover-se ainda com. mais
empenho, para obter resultados práticos. No entanto, evitem os
homens entregar-se apenas aos esforços de alguns, sem se
preocuparem com a própria mentalidade. Pois os governantes,
responsáveis pelo bem comum da própria nação e ao mesmo tempo
promotores do bem de todo o mundo, dependem muito das opiniões
e sentimentos das populações. Nada aproveitarão com dedicar-se
à edificação da paz, enquanto os sentimentos de hostilidade,
desprezo e desconfiança, os ódios raciais e os preconceitos
ideológicos dividirem os homens e os opuserem uns aos outros.
Daqui a enorme necessidade duma renovação na educação das
mentalidades e na orientação da opinião publica. Aqueles que
se consagram à obra de educação, sobretudo da juventude, ou
que formam a opinião pública, considerem como gravíssimo dever
o procurar formar as mentalidades de todos para novos
sentimentos pacíficos. Todos nós temos, com efeito, de
reformar o nosso coração, com os olhos postos no mundo inteiro
e naquelas tarefas que podemos realizar juntos para o
progresso da humanidade.
Não nos engane
uma falsa esperança. A não ser que, pondo de parte inimizades
e ódios, se celebrem no futuro pactos sólidos e honestos
acerca dá paz universal, a humanidade, que já agora corre
grave risco, chegará talvez desgraçadamente, apesar da sua
admirável ciência, àquela hora em que não conhecerá outra paz
além da horrível tranquilidade da morte. Mas, ao mesmo tempo
que isto afirma, a Igreja de Cristo, no meio das angústias do
tempo actual, não deixa de esperar firmemente. A nossa época
quer ela propor, uma e outra vez, oportuna e importunamente, a
mensagem do Apóstolo: «eis agora o tempo favorável» para a
conversão dos corações, «eis agora os dias da salvação (5).
Secção 2
CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL
Causas e
remédios das discórdias
83. Para
edificar a paz, é preciso, antes de mais, eliminar as causas
das discórdias entre os homens, que são as que alimentam as
guerras, sobretudo as injustiças. Muitas delas provêm das
excessivas desigualdades económicas e do atraso em lhes dar
remédios necessários. Outras, porém, nascem do espírito de
dominação e do desprezo das pessoas; e, se buscamos causas
mais profundas, da inveja, desconfiança e soberba humanas, bem
como de outras paixões egoístas. Como o homem não pode
suportar tantas desordens, delas provém que, mesmo sem haver
guerra, o mundo está continuamente envenenado com as contendas
e violências entre os homens. E como se verificam os mesmos
males nas relações entre as nações, é absolutamente
necessário, para os vencer ou prevenir, e para reprimir as
violências desenfreadas, que os organismos internacionais
cooperem e se coordenem melhor e que se fomentem
incansàvelmente as organizações que promovem a paz.
A comunidade das nações e
instituições internacionais
84. Para que o
bem comum universal se procure convenientemente e se alcance
com eficácia, torna-se já necessário, dado o aumento crescente
de estreitos laços de mútua dependência entre todos os
cidadãos e entre todos os povos do mundo, que a comunidade dos
povos se dê a si mesma uma estrutura à altura das tarefas
actuais, sobretudo relativamente àquelas numerosas regiões que
ainda padecem intolerável indigência.
Para obter tais
fins, as instituições da comunidade internacional devem
prover, cada uma por sua parte, às diversas necessidades dos
homens, no domínio da vida social - a que pertencem a
alimentação, saúde, educação, trabalho - como em certas
circunstâncias particulares, que podem surgir aqui ou ali,
tais como a necessidade geral de favorecer o progresso das
nações em vias de desenvolvimento, de obviar às necessidades
dos refugiados dispersos por todo o mundo, ou ainda de ajudar
os emigrantes e suas famílias.
As instituições
internacionais, mundiais ou regionais, já existentes, são
beneméritas do género humano. Aparecem como as primeiras
tentativas para lançar os fundamentos internacionais da
inteira comunidade humana, a fim de se resolverem os
gravíssimos problemas dos nossos tempos, se promover o
progresso em todo o mundo e se prevenir qualquer forma de
guerra. A Igreja alegra-se com o espírito de verdadeira
fraternidade que em todos estes campos floresce entre cristãos
e não-cristãos, e tende a intensificar os esforços por
remediar tão grande miséria.
A cooperação
internacional no campo económico
85. A unificação actual do
género humano requer também uma cooperação internacional mais
ampla no campo económico. Com efeito, embora
quase todos os povos se tenham tornado independentes, estão
ainda longe de se encontrarem livres de excessivas
desigualdades ou de qualquer forma de dependência indevida, ou
ao abrigo de graves dificuldades internas.
O crescimento
dum país depende dos recursos humanos e financeiros. Em cada
nação, os cidadãos devem ser preparados pela educação e
formação profissional, para desempenharem as diversas funções
da vida económica e social. Para tal, requere-se a ajuda de
peritos estrangeiros; estes, ao darem tal ajuda, não procedam
como dominadores, mas como auxiliares e cooperadores. Não será
possível prestar o auxílio material às nações em
desenvolvimento, se não se mudarem profundamente no mundo as
estruturas do comércio actual. Os países desenvolvidos
prestar-lhes-ão ainda ajuda sob outras formas, tais como dons,
empréstimos ou investimentos financeiros; os quais se devem
prestar generosamente e sem cobiça, por uma das parte, e
receber com inteira honestidade, pela outra.
Para se
estabelecer uma autêntica ordem económica internacional, é
preciso abolir o apetite de lucros excessivos, as ambições
nacionais, o desejo de domínio político, os cálculos de ordem
militar bem como as manobras para propagar e impor ideologias.
Apresentam-se muitos sistemas económicos e sociais; é de
desejar que os especialistas encontrem neles as bases comuns
dum são comércio mundial; o que mais facilmente se conseguirá,
se cada um renunciar aos próprios preconceitos e se mostrar
disposto a um diálogo sincero.
Algumas normas oportunas
86. Para tal
cooperação, parecem oportunas as seguintes normas:
a) As nações em
desenvolvimento ponham todo o empenho em procurar firmemente
que a finalidade expressa do seu progresso seja a plena
perfeição humana dos cidadãos. Lembrem-se que o progresso se
origina e cresce, antes de mais, com o trabalho e engenho das
populações, pois deve apoiar-se não apenas nos auxílios
estrangeiros, mas sobretudo no desenvolvimento dos próprios
recursos e no cultivo das qualidades e tradições próprias.
Neste ponto, devem sobressair aqueles que têm maior influência
nos outros.
b) É dever
muito grave dos povos desenvolvidos ajudar os que estão em
vias de desenvolvimento a realizar as tarefas referidas.
Levem, portanto, a cabo, em si mesmos, as adaptações
psicológicas e materiais que são necessárias para estabelecer
esta cooperação internacional. E assim, nas negociações com as
nações mais fracas e pobres, atendam com muito cuidado ao bem
das mesmas; pois elas necessitam, para seu sustento, dos
lucros alcançados com a venda dos bens que produzem.
c) Cabe à
comunidade internacional coordenar e estimular o
desenvolvimento de modo a que os recursos a isso destinados
sejam utilizados com o máximo de eficácia e total equidade.
Também a ela pertence, sempre dentro do respeito pelo
princípio de subsidiariedade, regular as relações económicas
no mundo inteiro de modo que se desenvolvam segundo a justiça.
Criem-se
instituições aptas para promover e regular o comércio
internacional, sobretudo com as nações menos desenvolvidas, e
para compensar as deficiências que ainda perduram, nascidas
da excessiva desigualdade de poder entre as nações. Esta
ordenação, acompanhada de ajudas técnicas, culturais e
financeiras, deve proporcionar às nações em vias de
desenvolvimento os meios necessários para poderem conseguir
convenientemente o progresso da própria economia.
d) Em muitos
casos, é urgente necessidade rever as estruturas económicas e
sociais. Mas evitem-se as soluções técnicas prematuramente
propostas, sobretudo aquelas que, trazendo ao homem vantagens
materiais, são opostas à sua natureza espiritual e ao seu
progresso. Com efeito, «o homem não vive só de pão, mas também
de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt. 4, 4). E
qualquer parcela da família humana leva em si mesma e nas suas
melhores tradições uma parte do tesouro espiritual confiado
por Deus à humanidade, mesmo que muitos desconheçam a origem
donde procede.
A
cooperação internacional no que se refere ao incremento
demográfico
87. A
cooperação internacional é especialmente necessária no caso,
actualmente bastante frequente, daqueles povos que, além de
muitas outras dificuldades, sofrem especialmente da que deriva
dum rápido aumento da população. É urgentemente necessário
que, por meio duma plena e intensa cooperação de todos, e
sobretudo das nações mais ricas, se investigue o modo de
tornar possível preparar e fazer chegar a toda a humanidade o
que é preciso para a subsistência e conveniente educação dos
homens. Mas alguns povos poderiam melhorar muito as suas
condições de vida se, devidamente instruídos, passassem dos
métodos arcaicos de exploração agrícola para as técnicas
modernas, aplicando-as com a devida prudência à própria
situação, instaurando, além disso, uma melhor ordem social e
procedendo a uma distribuição mais justa da propriedade das
terras.
Com relação ao
problema da população, na própria nação e dentro dos limites
da própria competência, tem o governo direitos e deveres;
assim, por exemplo, no que se refere à legislação social e
familiar, ao êxodo das populações agrícolas para as cidades, à
informação acerca da situação e necessidades nacionais. Dado
que hoje este problema preocupa intensamente os espíritos, é
também de desejar que especialistas católicos, sobretudo nas
Universidades, prossigam e ampliem diligentemente os estudos e
iniciativas sobre estas matérias.
Visto que
muitos afirmam que o aumento da população do globo, ou ao
menos de algumas nações, deve ser absoluta e radicalmente
diminuído por todos os meios e por qualquer espécie de
intervenção da autoridade pública, o Concílio exorta todos a
que evitem as soluções, promovidas privada ou publicamente ou
até por vezes impostas, que sejam contrárias à lei moral.
Porque, segundo o inalienável direito ao casamento e
procriação da prole, a decisão acerca do número de filhos
depende do recto juízo dos pais e de modo algum se pode
entregar ao da autoridade pública. Mas como o juízo dos pais
pressupõe uma consciência bem formada, é de grande importância
que todos tenham a possibilidade de cultivar uma
responsabilidade recta e autênticamente humana, que tenha em
conta a lei divina, consideradas as circunstâncias objectivas
e temporais; isto exige, porém, que por toda a parte melhorem
as condições pedagógicas e sociais e, antes de mais, que seja
dada uma formação religiosa ou, pelo menos, uma íntegra
educação moral. Sejam também as populações judiciosamente
informadas acerca dos progressos científicos alcançados na
investigação dos métodos que ajudam os esposos na determinação
do número de filhos, cuja segurança esteja bem comprovada e de
que conste claramente a legitimidade moral.
O dever
dos cristãos na ajuda internacional
88. Os cristãos
cooperem de bom grado e de todo o coração na construção da
ordem internacional com verdadeiro respeito pelas liberdades
legítimas e na amigável fraternidade de todos; e tanto mais
quanto é verdade que a maior parte do mundo ainda sofre tanta
necessidade, de maneira que, nos pobres, o próprio Cristo como
que apela em alta voz para a caridade dos seus discípulos. Não
se dê aos homens o escândalo de haver algumas nações,
geralmente de maioria cristã, na abundância, enquanto outras
não têm sequer o necessário para viver e são atormentadas pela
fome, pela doença e por toda a espécie de misérias. Pois o
espírito de pobreza e de caridade são a glória e o testemunho
da Igreja de Cristo.
São, por isso,
de louvar e devem ser ajudados os cristãos, sobretudo jovens,
que se oferecem espontâneamente para ir em ajuda dos outros
homens e povos. Mais ainda: cabe a todo o Povo de Deus,
precedido pela palavra e exemplo dos Bispos, aliviar, quanto
lhe for possível, as misérias deste tempo; e isto, como era. o
antigo uso da Igreja, não sómente com o supérfluo, mas também
com o necessário.
Sem cair numa
organização rígida e uniforme, deve, no entanto, o modo de
recolher e distribuir estes socorros ser regulado com uma
certa ordem, nas dioceses, nações e em todo o mundo; e onde
parecer oportuno, conjugando a actividade dos católicos com a
dos outros irmãos cristãos. Porque o espírito de caridade,
longe de se opor a um exercício providente e ordenado da
actividade social e caritativa, antes o exige. Pelo que é
necessário que os que pretendem dedicar-se ao serviço das
nações em vias de desenvolvimento, recebam conveniente
formação em instituições adequadas.
A
presença eficaz da Igreja na comunidade internacional
89. Quando a
Igreja, em virtude da sua missão divina, prega a todos os
homens o Evangelho e lhes dispensa os tesouros da graça,
contribui para a consolidação da paz em todo o mundo e para
estabelecer um sólido fundamento para a fraterna comunidade
dos homens e dos povos, a saber: o conhecimento da lei divina
e natural. É, portanto, absolutamente necessário que a Igreja
esteja presente na comunidade das nações, para fomentar e
estimular a cooperação entre os homens; tanto por meio das
suas instituições públicas como graças à inteira e sincera
colaboração de todos os cristãos, inspirada apenas pelo desejo
de servir a todos.
O que se
alcançará mais eficazmente se os fiéis, conscientes da própria
responsabilidade humana e cristã, procurarem já no seu meio de
vida despertar a vontade de cooperar prontamente com a
comunidade internacional. Dedique-se especial cuidado em
formar neste ponto a juventude, tanto na educação religiosa
como na cívica.
A
cooperação dos cristãos nas instituições internacionais
90. Uma das
melhores formas de actuação internacional dos cristãos
consiste certamente na cooperação que, isoladamente ou em
grupo, prestam nas próprias instituições criadas ou a criar
para o desenvolvimento da cooperação entre as nações. Também
podem contribuir muito para a edificação da comunidade dos
povos, na paz e fraternidade, as várias associações católicas
internacionais, as quais devem ser consolidadas, com o aumento
de colaboradores bem formados, e dos meios de que necessitam e
com uma conveniente coordenação de forças. Nos tempos actuais,
com efeito, tanto a eficácia da acção como a necessidade do
diálogo reclamam empreendimentos colectivos. Essas associações
contribuem, além disso, não pouco também para desenvolver o
sentido de universalidade, muito próprio dos católicos, e para
formar a consciência da solidariedade e responsabilidade
verdadeiramente universais.
Finalmente, é
de desejar que os católicos, para bem cumprirem a sua missão
na comunidade internacional, procurem cooperar activa e
positivamente quer com os irmãos separados que com eles
professam a caridade evangélica, quer com todos os homens que
anelam verdadeiramente pela paz.
Perante as
imensas desgraças que ainda hoje torturam a maior parte da
humanidade, e para fomentar por toda a parte a justiça e ao
mesmo tempo o amor de Cristo para com os pobres, o Concílio,
por sua parte, julga muito oportuna a criação de algum
organismo da Igreja universal, incumbido de estimular a
comunidade católica na promoção do progresso das regiões
necessitadas e da justiça social entre as nações.
CONCLUSÃO
Dever dos
fiéis e das Igrejas particulares
91. Tudo o que,
tirado dos tesouros da doutrina da Igreja, é proposto por este
sagrado Concílio, pretende ajudar todos os homens do nosso
tempo, quer acreditem em Deus, quer não O conheçam
explicitamente, a que, conhecendo mais claramente a sua
vocação integral, tornem o mundo mais conforme à sublime
dignidade do homem, aspirem a uma fraternidade universal mais
profundamente fundada e, impelidos pelo amor, correspondam com
um esforço generoso e comum às urgentes exigências da nossa
era.
Certamente,
perante a imensa diversidade de situações e de formas de
cultura existentes no mundo, esta proposição de doutrina
reveste intencionalmente, em muitos pontos, apenas um carácter
genérico; mais ainda: embora formule uma doutrina aceite na
Igreja, todavia, como se trata frequentemente de realidades
sujeitas a constante transformação, deve ainda ser continuada
e ampliada. Confiamos, porém, que muito do que enunciámos
apoiados na palavra de Deus e no espírito do Evangelho, poderá
proporcionar a todos uma ajuda válida, sobretudo depois de os
cristãos terem levado a cabo, sob a direcção dos pastores, a
adaptação a cada povo e mentalidade.
Diálogo
entre todos os homens
92. Em virtude
da sua missão de iluminar o mundo inteiro com a mensagem de
Cristo e de reunir sob um só Espírito todos os homens, de
qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui um sinal
daquela fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo
sincero.
Isto exige, em
primeiro lugar, que, reconhecendo toda a legítima diversidade,
promovamos na própria Igreja a mútua estima, respeito e
concórdia, em ordem a estabelecer entre todos os que formam o
Povo de Deus, pastores ou fiéis, um diálogo cada vez mais
fecundo. Porque o que une entre si os fiéis é bem mais forte
do que o que os divide: haja unidade no necessário, liberdade
no que é duvidoso, e em tudo caridade(1).
Abraçamos
também em espírito os irmãos que ainda não vivem em plena
comunhão connosco, e as suas comunidades, com os quais estamos
unidos na confissão do Pai, Filho e Espírito Santo, e pelo
vínculo da caridade, lembrados de que a unidade dos cristãos é
hoje esperada e desejada mesmo por muitos que não crêem em
Cristo. Com efeito, quanto mais esta unidade progredir na
verdade e na caridade, pela poderosa acção do Espírito Santo,
tanto mais será para o mundo um preságio de unidade e de paz.
Unamos, pois, as nossas forças e, cada dia mais fiéis ao
Evangelho, procuremos, por modos cada vez mais eficazes para
alcançar este fim tão alto, cooperar fraternalmente no serviço
da família humana, chamada, em Cristo, a tornar-se a família
dos filhos de Deus.
Voltamos também
o nosso pensamento para todos os que reconhecem Deus e guardam
nas suas tradições preciosos elementos religiosos e humanos,
desejando que um diálogo franco nos leve a todos a receber com
fidelidade os impulsos do Espírito e a segui-los com
entusiasmo.
Por nossa
parte, o desejo de um tal diálogo, guiado apenas pelo amor
pela verdade e com a necessária prudência, não exclui ninguém;
nem aqueles que cultivam os altos valores do espírito humano,
sem ainda conhecerem o seu autor; nem aqueles que se opõem à
Igreja, e de várias maneiras a perseguem. Como Deus Pai é o
princípio e o fim de todos eles, todos somos chamados a ser
irmãos. Por isso, chamados pela mesma vocação humana e divina,
podemos e devemos cooperar pacificamente, sem violência nem
engano, na edificação do mundo na verdadeira paz.
A
edificação do mundo e a sua orientação para Deus
93. Lembrados
da palavra do Senhor: «nisto reconhecerão todos que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros» (Jo. 13, 35), os
cristãos nada podem desejar mais ardentemente do que servir
sempre com maior generosidade e eficácia os homens do mundo de
hoje. E assim, fiéis ao Evangelho e graças à sua força, unidos
a quantos amam e promovem a justiça, têm a realizar aqui na
terra uma obra imensa, da qual prestarão contas Aquele que a
todos julgará no último dia. Nem todos os que dizem «Senhor,
Senhor» entrarão no reino dos céus, mas aqueles que cumprem a
vontade do Pai (2) e põem sériamente mãos a obra. Ora, a
vontade do Pai é que reconheçamos e amemos efectivamente em
todos os homens a Cristo, por palavra e por obras, dando assim
testemunho da verdade e comunicando aos outros o mistério do
amor do Pai celeste. Deste modo, em toda a terra, os homens
serão estimulados à esperança viva, dom do Espírito Santo,
para que finalmente sejam recebidos na paz e felicidade
infinitas, na pátria que refulge com a glória do Senhor.
«Aquele que, em
virtude do poder que actua em nós, é capaz de fazer que
superabundemos para além do que pedimos ou pensamos, a Ele
seja dada a glória na Igreja e em Cristo Jesus, por todos os
séculos dos séculos. Amém» (Ef. 3, 20-21).
Roma, 7 de Dezembro de 1965
PAPA PAULO VI
Notas
Proémio - Introdução
1. A
Constituição pastoral «A Igreja no mundo actual», formada por
duas partes, constitui um todo unitário. E chamada «pastoral»,
porque, apoiando-se em princípios doutrinais, pretende expor
as relações da Igreja com o mundo e os homens de hoje. Assim,
nem à primeira parte falta a intenção pastoral, nem à segunda
a doutrinal. Na primeira parte, a Igreja expõe a sua própria
doutrina acerca do homem, do mundo no qual o homem está
integrado e da sua relação para com eles. Na segunda,
considera mais expressamente vários aspectos da vida e da
sociedade contemporâneas, e sobretudo as questões e os
problemas que, nesses domínios, padecem hoje de maior
urgência. Daqui resulta que, nesta segunda parte, a matéria,
tratada à luz dos princípios doutrinais, não compreende apenas
elementos imutáveis, mas também transitórios. A Constituição
deve, pois, ser interpretada segundo as normas teológicas
gerais, tendo em conta, especialmente na segunda parte, as
circunstâncias mutáveis com que estão intrinsecamente ligados
os assuntos em questão.
2. Cfr. Jo.
18,37.
3. Cfr. Jo. 3,
17; Mt. 20, 28; Mc. 10,45.
4. Cfr. Rom.
7,14 s.
5. Cfr. 2 Cor.
5,15.
6. Cfr. Act.
4,12.
7. Cfr. Hebr.
13,8.
8. Cfr. Col.
1,15.
PRIMEIRA PARTE
Capítulo I
1.
Cfr. Gén. 1,26; Sab. 2,23.
2. Cfr. Ecli.
17, 3-10.
3. Cfr. Rom. 1,
21-25.
4. Cfr. Jo.
8,34.
5. Cfr. Dan. 3,
57-90.
6. Cfr. 1 Cor.
6, 13-20.
7. Cfr. 1 Reis
16,7; Jer. 17.10.
8. Cfr. Ecli.
17, 7-8.
9. Cfr. Rom. 2,
14-16.
10. Cfr. Pio
XII, radiomensagem acerca da formação da consciência cristã
nos jovens, 23 março 1952: AAS 44 (1952), p. 271.
11. Cfr. Mt.
22, 37-40; Gál. 5,14.
12 Cfr. Ecli.
15,14.
13. Cfr. 2 Cor.
5,10.
14. Cfr. Sab.
1,13; 2, 23-24; Rom. 5,21; 6,23; Tg. 1,15.
15. Cfr. 1 Cor.
15, 56-57.
16. Cfr. Pio XI,
Enc. Divini Redemptoris, 19 março 1937: AAS 29 (1937),
p. 65-106; Pio XII, Enc. Ad Apostolorum Principis, 29
junho 1958: AAS 50 (1958), p. 601-614; João XXIII, Enc.
Mater et Magistra, 15 maio 1961: AAS 53 (1961) p. 451-453;
Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, 6 agosto 1964: AAS 56
(1964), p. 651-653.
17. Cfr. Conc.
Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap.
I, n. 8: AAS 57 (1965), p. 12.
18. Cfr. Fil.
1,27.
19. S.
Agostinho, Confissões, I, 1: PL 32, 661.
20. Cfr. Rom.
5,14. Cfr. Tertuliano, De carpis resurr. 6: «Quodcumque
limus exprimebatur, Christus cogitabatur homo futurus»: PL
2, 802 (848); CSEL, 47, p. 33, 1. 12-13.
21. Cfr. 2 Cor.
4,4.
22.Cfr. Conc.
Constant. II, can. 7: «Neque Deo Verbo in carpis naturam
transmutato, neque carne in Verbi naturam transducta»:
Denz. 219 (428). Cfr. também Conc. Constant. III: «
Quemadmodum enim sanctissima ac immaculata animata eius caro
deificata non est perempta (theôtheisa ouk anërethe), sed in
próprio sui statu et ratione permansit»: Denz. 291 (556).
Cfr. Conc. Calc.: «in duabus naturis inconfuse,
immutabiliter, indivise, inseparabiliter agnoscentum»:
Denz. 148 (302).
23. Cfr. Conc.
Constant. III: «ita et humana eius voluntas deificata non.
est perempta»: Denz. 291 (556).
24 Cfr. Hebr.
4,15. 25 Cfr. 2
25. Cfr. 2Cor.
5, 18-19; Col. 1, 20-22.
26. Cfr. 1Ped.
2, 2; Mt. 16,24; Lc. 14, 27.
27. Cfr. Rom.
8, 29; Col. 1,18.
28. Cfr. Rom.
8, 1-11.
29. Cfr. 2 Cor.
4,14.
30. Cfr. Fil.
3,10; Rom. 8,17.
31. Cfr. Conc.
Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap.
II, n. 16: AAS 57 (1965), p. 20.
32. Cfr. Rom.
8,32.
33. Cfr.
Liturgia Pascal bizantina.
34. Cfr. Rom.
8,15 e Gal. 4,6; Jo. 1,12 e Jo. 3, 1-2.
Capítulo II
1. Cfr. João
XXIII, Enc. Mater et Magistra, 15 maio 1961: AAS 53
(1961) p. 401-464; Enc. Pacem in terris, 11 abril 1963:
AAS 55 (1963), p. 257-304; Paulo VI, Enc. Ecclesiam suam,
6 agosto 1964: AAS 54 (1964), p. 609-659.
2. Cfr. Lc.
17,23.
3. Cfr. S.
Tomás, 1 Ethic. lect. 1.
4. Cfr. João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 418.
Cfr. também Pio XI, Enc. Quadragesimo anno: AAS 23
(1931), p. 222 ss.
5. Cfr. João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), P. 417.
6. Cfr. Mc.
2,27.
7. Cfr. João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 266.
8. Cfr. Tg. 2,
15-16.
9. Cfr. Lc. 16,
19-31.
10. Cfr. João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 299-300.
11. Cfr. Lc. 6,
37-38; Mt. 7, 1-2; Rom. 2, 1-11; 14, 10-12.
12. Cfr. Mt. 5,
45-47.
13. Cfr.. Conc.
Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap.
II, 9: AAS 57 (1965), p. 12-13.
14. Cfr. Ex.
24, 1-8.
Capítulo III
1. Cfr. Gén. 1, 26-27; 9, 2-3.
2. Cfr. Salm. 8,7 e 10.
3. Cfr. João XXIII, Enc.
Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 297.
4. Cfr.
Mensagem enviada à humanidade pelos Padres Conciliares no
início do Concílio Vaticano II, outubro 1962: AAS 54 (1962),
p. 822-823.
5. Cfr. Paulo
VI, Alocução ao Corpo diplomático, 7 janeiro 1965: AAS 57
(1965), p. 232.
6. Cfr. Conc.
Vat. I, Const. dogma De fide cath., cap. III: Denz.
1785-1786 (3004-3005).
7. Cfr. Pio
Paschini, Vita e opere di Galileo Galilei, 2 vol.
Academia Pontifícia de Ciências, cidade do Vaticano, 1964.
8. Cfr. Mt.
24,13; 13, 24-30 e 36-43.
9. Cfr. 2 Cor.
6,10.
10. Cfr, Jo.
1,3 e 14.
11. Cfr. Ef.
1,10.
12. Cfr. Jo. 3,
14-16; Rom. 5, 8-10.
13. Cfr. Act.
2,36; Mt. 28,18.
14. Cfr. Rom.
15,16.
15. Cfr. Act.
1,7.
16. Cfr. 1 Cor.
7,31; S. Ireneu, Adversus Haereses, V, 36: PG VII,
1222.
17. Cfr. 2 Cor.
5,2; 2 Ped. 3,13.
18. Cfr. 1 Cor.
2,9; Apoc. 21, 4-5.
19. Cfr. 1 Cor.
15,42 e 53.
20. Cfr. 1 Cor.
13,8; 3,14.
21. Cfr. Rom.
8, 19-21.
22. Cfr. Lc.
9,25.
23. Cfr. Pio XI,
Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 207.
24. Missal
romano, Prefácio da festa de Cristo Rei.
Capítulo IV
1. Cfr. Paulo
VI, Enc. Ecclesiam suam, III: AAS 56 (1964), p.
637-659.
2. Cfr. Tit.
3,4: « philanthropia».
3. Cfr. Ef.
1,3. 5-6. 13-14. 23.
4. Cfr. Conc.
Vat. II, Const. dogm. De Ecelesia, Lumen gentium, cap.
I, n. 8: AAS 57 (1965), p. 12.
5. Ibid. cap.
II, n. 9: AAS 57 (1965), p. 14; efr. n. 8: AAS 1. c., p. 11.
6. Ibid. cap. I,
n. 8: AAS (1965), p. 11.
7. Cfr. Ibid.
cap. IV, n. 38: AAS 57 (1965), p. 43, com a nota 120.
8. Cfr. Rom. 8,
14-17.
9. Cfr. Mt.
22,39
10. Const. dogm.
De Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, n. 9: AAS 57
(1965), p. 12-14.
11. Cfr. Pio
XII, Alocução aos cultores de história e de arte, 9 março
1956: AAS 48 (1956), p. 212:«O seu divino fundador, Jesus
Cristo, não lhe deu nenhum mandato nem fixou nenhum fim de
ordem cultural. O fim que Cristo lhe assinala é estritamente
religioso (...) A Igreja deve conduzir os homens a
Deus, para que eles se Lhe entreguem sem reservas (...)
A Igreja jamais poderá perder de vista este fim estritamente
religioso, sobrenatural. O sentido de todas as suas
actividades, até ao último cánon do seu Direito, não pode ser
outro senão concorrer para isso directa ou indirectamente.
12. Const. dogm.
De Ecclesia, Lumen gentium, cap. I, n. 1: AAS 57
(1965), p. 5.
13. Cfr. Hebr.
13,14.
14. Cfr. 2 Tess.
3, 6-13; Ef. 4,28.
15. Cfr. Is.
58, 1-12.
16. Cfr. Mt.
23, 3-33; Mc. 7, 10-13.
17. Cfr. João
XXIII. Ene. Mater et Magistra, IV: AAS 53 (1961), p.
456-457; e I: 1. c., p. 407, 410-411.
18. Cfr. Const.
dogm. De Ecelesia, Lumen gentium, cap. III, n. 28: AAS
57 (1965), p. 34-35.
19. Ibid. n.
28: AAS, 1, c., p. 35-36.
20. Cfr. S.
Ambrósio, De Virginitate, cap. VIII, n. 48: PL 16, 278.
21. Cfr. Const.
dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, n. 15: AAS
57 (1965), p. 20.
22. Cfr. Const.
dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, n. 13: AAS
57 (1965), p. 17.
23. Cfr.
Justino, Dialogus cum Tryphone, cap. 110: PG 6, 729 (ed.
Otto), 1897, p. 391-393: «...sed quanto magis talia nobis
infliguntur, tanto plures alii fideles et pii per nomen Jesu
fiunt». Cfr. Tertuliano, Apologeticus, cap. 50, 13:
PL 1,534; Cchr, ser. lat., I, p. 171: «Etiam plures
efficimur, quotiens metimur a vobis: semen est sanguis
christianorum», Cfr. Const. dogm. De Ecclesia, Lumen
gentium, cap. VII, n. 48: AAS 57 (1965), p. 53.
24. Cfr. Const.
dogm. Lumen Gentium c 2 n. 15: AAS 57 (1965), p. 21.
25. Cfr. Paulo
VI, Alocução, 3 fev. 1965: L'Osservatore Romano, 4 fev.
1965.
II PARTE
Capítulo I
1. Cfr. S.
Agostinho, De bono coniugali: PL 40, 375-376 e 394. S.
Tomás, Summa Theol., Suppl. Quaest. 49 art. 3 ad 1;
Decretum pro Armenis: Denz.-Schön. 702 (1327) ; Pio XI,
Ene. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 543-555, Denz.-Schön.
2227-2238.
2 Cfr. Pio XI,
Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 546-547;
Denz.-Schön. (3703-3714).
3. Cfr. Os. 2;
Jer. 3, 6-13; Ez. 16 e 23; Is. 54.
4. Cfr. Mt.
9,15; Mc. 2, 19-20; Lc. 5, 34-35; Jo. 3,29; 2 Cor. 11,2; Ef.
5,27; Apoc. 19, 7-8; 21,2 e 9.
5. Cfr. Ef.
5,25.
6. Cfr. Conc.
Vat. II, Const. dogm. De Ecelesia, Lumen gentium: AAS
57 (1965), p. 15-16; 40-41; 47.
7. Pio XI, Enc.
Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 583.
8. Cfr. 1 Tim.
5, 3.
9. Cfr. Ef. 5,
32.
10. Cfr. Gén.
2, 22. 24; Prov. 5, 18-20; 31, 10-31; Tob. 8,4-8; Cant. 1,
2-3; 2,16; 4,16-5,1; 7, 8-11; 1 Cor. 7, 3-6; Ef. 5, 25-33.
11. Cfr. Pio XI,
Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 547-548;
Denz.-Schön. 2232 (3707).
12. Cfr. 1 Cor.
7,5.
13. Cfr. Pio
XII, Alocução Tra le visite, 20 janeiro 1958: AAS 50
(1958), p. 91.
14. Cfr. Pio XI,
Enc. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 559-561:
Denz.-Schön. 3716-3718; Pio XII, Alocução ao Congresso da
União Italiana de parteiras, 29 de outubro 1951: AAS 43
(1951), p. 835-854; Paulo VI, Alocução ao Sacro Colégio, 23
junho 1964: AAS 56 (1964), p. 581-589. Certas questões que
requerem outras investigações mais aprofundadas, foram
confiadas, por mandato do Sumo Pontífice, a uma Comissão para
o estudo da população, da família e da natalidade; uma vez
terminados os seus trabalhos, o Sumo Pontífice pronunciará o
seu juízo. No actual estado da doutrina do magistério, o
sagrado Concílio não pretende propor imediatamente soluções
concretas.
15. Cfr. Ef.
5,16; Col. 4,5.
16. Cfr.
Sacramentarium Gregorianum: PL 78, 262.
17. Cfr. Rom.
5,15 e 18; 6 5-11; Gál. 2,20.
18. Cfr. Ef. 5,
25-27.
Capítulo II
1. Cfr.
Introdução, n. 4-10.
2. 2 Cfr. Col.
3, 1-2.
3. Cfr. Gén.
1,28.
4. Cfr. Prov.
8, 30-31.
5. Cfr. S.
Ireneu, Adversus Haereses, III, 11, 8: ed. Sagnard, p.
200; cfr. ibid. 16,6: p. 290-292; 21, 10-22: p. 370-371; 22,
3; p. 378; etc.
6. Cfr. Ef.
1,10.
7. Cfr.
Palavras de Pio XII ao R. P. M.-D. Roland-Gosselin: «É
preciso não perder nunca de vista, que o objectivo da igreja é
evangelizar e não civilizar. Se ela civiliza, é pela
evangelização» (Semana social de Versailles, 1936,
p. 461-462).
8. Conc. Vat. I,
Const. Dei Filius, e. IV: Denz. 1795, 1799 (3015,
3019). Cfr. Pio XI, Enc. Quadragesimo anno: AAS 23
(1931), p. 190.
9. Cfr. João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 260.
10. Cfr. João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 283; Pio
XII, Radiomensagem, 24 dezembro 1941: AAS 34 (1942), p. 16-17.
11. Cfr. João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 260
12. Cfr. João
XXIII, Discurso inaugural do Concílio, 11 outubro 1962: AAS 54
(1962), p. 792.
13. Cfr. Const.
De Sacra Liturgia, sacrosanctum concilium n. 123: AAS
56 (1964), p. 131; Paulo VI, Discurso aos artistas romanos:
AAS 56 (1964), p. 439-442.
14. Cfr. Conc.
Vat. II, Decreto De institutione sacerdotali, Optatam
totius, e Declaração de educatione christiana,
Gravissimum educationis.
15. Cfr. Const.
dogm. De Ecclesia, Lumen gentium, cap. IV, n. 37: AAS
57 (1965), p. 42-43.
Capítulo III
1. Cfr. Pio XII,
Mensagem, 23 março 1952; AAS 44 (1952), p.273; João XXIII,
Alocução à A. C. Italiana, 1 maio 1959: AAS 51 (1959), p. 358.
2. Cfr. Pio XI,
Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 190 s.; Pio
XII, Mensagem, 23 março 1952:AAS 44 (1952), p. 276 s.; João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 450;
Conc. Vat. II, Decreto De instrumentis communicationis
socialis, Inter mirifica, cap. I, n. 6: AAS 56 (1954),
p. 147.
3. Cfr. Mt.
16,26; Lc. 16 1-31; Col. 3,17.
4. Cfr. Leão
XIII, Enc. Libertas praestantissimum, 20 jun. 1888: AAS
20 (1887-88), p. 597 s.; Pio XI, Enc. Quadragesimo anno:
AAS 23 (1931), p. 191 s.; ID., Enc. Divini Redemptoris:
AAS 29 (1937), p. 65 s.; Pio XII, Mensagem natalícia 1941: AAS
34 (1942), p. 10 s.; João XXIII, Enc. Mater et Magistra:
AAS 53 (1961), p. 401-464.
5. Quanto ao
problema da agricultura, cfr. sobretudo João XXIII, Enc.
Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 341 s.
6. Cfr. Leão
XIII, Enc. Rerum Novarum: ASS 23 (1890-1891), p.
649-662; Pio XI, Enc. Quadragesimo anno: A.AS 23
(1931), p. 200-201; ID., Enc. Divini Redemptoris: AAS
29 (1937), p. 92; Pio XII, Radiomensagem na vigília do Natal
de 1942: AAS 35 (1943),.p. 20; ID., Alocução, 13 junho 1943:
AAS 35 (1943), p. 172; ID:, Radiomensagem aos operários
espanhóis, 11 março 1951: AAS 43 (1951), p. 215; João XXIII,
Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 419.
7. Cfr. João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 408,
424, 427; a palavra «curatione» foi tirada do texto latino da
Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 199. Sob o
aspecto da evolução desta questão. cfr. também Pio XII,
Alocução, 3 junho 1950: AAS 42 (1950), p. 485-488; Paulo VI,
Alocução, 8 junho 1964: AAS 56 (1964), p. 574-579.
8 Cfr. Pio XII,
Enc. Sertum laetitiae: AAS 31 (1939), p. 642; João
XXIII, Alocução consistorial: AAS 52 (1960), p. 5-11; ID., Enc.
Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 411.
9. Cfr. S.
Tomás, Summa Theol. II-II, q. 32, a. 5 ad 2; Ibid. q.
66, a. 2; cfr. explicação em Leão XIII, Enc. Rerum Novarum:
AAS 20 (1890-1891), p. 651; cfr. também Pio XII, Alocução, 1
junho 1941: AAS 33 (1941), p. 199; ID., Radiomensagem
natalícia 1954: AAS 47 (1955), p. 27.
10. Cfr. S.
Basílio, Hom. in Mud Lucae «Destruam horrea mea», n. 2:
PG 31, 263; Lactâncio, Divinarum institutionum, L. V.,
de iustitia: PL 6, 565 B; S. Agostinho, In Joann. Ev.
tr. 50, n. 6: PL 35, 1760; ID., Enarratio in Ps. CXLVII,
12: PI: 37, 192; S. Gregório M., Homiliae in Ev., hom.
20: PL 76, 1165; ID., Regulae Pastoralis liber, parte
III, cap. 21: PL 77, 87; S. Boaventura, In III Sent. d.
33, dub. 1 (ed. Quaracchi III, 728) ; ID. In IV Sent.,
d. 15, p. II, a. 2, q. 1 (ed. cit. IV, 371b) ; q. de
superfluo (ms. da Bibl. mun. de Assis, 186, ff. 112ª-113ª;
S. Alberto Magno, In III Sent., d. 33, a. 3. sol. 1 (ed.
Borgnet XXVIII, 611) ; ID., In IV Sent., d. 15, a. 16 (ed.
cit. XXIX, 494-497). Quanto à determinação do supérfluo
actualmente, cfr. João XXIII, Mensagem radiotelevisiva, 11
setembro 1962. AAS 54 (1962), p. 682: «Dever de cada homem,
dever urgente do cristão é considerar o supérfluo com a medida
das necessidades alheias, e de vigiar que a administração e a
distribuição dos bens criados sejam dispostas para vantagem de
todos».
11. Nesse caso,
vale o antigo principio: «na necessidade extrema, todas as
coisas são comuns, isto é, todas as coisas devem ser tornadas
comuns». Por outro lado, segundo o modo, extensão e medida em
que se aplica o principio no texto aduzido, além dos autores
modernos aprovados: cfr. S. Tomás, Summa Theol. H-II,
q. 66, a. 7. É claro que para a recta aplicação do princípio
todas as condições moralmente exigidas devem ser respeitadas.
12. Cfr.
Decr. Gratiani, C. 21, d. LXXXVI (ed. Friedberg I, 302).
Este dito encontra-se já em PL 54, 491 A e PL 56, 1132 B. (cfr.
Antonianum 27 (1952), p. 349-366).
13. Cfr. Leão
XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS 20 (1890-1891), p.
643-646; Pio XI, Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931),
p. 191; Pio XII, Radiomensagem, 1 junho 1941: AAS 33 (1941),
p. 199; ID., Radiomensagem na vigília de Natal 1942: AAS 35
(1943), p. 17; ID., Radiomensagem, 1 setembro 1944: AAS 36
(1944), p. 253; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS
53 (1961), p. 428-429.
14. Cfr. Pio XI,
Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 214; João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 429.
15. Cfr. Pio
XII, Radiomensagem, Pentecostes 1941: AAS 44 (1941), p. 199.
João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p.
430.
16. Para o
recto uso dos bens segundo a doutrina do Novo Testamento, cfr.
Lc. 3,11; 10,30 s.; 11,41; 1 Ped. 5,3; Mc. 8,36; 12, 30-31; Tg.
5, 1-6; 1 Tim. 6,8; Ef, 4,28; 2 Cor. 8,13; 1 Jo. 3, 17-18.
Capítulo IV
1. Cfr. João
XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 417.
2. Cfr. ID.,
ibid.
3. Cfr. Rom.
13, 1-5.
4. Cfr. Rom.
13,5.
5. Cfr. Pio XII,
Radiomensagem, 24 dezembro 1942: AAS 35 (1943), p. 9-24; 24
dezembro 1944: AAS 37 (1945), p. 11-17, João XXIII, Enc.
Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 263, 271, 277-278.
6. João XXIII,
Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 415-418.
7. Pio XI, Alocução aos
dirigentes da federação Universitária Católica: Discorsi di
Pio XI (ed. Bertetto), Turim, vol. 1 (1960), p. 743.
8. Cfr. Conc.
Vaticano II, Const. dogm. De Ecclesia, Lumen gentium,
n. 13: A.AS 57 (1965), p. 17.
9. Cfr. Lc.
2,14.
Capítulo V
1. Cfr. Ef. 2, 16; Col. 1,
20-22.
2. Cfr. João
XXIII, Enc. Pacem in terris, 11 abril 1963: AAS 55
(1963), p. 291: Por isso, nesta nossa idade, que se gloria da
força atómica, é fora de razão pensar que a guerra é um meio
apto para ressarcir os direitos violados».
3. Cfr. Pio XII,
Alocução, 30 setembro 1954: AAS 46 (1954), p. 589;
Radiomensagem, 24 setembro 1954: AAS 47 (1955), p. 15 s.; João
XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p. 286-291;
Paulo VI, Alocução na Assembleia das Nações Unidas, 4 outubro
196'5: AAS 57 (1965), p. 877-885.
4. Cfr. João
XXIII, Ene. Pacem in terris, onde se fala da diminuição
dos armamentos: AAS 55 (1963), p. 287.
5. Cfr. 2 Cor. 6, 2.
Conclusão
1. Cfr. João
XXIII, Enc. Ad Petri Cathedram, 29 junho 1959: AAS 55
(1959), p. 513.
2. Cfr. Mt. 7,
21.
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