Na sequência da recente declaração
da Conferência Episcopal sobre a questão do aborto, novamente levantada na
Assembleia da República, julgamos oportuno chamar a atenção dos fiéis da nossa
Diocese para a importância de um assunto, como este, de tanta gravidade e, ao
mesmo tempo, recordar-lhes os deveres que nesta matéria lhes incumbem, não só
como cristãos, mas igualmente como cidadãos.
Porque, na verdade, a questão do aborto, sobre a qual
a posição da Igreja é absolutamente clara, como se conhece, não se fundamenta
prioritariamente em argumentos religiosos que interessam apenas a católicos (ao
contrário do que certos políticos e órgãos de comunicação pretendem fazer crer),
mas sobretudo em argumentos que dizem respeito a todos os homens e mulheres,
crentes ou não crentes, já que pertencem à própria ordem natural, transcendendo
o foro da consciência considerada em termos de pura
subjectividade.
O aborto voluntário é sempre a supressão criminosa de
uma vida humana. Por motivos ideológicos, muitas vezes hipócritas, a que não
raro se adicionam obscuros jogos de interesses, escamoteia-se com frequência
esta verdade, hoje no entanto cientificamente irrecusável. A vida, vida
rigorosamente humana, começa no momento da concepção. Destruí-la voluntariamente
é matar, com a agravante de se tratar de um ser inocente e sem defesa e,
todavia, com direito à existência.
O direito à vida é um direito humano inviolável. Não
depende da opinião pública, das estatísticas, dos referendos, do voto dos
deputados, de nenhuma autoridade pública. Ao Estado pertence, tão-somente,
reconhecê-lo, respeitá-lo, defendê-lo, promovê-lo, nomeadamente pela prossecução
da justiça social, que assegure a todos condições indispensáveis a uma vida
digna.
É pela vida, e pelos diversos direitos que o direito
à vida pressupõe e reclama, que precisamos de lutar, e não por práticas de
morte. Como observa a declaração da Conferência Episcopal, a Igreja não «deixa
de compreender e sentir as tragédias psicológicas, morais e sociais que levam
tantas mulheres à prática desesperada do aborto. Ela sabe que muitas das culpas
maiores de grande número de abortos são de quem engana, explora e abandona as
mulheres, mais vítimas que culpadas desses abortos, ou então da própria
sociedade que gera e mantém condições económicas, sociais e morais degradantes
para a sua vida pessoal e familiar».
Por isso, a questão do aborto passa pela adopção de
medidas sociais, familiares, morais e culturais que lhe combatam as causas, e
não por medidas legislativas de despenalização, para as quais o Estado não tem
legitimidade. Pois, sendo o aborto voluntário a destruição de uma vida humana, é
ilegítimo que o Estado legalmente o aceite e, ainda pior, venha depois a
colaborar na sua execução com os seus serviços e hospitais.
Neste momento, o que vai ser
discutido e votado na Assembleia da República já não é, infelizmente, só a
despenalização do aborto, já admitida por lei há 13 anos. É o alargamento das
condições em que poderá ser feito, ou quanto aos prazos, ou quanto aos motivos
(motivos que, num dos projectos, para as primeiras 12 semanas, são mesmo
inteiramente dispensados). Este alargamento não surpreende, porque a decadência
também tem a sua lógica. Quando em 1984 se consagrou a despenalização, não era
difícil prever que se chegaria a este ponto; e a outros se chegará. Em todas as
nações que adoptaram procedimento semelhante, o número de abortos, mesmo
clandestinos, não cessa de aumentar; e as razões invocadas também não. A sua
prática é em nossos dias uma tragédia imensa. Alguns políticos comparam Portugal
com outros países da Europa, a que chamam neste caso particular mais
«avançados», e querem seguir-lhes o modelo nesta escalada de morte. Triste
modelo!
Pelas graves responsabilidades que derivam da sua fé
cristã, bem como por aquilo que devem à sã edificação do seu País, os cristãos a
quem dirigimos a presente Nota, especialmente os que se encontram nos centros de
decisão e os que mais podem contribuir para formar uma opinião pública correcta,
não abandonem aos outros o que podem e são moralmente obrigados a fazer. A
questão do aborto, agora de novo suscitada, põe à prova a consciência dos
cristãos, desafiando-os a que estejam lúcida e activamente presentes na
sociedade portuguesa.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1997
|