1. É-me grato tomar a palavra no encerramento
deste "Congresso pela Vida" e felicitar os seus organizadores. A civilização
cristã é uma cultura da vida, enraizada no carácter sagrado da pessoa humana que fundamenta a sua dignidade. Numa época em que, numa perspectiva
pragmática, este respeito pela vida humana, sem deixar de ser
afirmado, vai sendo relativizado, nunca será demasiado o esforço de proclamar
esta cultura da vida, influindo na cultura ambiente e nas consciências
individuais
2. Sintoma desta alteração dos valores de uma
cultura da vida, entre nós, é a nova iniciativa legislativa, apresentada pelo
partido que apoia o Governo, que visa alargar, ainda mais, as condições em que o
aborto será legalmente permitido. Esta iniciativa divide, escusadamente, os
portugueses numa questão fundamental; mais, segundo resultados de sondagens
recentemente tornados públicos, gera uma clivagem entre a Assembleia Legislativa
e os cidadãos que, na sua maioria, pensam não estarem os deputados mandatados
para legislarem sobre a matéria
A doutrina da Igreja sobre a ilegitimidade de todo e
qualquer aborto voluntariamente provocado é clara e não constitui, penso eu, surpresa
para ninguém. Aliás a estratégia dos defensores da legalidade do aborto parece
ser não tanto contestar que a Igreja tenha a esse respeito uma doutrina clara, mas
antes
mitigar a sua influência na opinião pública, considerando-a uma posição
religiosa, que só os crentes podem ter em conta no foro da sua consciência. Ora
esta circunstância pede-nos que apresentemos a doutrina da Igreja de
forma clara, positiva e fundamentada, de modo a interpelar as
consciências
Não se trata de uma questão religiosa, com católicos
de um lado e não católicos do outro; não é uma clivagem política, entre esquerda
e direita. É uma questão cultural, no que a cultura tem de mais profundo e
objectivo: o respeito pela vida humana, fundamento da moral e do
direito
3. O fundamento da doutrina da Igreja está na
convicção de que no feto, desde o primeiro momento da concepção, subsiste uma
pessoa humana, com uma alteridade em relação à própria mãe, sujeito de direitos,
sendo o primeiro e fundamental o direito à existência
João Paulo 1I resume, assim, a posição da Igreja:
"O
ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção
e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da
pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser
humano inocente à vida".
Esta convicção de que, desde o primeiro momento da
concepção, estamos perante um ser humano, não é apenas filosófica, mas
científica.
Perante os avanços da ciência genética, ninguém o
pode, honestamente, negar. A vida humana é um processo evolutivo que começa na
concepção, se estrutura no desenvolvimento e crescimento, se define na educação
e na liberdade, que se interrompe fisicamente, na morte, mas que continua, para
além da morte, em busca da plenitude desejada e anunciada. Em todas estas
etapas é o mistério da pessoa humana que está em causa.
4. Esta certeza da individualidade do feto,
como pessoa, faz cair por terra algumas das razões alegadas pelos defensores da
legislação da interrupção voluntária da gravidez. A afirmação de que não se sabe
em que momento o feto começa a ser pessoa, deixa de ter sentido. Aliás toda a
mulher que espera um filho, desde o primeiro momento em que tem a notícia dele,
chama-lhe "meu filho"
Pretendem outros fundamentar a legalidade do aborto
no direito da mulher ao seu próprio corpo. Aliás um colunista bem conhecido
pretendia fundamentar nesse direito, a que ele chamava fundamental, a recusa do
próprio referendo. Direitos fundamentais não se referendam, escrevia ele, com o
que eu posso estar de acordo, quando o direito fundamental em questão é o
direito à vida.
Aliás o direito de cada um de nós sobre o próprio
corpo tem limites: ninguém tem o direito de se automutilar.
Mas no caso da mulher-mãe, ela não tem direito sobre
o corpo de outra pessoa, que ela gerou e nela cresce para a vida, numa
convivência que é comunhão vital. A maternidade é o que de mais sublime pode
acontecer à mulher. Nada se assemelha tanto, neste mundo, ao coração de Deus
como um coração de mãe. É o dom da vida, num diálogo de amor, que encontra a sua
primeira expressão na convergência biológica de todo o seu ser de mulher para a
nova vida que desponta.
Ser mãe é exigente, supõe riscos, exige audácia. Mas
a ousadia do risco é apanágio da mulher: arrisca no amor, arrisca no dom,
arrisca no sofrimento e no sacrifício, arrisca na vida. Há maternidades
difíceis, é certo, que exigem um suplemento de coragem e de audácia. Cerremos
fileiras, para estarmos todos ao lado dessas mulheres, apoiando-as nessa luta
pela vida. Não as ajudamos facilitando-lhes a desistência e o
fracasso!
5. Uma outra razão apontada é a luta contra o
flagelo do aborto clandestino, chegando a acusar-se a Igreja de hipocrisia, como
se ela, com a sua intrépida defesa da vida, fosse responsável por esse mal
social. Nós reconhecemos que o aborto, clandestino ou legal, é um drama de
proporções gigantescas.
Achamos que a resposta que se pretende dar a esse
drama, tornando-o legal, é uma falsa resposta. Falsa porque não resolve,
sabemo-lo todos, o drama do aborto clandestino, dramática, porque não podendo
conter um mecanismo de morte, o torna legal.
A resposta a esse drama não é fácil nem imediata.
Precisamos todos de dar as mãos de modo a tudo fazer para apoiar as mães em situações
difíceis, ajudando-as a ganharem, nelas, a batalha pela vida
6. Finalmente referirei, ainda que
sucintamente, algumas consequências culturais de toda e qualquer legalização do
aborto.
6.1 - Significa uma ruptura grave entre a ordem
jurídica legal e a ordem moral. Uma sociedade justa faz leis justas, que
encaminham os cidadãos para a prática do bem. As leis deveriam instaurar e
reforçar uma ordem moral.
Ao contrário, o aborto pelo facto de passar a ser, em
certas circunstâncias, legal, não deixa de ser imoral.
Uma lei dessas só pode ser rejeitada e não respeitada
por todos os homens e mulheres de consciência recta.
6.2 - É uma lei que agride os fundamentos de uma
civilização que encontra a sua mais apregoada expressão na defesa da dignidade
da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais. A nossa civilização
ocidental, muito influenciada pelo judaísmo e pelo cristianismo, tem um grande
apreço pela vida. Cada uma destas cedências significa retrocesso na construção
de uma civilização construída sobre o respeito pela dignidade do homem. Não
podemos ser, noutras frentes de batalha, paladinos da defesa dos direitos
humanos e claudicar no que de mais elementar existe na defesa desses direitos: o
direito de viver, o direito de nascer.
7. Quero também aproveitar esta ocasião para
definir claramente a minha posição pessoal acerca da hipótese de referendar a
legalização do aborto.
O Povo português não tem mais legitimidade do que a
Assembleia da República para aprovar a legalização do aborto. A hipótese de uma
tal lei ser aprovada em referendo não torna o aborto provocado menos imoral. O
referendo nunca legitimará o aborto.
Mas perante a iminência da aprovação de uma tal lei,
pelo Parlamento, os deputados e os cidadãos têm o direito de reclamar o
referendo, para que não se corra o risco de legislar, contra a vontade da
maioria, em matéria tão delicada e tão grave. Por outro lado, será sempre
legítimo referendar uma lei abortista.
Em qualquer caso, se vier a ser decidido, nos termos
da lei, sujeitar esta matéria a referendo, a Igreja deverá empenhar-se na
campanha pelo "não".
Que Deus ilumine a consciência de quem decide.
Rezemos sem cessar para obter d'Ele essa graça para a nossa nação. E que Ele
proteja, com a Sua bênção, todas as mães, sobretudo aquelas a quem se põe o
dilema de uma decisão tão dramática.
Que para além de todas as dificuldades, possa
prevalecer a força do seu coração maternal de mulheres. |