A recentíssima aprovação, pela Assembleia da República, de
um novo pedido de referendo sobre a questão do aborto veio recolocar na
ordem do dia a temática tão séria quanto melindrosa da vida humana
intra-uterina e da sua protecção.
Infelizmente, a discussão tem sido apenas processual, determinando-se até
quando é que pode ser convocado o referendo, se pode ser realizado nos
períodos eleitorais ou qual a razão de ser de tal não poder acontecer
juntamente com as eleições segundo a actual versão da Constituição.
A certa altura, tudo parece reduzir-se a um esquema mais ou menos táctico,
em que cada passo espera pelo passo do adversário, com todo o esvaziamento
substantivo que lhe vai sendo inerente.
E esta tendência chega mesmo aos dirigentes dos partidos que, em vez de
dizerem o que pensam, mesmo a título pessoal e não em nome dos partidos
que dirigem, se limitam a fazer análises de prioridade política e, assim,
se vão coibindo de manifestar a sua posição nessa matéria.
A questão da despenalização do aborto sempre tem sido e espero que volte a
ser uma questão substancial, de natureza cultural e civilizacional, com a
importância de por ela passar a identidade de uma sociedade.
Só que não deixa de espantar que a pretendida realização do referendo
sobre a despenalização do aborto surja num directo contexto
político-eleitoral, sem que se cuide verdadeiramente de saber que esforços
foram realizados para evitar os dramas humanos que lhe estão associados,
como se houvesse um qualquer milagre em que a simples decisão referendária
pudesse resolver algum problema real.
Por outro lado, muitos têm feito crer que Portugal é, nesta matéria, um
dos países mais atrasados do Mundo, com uma legislação "cavernícola",
feita contra as mulheres e contra os ventos da modernidade ou, talvez
melhor dizendo, pós-modernidade.
A actual legislação portuguesa aceita a não penalização do aborto nas
circunstâncias particularmente dramáticas de aborto eugénico, terapêutico
e criminológico, tendo parecido ao legislador que estas seriam causas
fortes para justificar a eliminação da gravidez.
E essa é uma legislação que se afigura perfeitamente equivalente às outras
legislações europeias, tanto nas indicações possíveis do aborto não
punível, como nos prazos em que tal acto vem a ser praticado.
O que está de novo em causa - como estava em 1998, quando foi feito o
referendo, que terminou com a vitória do "não" - é a possibilidade de se
dar um passo qualitativo de grande monta, que é a aceitação do aborto
livre ou a pedido, normalmente fundado em razões pessoais, económicas e
sociais.
Quer isto tudo dizer que, no caso de este passo ser dado, cabe aos
intervenientes - mãe e técnicos de saúde - disporem das condições de
sobrevivência de um ser humano apenas com base em razões que,
valorativamente, lhe são inferiores, tal como se percebe da dignidade da
pessoa humana, que impõe o primado da pessoa sobre o dinheiro ou sobre o
prazer.
Se, acaso, esta viesse a ser a nova solução, enfrentaríamos uma perigosa
inversão de valores, que também espreita quando se fala na questão da
possibilidade da legalização da eutanásia.
Este é verdadeiramente o cerne do problema, que não é tanto o da
incriminação da mulher que vai abortar, pois que na esmagadora maioria dos
casos não pode ser condenada por lhe faltar um juízo de censurabilidade da
sua conduta, atendendo ao estado de angústia e de medo em que se encontra.
Mas em toda esta matéria igualmente impressiona o silêncio com que é visto
o ser humano que, no ventre materno, se encontra em desenvolvimento, que
tem a nossa mesma natureza, mas que para seu azar não pode ser visto, não
pode ser escutado e não pode falar.
Não terá ele o direito a nascer e não teremos nós, a começar pelo Estado,
a obrigação social de lhe proporcionar todas as condições para ser bem
recebido?
Claro que sim. Só uma sociedade doentia é que pode acreditar que a
liberalização do aborto seja um bem. |