1.
Introdução
Eis-nos a falar de um
tema “picante”. Toda a gente parece querer saber o que a Igreja pensa sobre o
sexo, embora, também seja verdade que a maioria julga já saber. A ideia comum é
de que a Igreja, em relação ao sexo, é contra. Liga-se a Igreja ao sexo através
duma trama de proibições e limitações que tornam, nos tempos actuais de
exaltação de autonomia individual, irrelevante o que a Igreja diz. Até os
católicos, sem terem lido nenhum documento do Papa, o mais comum é julgarem
saber o que a Igreja diz e, não raro, discordarem dessas ideias, de modo a não
dar grande relevo ao ensinamento que é proposto.
Uma das ideias
dominantes é de que há uma evolução cultural, regra geral avaliada como
positiva, à qual a Igreja também adere, embora, como é costume dizer-se, com
atraso. A Igreja aparece atrás do “mundo”, mas, mesmo assim, a Igreja de hoje é
muito mais aberta do que foi noutras épocas! Tendo como pressuposta esta
evolução é fácil chegar-se à ideia da existência de vários ritmos na Igreja, os
que avançam mais depressa e os que são de tendência mais conservadora.
Não é
difícil, por isso, encontrar católicos, sejam eles bispos, padres ou leigos, a
dizerem coisas diferentes uns dos outros. Mas uma coisa parece unir todos os que
olham para a realidade deste modo, quer estejam do lado dos progressistas quer
se considerem conservadores, tratam das questões do sexo no âmbito do que se
pode ou não pode fazer, e aí parece-me estar o busílis da questão. Julgo ser
altura de deixarmos de discutir a partir de posições progressistas ou
conservadoras. Todas estas questões têm que ver com a vida e com os
comportamentos das pessoas, mas antes de mais com o significado que dão à sua
vida e à vida dos outros, ao corpo e à maneira de ele ser compreendido na
unidade da pessoa. O problema, por isso, não me parece ser olhar para o
permitido e o vedado, mas para o significado do corpo e do sexo da pessoa
humana.
A maneira da Igreja
tratar aquilo que se refere ao ser humano, embora nem sempre pareça, porque
muitas vezes alguns dos seus adulterem isso, é a de que antes de se procurar saber o
que fazer se deve saber o que é. Antes da ética está a ontologia. Antes do
comportamento está a natureza. Só assim temos uma moral cristã. Também nas
questões do sexo, antes de se saber o que é bom e o que é mau, o que é de
promover e o que é de proibir, o que se deve ou pode fazer e o que não se pode
fazer, é fundamental perceber de que se trata. Se falássemos apenas dos
comportamentos faltavam-nos os critérios de avaliação, porque lhes faltaria o
mais importante, que é saber o que está em questão, e o debate seria estéril,
como tantas vezes acontece quando estamos a tratar das questões éticas [1].
2. O Olhar
da Igreja para o Sexo
O olhar da Igreja para
o sexo tem que ver, antes de mais, com o olhar para o Corpo e para o seu
significado, mas este olhar está dentro de um horizonte ainda mais vasto, tem
que ver com o que é o homem. Significa que o sexo só pode ser entendido quando
na base está uma antropologia, um olhar para a pessoa. Para encontrar e
aprofundar o significado da realidade, sobretudo do ser humano, a Igreja
aproveita tudo o que as várias ciências vão descobrindo sobre a verdade da
natureza, mas ultrapassa tudo isso pela luz que lhe vem da Revelação.
Podemos encontrar
muitas afirmações do Magistério, dos Teólogos e dos Padres da Igreja que, ao
longo dos tempos, têm procurado aprofundar o significado e o modo de agir
correcto no que se refere às questões do corpo. Poderíamos, então, estudar toda
essa riqueza que certamente nos levaria a descobrir aspectos constantes e outros
mutáveis. Como cada uma das intervenções papais e cada esforço teológico têm um
contexto próprio, seria necessário perceber o que é circunstancial e o que é
essencial. Depois desse trabalho teríamos de verificar em que sentido houve uma
evolução e o que esta implicou quer no corpo doutrinal da Igreja, quer,
sobretudo, no estilo de vida dos crentes. Este esforço, que tem sido feito por
muitos, é importante e necessário, mas não cabe aqui nem eu seria a pessoa
indicada para o fazer. [2]
Estou certo que o
estudo da História destas questões traria muitas surpresas. Alguns estudos têm
sido feitos e mostram como a posição da Igreja se mantém constante quanto aos
princípios e nunca temeu ser arrojada no confronto com mentalidades dominantes.
Também hoje, ninguém nega que é a Igreja (pelo menos no nosso mundo ocidental)
quem mais enfrenta a mentalidade dominante, numa clara mostra quer da sua
liberdade quer da sua preocupação pelo homem real, que vai muito além de
qualquer subserviência, nunca pactuando com o mundo e com a pressão da
secularização.
Proponho-me, aqui,
apresentar aquela que me parece ser a perspectiva revolucionária da Igreja de
sempre mas, como nunca, agora tornada explícita pelo magistério de Karol
Wojtyla. [3]
a) A Pessoa Humana:
Imagem de Deus
“Deus disse: façamos o
homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes
do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis
que rastejam sobre a terra. Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus
Ele os criou: homem e mulher Ele os criou” (Gen 1, 26-27).
Desde sempre, a Igreja aprendeu que
para saber o que é o homem se deve partir do que Deus diz sobre ele. Contamos
com tudo o que a razão, através das múltiplas ciências vai descobrindo, mas o
sentido último, esse, só o Criador pode dar.
No relato da Criação,
quando nos é dito que tudo vem de Deus e nos é indicado, pelo menos em parte
importante, o que Deus quer de cada criatura, encontramos uma base para falar do
homem e da mulher, do que cada um é e da relação entre eles. Contudo, a Igreja
também acredita que tudo o que o homem é só se torna claro no homem Jesus de
Nazaré. “Ele é a Imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a Criatura”
(Col 1, 15).
Como diz o Concílio
Vaticano II, numa frase que o actual Papa não cessa de repetir: “Na realidade, o
mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece
verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro,
isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do
Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação
sublime” (GS 22).
O método cristão é o de
ler o relato do livro do Génesis através da fé em Jesus. Assim, podemos retirar
três grandes afirmações:
a) O homem foi criado na sequência de toda a natureza, mas para a dominar, com a
capacidade de conhecer e de querer, donde se conclui que, embora verdadeiro
membro da realidade física, ele é-lhe superior, como indica o facto de Adão dar
o nome aos animais;
b) Criada à imagem e semelhança de Deus, a pessoa humana tem com Deus uma relação
especial. Uma relação de tal maneira única que podemos dizer que o homem é um
ser essencialmente diferente das outras criaturas.
c) A criação do homem não está completa na criação do indivíduo. Só na criação da
mulher, outro mas do mesmo nível, igualmente indivíduo acima dos animais e com
uma relação especial com Deus, com quem pode haver uma verdadeira comunhão, se
pode considerar a criação completa. (É indicação inequívoca disto mesmo quanto é
dito no segundo capítulo do Livro do Génesis: “não é bom que o homem esteja só!
(...) agora sim esta é verdadeiramente carne da minha carne e osso dos meus
ossos”) [4].
Isto significa, antes
de mais, que o homem não se compreende a si mesmo se não se entender como
criatura dependente de Deus, embora distinta das outras criaturas. Por outras
palavras, embora cada indivíduo humano seja uma criatura física, parte
integrante do mundo material, não é a partir de um modelo terreno, mas divino
que o homem se compreende. É, por isso, impossível reduzir o homem ao “mundo”,
para usar uma expressão do Papa João Paulo II [5], e é redutor tratar do homem
como simples animal racional.
b) O Corpo,
sacramento da pessoa
O sexo é inerente ao
corpo, porém, este não pode ser entendido como um aspecto exterior da pessoa à
maneira do platonismo que o trata como um peso, nem na perspectiva materialista
que o trata como o tudo da pessoa. Temos de falar do corpo na unidade complexa
que constitui uma pessoa humana. Desde sempre o mistério do ser humano está no
facto de ele ser como que uma criatura intermédia: como os animais vive num
corpo, como os anjos louva a Deus. [6] Com frequência pensou-se nesta
complexidade numa perspectiva dualista, mas alma e corpo não são duas partes do
homem, são o mesmo ser, a mesma unidade complexa. Como diz Geiger, referindo-se
a São Tomás, “o homem não é apenas uma alma espiritual, nem apenas o seu corpo.
Ele é um ser composto de um corpo, como princípio material, e de uma alma, como
princípio formal. A união destes dois princípios é imediata, pois assegura a
existência de uma substância una e única, não apenas a união e a colaboração de
dois seres.” [7]
O actual Papa introduz
uma maneira de olhar para o corpo que mostra a sua importância e faz ver como
qualquer dos dualismos, o espiritualista e o materialista, são contrários à
verdade do homem. Explica que “o homem é um sujeito não só pela sua autoconsciência e autodeterminação, mas também na base do próprio corpo. A
estrutura deste corpo é tal que lhe permite ser autor de uma actividade
explicitamente humana. Nesta actividade o corpo exprime a pessoa.” [8]
Em síntese, se o homem
é imagem e semelhança de Deus, se o homem é uma unidade composta, não é este ou
aquele aspecto do homem, mas a unidade total que tem um sentido teológico, que
espelha a Beleza e a Verdade de Deus. É possível e necessário, nesta
perspectiva, falarmos de teologia do corpo, porque o Corpo é, na expressão do
Papa, sacramento da Pessoa, ou seja, tudo no homem, na unidade que o constitui é
chamado a tornar visível o Mistério invisível de Deus. [9] Qualquer falar sobre o
sexo que não tivesse isto em conta teria dificuldade em perceber o seu
significado.
Podemos aqui introduzir
uma primeira referência à virtude da castidade, pois o que com ela se pretende
é, exactamente, afirmar que tudo o que se refere ao sexo, assim como tudo o que
se refere a qualquer aspecto do homem, só tem sentido quando tem em conta a
dignidade e a totalidade da pessoa. [10]
c) A
Diferença sexual
Assumindo que o corpo é
manifestação da pessoa, então há uma diferença essencial entre o homem e a
mulher. Esta diferença sexual é determinante para que o homem se possa sentir
diante de alguém que, embora “carne da mesma carne”, é diferente.
Devemos dizer que, se o
corpo humano exprime a dimensão essencial da pessoa, é porque também ele é
reflexo do amor criador. Logo, a diferença sexual, no plano divino, entra no
âmbito da lógica do amor como oferta. Isto implica que a consciência da
diferente corporeidade de homem e mulher, se, por um lado, conduz à mútua
atracção, por outro lado, no plano de Deus, não tem nenhuma constrição e só se
realiza plenamente na mútua doação. Não é uma “química” que escapa à liberdade
da pessoa, para usar uma expressão que hoje alguns usam, mas fruto da vontade
inteligente que encontra no outro aquele a quem se podem oferecer e com quem
realizar uma nova unidade.
d)
Communio
Personarum
“O corpo, que através
da própria masculinidade ou feminilidade, desde o início ajuda ambos a
descobrirem-se numa comunhão de pessoas, torna-se, de modo particular, o
elemento constitutivo da sua união, quando se tornam marido e mulher” [11]. Por
outras palavras, se a constituir a unidade está uma decisão e um compromisso,
será numa vida em comum que esta se vai manifestar, num leito comum, numa mesa
comum, ou seja, concretiza-se nos vários aspectos da vida. O corpo, nesta
unidade, não está de fora, porque na pessoa não há separações. No ideal cristão,
que olha para o homem como um todo, a unidade das vontades e dos corpos de um
homem e de uma mulher, quando nasce do amor oblativo recíproco, é, segundo a
expressão do Papa, uma “communio personarum”. [12] (comunhão de pessoas)
“Podemos deduzir que o
homem se tornou imagem e semelhança de Deus não apenas por causa da sua própria
humanidade, mas também através da comunhão das pessoas, que o homem e a mulher
constituem desde o início”.
Então, se, como
dissemos, na base desta comunhão está o amor recíproco entre a pessoa homem e a
pessoa mulher e se o corpo exprime a pessoa, é bastante claro que a unidade das
pessoas também se exprime na unidade dos corpos. Deste modo “a unidade que se
realiza através do corpo indica, desde o início, não apenas o «corpo», mas
também a comunhão «incarnada» das pessoas. (...) A masculinidade e a
feminilidade exprimem o duplo aspecto da constituição somática do homem e
indicam, além disso, através das palavras de Gen 2,23, a nova consciência do
sentido do próprio corpo: sentido que se pode considerar como enriquecimento
recíproco”. [13]
Esta forma de entender
o amor como um enriquecimento recíproco, leva a considerar que “a masculinidade
e a feminilidade – isto é o sexo – são o sinal originário de uma doação criadora
de uma tomada de consciência por parte do homem – varão e mulher – de um dom
vivido, por assim dizer, num modo originário. Este é o significado com o qual o
sexo entra na teologia do corpo.” [14]
“A revelação, e ao mesmo tempo a descoberta originária do significado
esponsal do corpo, consiste em apresentar o Homem, homem e mulher, em toda a sua
realidade e verdade do seu corpo e sexo (estavam nus) e, ao mesmo tempo, na
plena liberdade de constrição do corpo e do sexo. (...) O corpo humano, com o
seu sexo, e a sua masculinidade e feminilidade, visto no mistério da criação é,
não só a fonte de fecundidade e procriação, como em toda a ordem natural, mas
também acolhe em si, desde “o princípio”, o atributo “esponsal”, ou seja a
capacidade de exprimir o amor, aquele amor em que a pessoa se torna dom e -
através deste dom – actua o sentido do seu ser e existir.” [15]
e) A
Fecundidade
A unidade entre homem e
mulher é a experiência de comunhão que manifesta a plena imagem divina a que a
criatura humana é chamada. Ao mesmo tempo, mostra a possibilidade que homem e
mulher têm de se enriquecerem mutuamente. Nesta perspectiva, “o sexo,
feminilidade e masculinidade, é aquela característica do homem – varão e mulher
– que lhes permite, quando se tornam “uma só carne”, submeter toda a sua
humanidade à bênção da fecundidade”. [16]
A comunhão de pessoas
implica que entre elas haja a consciência da vontade de enriquecerem a outra, ou
seja, a disposição concreta, humanamente decidida, de se oferecerem. A partir do
próprio facto de existirem criaturas, donde se conclui a gratuidade com que Deus
criou tudo e, em especial, o ser humano como coroa da criação terrena, sobressai
a convicção de que o específico da imagem de Deus é a oferta gratuita do ser e a
possibilidade que desse amor surjam novos seres. Se tudo foi criado por amor,
também o homem e a mulher encontram a sua plena humanidade no dom recíproco e
fecundo. A diferença sexual é, então, a manifestação do dom recíproco que
constitui a communio personarum, mas esta, ao ser a plena imagem da comunhão que
o próprio Deus é, também se expressa na fecundidade. Do Deus-Amor surgem todas
criaturas, no amor entre um homem e uma mulher, espelho do amor divino, são
geradas as novas criaturas. Assim, o enriquecimento recíproco faz com que os
dois se tornem três, como Deus é uma Trindade. O filho é a corporização do dom
recíproco que constitui a communio personarum.
f) O Pecado
Original
Tudo isto que até agora
se disse é uma tentativa de compreender o plano de Deus nas origens. Quando
Jesus respondeu aos fariseus “no princípio não era assim” (Mt 19,8) indicou
claramente que o ideal se mantém, ao mesmo tempo que reconhece a existência de
uma descontinuidade. Pela presença do pecado, o Homem histórico não vive como
Deus o criou. A vergonha da nudez de que fala o relato do livro do Génesis
referindo-se a Adão e Eva, põe em relevo como a desobediência à vontade de Deus
introduziu uma desarmonia no ser humano e entre as várias pessoas. O corpo e o
espírito, o eu e o tu, a criatura e Deus, ficam como que concorrentes. O corpo
parece dar ordens à vontade, o outro torna-se um adversário, de Deus temos de
nos esconder. O pecado das origens, faz entrar a luxúria, o medo e a vergonha
nos três campos: na unidade que cada pessoa é, na comunhão do casal humano e na
comunhão dos homens com Deus.
Não é o corpo nem o
sexo, mas o pecado que está mal. A ideia original de Deus é fantástica. É o
pecado, ou seja, o querer viver sem Deus, que faz o homem experimentar a
confusão, o medo e a experiência de tensão entre o querer o outro como uma coisa
para mim e o querer o bem do outro para que seja feliz.
Toda a harmonia
primordial, que dava ao Adão a imensa alegria de ter junto de si alguém que é
carne da sua carne, com quem se pode unir numa experiência de enriquecimento
mútuo, e que fazia sentir na diferença sexual o ponto de partida da comunhão, ao
desaparecer a vontade do homem fica confusa (o coração que deseja o outro para o
possuir) e a dimensão sexual torna-se fonte de tensão.
g) A
Redenção
A redenção, a vinda de
Jesus Cristo, a Sua morte e ressurreição, a Sua ascensão aos Céus, o envio do
Espírito Santo, trazem, de novo, a verdade do homem elevando-a à participação na
natureza divina. O Verbo de Deus fez-se carne, diz São João (Jo 1,14), quer isso
dizer que a carne não é incompatível com Deus, pelo contrário, é reflexo do
próprio Deus, mas também quer dizer que Deus decidiu redimir a carne. Jesus
obedeceu ao Pai, ou seja amou-o e confiou n'Ele de tal maneira que deu a Sua
própria vida: deste gesto surgiu a redenção, ou seja, a libertação do homem.
Agora o homem todo, corpo e alma, pode voltar a viver de acordo com o projecto
inicial de Deus, e, mais ainda, é elevado à “categoria” de filho de Deus,
participando da natureza divina. O Corpo é, por isso, Templo do Espírito
Santo [17], é não só expressão da pessoa, mas também lugar de encontro com Deus e
chamado à ressurreição. Sim, a verdade cristã acredita que também a carne, o
corpo, ressuscita. Não é isso sinal do significado total do ser humano?
3. Os temas
em debate
a) O Contexto
cultural
Por aquilo que acabámos
de reflectir, não é difícil perceber a distância que existe entre tratar das
questões do sexo tendo em conta a pessoa como uma realidade complexa e a partir
do seu valor como imagem de Deus, ou considerá-la como um conjunto de partes
pensadas como temas das várias ciências. Se agora vamos tocar nas questões da
moral sexual, fazemo-lo com a convicção de que esta tem de partir do olhar para
a realidade da pessoa e para o amor tendo em conta a totalidade dos factores.
Como já tinha dito o
actual Papa no início da década de sessenta: “O ponto de vista da moral
sexual só pode ser personalista. O objecto adequado desta moral não é
constituído só por problemas do corpo e do sexo, mas também pelos das pessoas e
pelos do amor entre o homem e a mulher, tão estreitamente ligado aos seus corpos
e ao sexo. (...) Esta é a razão pela qual a moral sexual não pode identificar-se
com a sexologia «pura», que examina os problemas sexuais unicamente do ponto de
vista bio-fisiológico e médico (...) O ponto de vista da sexologia médica
é por isso incompleto e deve ser subordinado à moral e às exigências objectivas
da norma que não admite que a pessoa seja tratada como um objecto de prazer e
exige que se busque o seu verdadeiro bem. Mas a saúde não é o seu único bem, nem
o supremo.” [18]
Depois de termos visto
a beleza e a importância do corpo no contexto da história de Deus com os homens,
ficamos com a incómoda sensação de que não só não se conhece bem o que é o Corpo
e a sexualidade, como também se tenta atacar esta perspectiva. Hoje, em
concreto, existem muitas frentes de debate/combate sobre estas questões. Algumas
tratadas neste Congresso. E é fácil ver como elas interpelam a Igreja, quer
porque exigem uma intervenção (quando está em jogo a pessoa humana e o
significado da sua vida, a Igreja não pode ficar de fora, Jesus Cristo fez-se
homem tornando tudo o que é humano importante) quer porque tudo aquilo que ela
sempre afirmou e que os seus fiéis procuraram viver é hoje posto em causa.
Vejam-se a publicidade, os programas de televisão e as revistas de maior
difusão, não digo só aquilo que é explicitamente promíscuo, mas também e
sobretudo o que vai minando a percepção da grandeza do homem sem parecer ser
ofensivo.
O drama começa com o
relativismo dos comportamentos. Nos anos sessenta é fácil perceber, em tudo
aquilo que veio a dar o Maio de 68 e que a ele se seguiu, uma revolta contra a
obrigatoriedade de comportamentos que consideravam sem justificação. Este
problema criou uma intranquilidade entre muitos, que em vez de aderirem ao
pensamento da Igreja e se deixarem formar, foram aliciados pelos vários saberes
que se apresentavam como libertadores do peso da Igreja. É disso sinal claro o
que se passou em torno da Humanae Vitae, e do dissentimento que a partir dela se
gerou. [19]
Mas, hoje, chegámos a um momento em que pela multiplicação de
desvios, alguns dos quais verdadeiramente escandalosos, também é claro que a
chamada revolução sexual desses anos está longe de ter sido uma experiência
libertadora. Da vontade de tudo fazer e experimentar, veio também a angústia de
muitos novos problemas. São hoje conhecidos os efeitos nas famílias que se
desagregam deixando muita gente triste, o aumento do número de mães
adolescentes, o exponencial aumento dos abortos e o uso promovido e apoiado pelo
Estado de contraceptivos, sem olhar a outras consequências… Tudo parece ter de
estar ao serviço da convicção generalizada de que ser livre é não ter limites.
Como diz Pierre Manent, ao explicar em que consiste a mudança de mentalidade que
se passou com o surgir da modernidade, onde se quis explicitamente pôr de lado a
ideia de virtude: “este outro regime da política, esta outra lógica da acção
humana poderia ser caracterizada da seguinte forma: obtemos bons resultados em
política e mesmo “cidades virtuosas”, de maneira mais segura fugindo do mal do
que procurando o bem” [20]
Tornou-se, de facto,
regra moral número um, mesmo mantendo a ideia cristã de que o destino do homem é
a felicidade ou perfeição de si mesmo [21], que a única maneira de alcançar esse
fim é evitar a dificuldade. Deste modo o proibido e o que não se deve fazer
aparecem como obstáculos. Toda a lógica da virtude, quer ela viesse de uma
mentalidade helénica ou cristã, quer ela tivesse a dimensão ascética das
religiões orientais, ao indicar a importância de se percorrer um caminho árduo
para se chegar a metas elevadas, são inconcebíveis. Deixámos de procurar
alcançar a perfeição para procurar não ter dificuldades. Estas ideias terão tido
origem num punhado de pessoas, de filósofos ou políticos, mas hoje estão,
claramente, difundidas por todo o lado.
b) As questões morais à
volta do corpo
As questões morais à
volta dos assuntos do sexo enraízam-se no significado que se dá ao corpo e à
pessoa. É exactamente por ter uma compreensão elevada e consistente sobre o
significado da vida e do corpo, incluindo a dimensão sexual, que a Igreja não se
cansa de alertar para o que se passa e de propor a castidade como virtude.
Vimos que o corpo não é
objecto, mas é sacramento da pessoa. Como então calar diante de tudo aquilo que
trata o corpo como um objecto. Podem tentar justificar a pornografia [22] e a
prostituição [23] com apelos à liberdade, mas antes de mais é de pessoas que
fazem, em geral contra a sua própria vontade, do seu corpo um objecto para
outros consumirem que estamos a falar.
Vimos que pelo corpo,
homem e mulher se oferecem mutuamente, numa entrega que vai muito além do prazer
físico, que abraça o todo da pessoa. Como então procurar justificar a
masturbação, como se o objectivo do sexo fosse um prazer a todo o custo, como se
a sexualidade não fosse, precisamente, uma dimensão do ser social. [24]
Vimos que o Criador, ao
fazer o homem e a mulher à Sua semelhança lhes deu um corpo distinto para cada
um na sua unidade se poder oferecer ao outro. Como justificar a homosexualidade
sem um juízo crítico, como achar que o corpo é indiferente para a orientação
sexual. [25]
E se marido e mulher se
unem para constituírem uma comunhão aberta à vida, na concretização da sua
verdade como imagem e semelhança de Deus, há toda uma série de questões que não
são secundárias no que se refere à fecundidade e à forma de a integrar na vida
do casal. [26]
A fecundidade está
sempre ligada à sexualidade, é este o caminho natural: que a entrega amorosa,
recíproca e total entre um homem e uma mulher se torne a origem de novas vidas
humanas. Insisto na ideia de entrega total, pois é nela que percebo o menos que
são os métodos artificiais de contracepção. A unidade entre a procriação e a
unidade de duas pessoas é um dado antropológico fundamental, como reconhecem até
os psicólogos.
Os corpos que se
unem na atitude de oferta recíproca também são fonte de prazer, mas não podemos
pensar que seja verdadeiro um prazer desligado do resto dos sentimentos e
aspectos de cada pessoa envolvida, pois o verdadeiro gozo abraça a pessoa toda e
nunca apenas o seu corpo. Como não criticar, como acções que diminuem o ser
humano, todas as relações sexuais desligadas de um compromisso de vida, aquilo a
que se chamava na linguagem da moral fornicação [27] e hoje se chamam
relações pré-matrimoniais ou extra-conjugais. Isto, claro, sem falar das
promiscuidades, hoje em dia até exaltadas por grupos que têm acesso às
publicações do ministério da Saúde e das comissões governamentais como a da luta
contra a Sida, como as aberrações que são o sexo em grupo, as experiências com
desconhecidos, as trocas de casais, etc.
O corpo é sacramento da
pessoa, não é plenamente humana a relação sexual que não envolva a pessoa toda,
com a sua maturidade, com os seus valores, etc. Como não condenar explicitamente
a pedofilia ou a prática de sexo entre jovens.
A Igreja, quando acha
mal uma coisa, não pode ter medo de ir às raízes. As críticas que a Igreja tem
feito à educação sexual nas escolas, sobretudo nos moldes em que é feita, têm
que ver com este problema. Sem maturidade, falar de sexo é convidar a
experiências para as quais não se está preparado. Todos são unânimes na crítica
à pedofilia, mas comecemos por prevenir que as nossas crianças não sejam
provocantes para com os seus coetâneos. Não se tenha como natural apresentar a
crianças preservativos e pílulas, como se fossem objectos de uso banal. Não se
fale de sexo com a exclusiva preocupação sanitária. Tudo isso, que se tenta
passar numa proposta de educação sexual amoral, é, na verdade, um ataque à
integridade de cada jovem que os pais e outros intervenientes na acção educativa
nunca deveriam aceitar.
c) As
virtudes
O corpo está ligado à
vontade na unidade da pessoa, por isso, a sexualidade activa tem que ver com a
vida conjugal e com a fidelidade. Promover a castidade, a fidelidade e o sentido
de compromisso não serve só para garantir uma sociedade tranquila! É um
verdadeiro serviço à verdade da pessoa, porque é numa relação duradoura e
sagrada, indissolúvel e aberta à vida, que se tem a experiência completa do ser
homem e do ser mulher.
Claro que desde Jesus
Cristo, tendo a História entrado na sua fase definitiva e escatológica, pela
graça que vem d'Ele e que chama determinadas pessoas para uma consagração total,
também a virgindade consagrada e o Celibato são formas integradas de se viver a
sexualidade, porque também aí existe uma perspectiva de amor e de oferta por
amor que realiza plenamente a pessoa. O celibato não é o cancelamento, mas uma
das formas da pessoa, pela graça de Deus, amar com todo o seu ser.
À castidade e à
fidelidade, virtudes constituintes do ser humano, podemos juntar o pudor como
aquela virtude que protege o mistério da pessoa e do amor [28]. Num mundo que dá
tanta importância ao que se vê, que tenta ser verdadeiramente “bisbilhoteiro”,
falar de pudor é escandaloso. Mas proteger a intimidade da pessoa para que esta
não se torne um objecto, é sinal de que se reconhece o seu valor.
Claro que toda a
educação para as virtudes, muito mais importante do que a educação sexual nos
moldes que entre nós têm sido propostos pela APF, exige a constatação da
fragilidade do homem. É aí que o evangelho se torna mais eloquente. Na verdade,
só com a graça de Deus o homem pode vencer o mal e alcançar a vida verdadeira.
Nesse sentido seria muito importante tratar da relação entre a vida sacramental
e a vida sexual. Pois estou certo da relação íntima entre ambas.
4.
Conclusão
A Igreja e o sexo. Eis
duas realidades profundamente unidas, não estão em lugares opostos, é o mundo
que desligou o agir do seu significado, que desligou o prazer corporal do
sentido da vida, que desligou o corpo da vontade, que desligou a sexualidade da
personalidade, é este mundo que fez novos escravos, novos viciados, novos
antagonismos. A bem dizer, é o mundo que é contra o sexo, porque, para citar o
título de uma exposição, que está em Lisboa: “o corpo é um objecto de desejo”.
Quando o corpo é objecto, o sexo é o botão de ligado ou desligado, a pessoa está
fora, a felicidade está reduzida.
O que a Igreja diz é,
por tudo isto, a favor do homem e da mulher. Não é contra, mas pró. Claro que
desde o pecado original tudo o que seja verdadeiramente humano só pode ser
vivido plenamente através da graça redentora de Cristo, Novo Adão, que cada um
tem de acolher e com a qual tem de se vencer a si mesmo e às más inclinações.
Assim, a Igreja pretende explicar o significado, indicar o caminho e dar o
alimento para esse caminho.
Notas
[1] Alasdair
MacIntyre, After Virtue de 1981: “A característica mais marcante das expressões
morais contemporâneas é de que grande parte delas é utilizada para manifestar
discórdias; e a característica mais evidente dos debates nestes desacordos é
serem intermináveis. Com isto não estou só a dizer que esses debates se
prolongam até à náusea (ainda que o façam), mas também que não parecem poder
provar qualquer conclusão legítima. Parece que não existem meios racionais para
garantir o acordo moral na nossa cultura.”
[2] A título de
exemplo podemos referir: Comissão Teológica Internacional, De doctrina Catholica
sacramenti matrimonii (1977); Angelo Scola, Il Mistero Nuziale I (1998) e
II(2000), Carlo Rocchetta, Il Sacramento della Coppia (1997); Augusto Sarmiento,
El Matrimónio Cristiano (1997); A. Sarmiento – J. Escrivá-Ivars, Enchiridion
Familiae (1992). Para uma abordagem da forma como a Igreja abordou as questões
da vida familiar e conjugal desde o século XVI: Agnès Walsh, La Spiritualité
conjugale dans le catholicisme français XVIe-XXe siècle
(2002).
[3] O actual Papa
é quem na Igreja mais tem tratado destas questões. Já o fazia antes de ser
eleito Papa, quer como padre quer como arcebispo de Cracóvia. Contam-se entre as
suas mais importantes intervenções: Amor e Responsabilidade (1962); as
catequeses proferidas nas Audiências Gerais de quartas feiras entre 5 de
Setembro de 1979 e 4 de Julho de 1984, num total de 133 catequeses que tratam em
profundidade estes temas; a Exortação Apostólica Familiaris Consortium de 1981,
a Carta às Famílias de 1994 e, ainda, a Carta Apostólica Mulieris dignitatem de
1988 e a Carta às Mulheres de 1995.
[4] O Papa João
Paulo II fala disto dizendo: “As palavras do livro do Génesis, «não é bom que o
homem esteja só» (Gen 2,18), são como que um prelúdio da narração da criação da
mulher”, Uomo e Donna lo créo, catechesi sull’amore umano”,
54
[5] João Paulo
II, Audiência geral de 12 de Setembro de 1979, 4
[6] António dos
Reis Rodrigues, Doutrina Social da Igreja (1991): “O homem encontra-se «na
fronteira entre as criaturas espirituais e as criaturas corporais» (São Tomás de
Aquino, Suma Teológica I q77 a2). Não é um anjo nem simples animal, mas tem
alguma coisa de um e outro. Por meio do corpo está mergulhado no tempo e no
espaço, sujeito à natureza material. Por meio do espírito, situa-se fora do
tempo e do espaço, tem capacidade de emergir da natureza material (...)” p.
27.
[7]
Louis-Bertrand Geiger, Penser avec Thomas d’Aquin, 24.
[9] Uomo e
donna... 90-92
[10] CIC 2337: “A
Castidade significa a integração conseguida da sexualidade na pessoa, e daí a
unidade interior do homem no seu ser corporal e espiritual. A sexualidade, na
qual se exprime a pertença do homem ao mundo corporal e biológico, torna-se
pessoal e verdadeiramente humana quando integrada na relação de pessoa a pessoa,
no dom mútuo total e temporalmente ilimitado, do homem e da mulher. A virtude da
castidade engloba, portanto, a integridade da pessoa e a integralidade da
doação.”
[12] “A narração
da criação do homem, no primeiro capítulo, afirma desde o início e directamente
que o homem foi criado à imagem de Deus enquanto varão e mulher. A narração do
segundo capítulo, por sua vez, não fala de imagem de Deus, mas ele revela, no
modo que lhe é próprio, que a completa e definitiva criação do homem se exprime
no dar vida àquela communio personarum.”, p. 59
[17] 1Cor 6,19:
“ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e
que recebestes de Deus? ... e que portanto não pertenceis a vós mesmos? Alguém
pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso
corpo.”
[18] Karol
Wojtyla, Amor e responsabilidade, 256.
[19] Cf. Janet E.
Smith; Humanae Vitae, A generation Late, 1991
[20] Pierr
Manent, La Cité de l’homme, 61
[21] Cf. São
Tomás de Aquino, Suma Teológica, I IIae q1 a7: “o fim último pode ser
considerado de duas maneiras: uma referindo-se à essência do fim último; e outra
àquele em que se encontra o fim último. No primeiro caso todos estão de acordo
em desejar alcançar a sua própria perfeição, e isto é o essencial do fim último.
(…)”
[22] Catecismo da
Igreja Católica (CIC) 2354
[26] A propósito
da fecundidade deveríamos fazer referência à confusão em torno dos métodos
contraceptivos e apelar ao estudo do significado e dos métodos de uma regulação
da fertilidade por métodos naturais. É disso que trata a Humanae Vitae e tantos
outros documentos do Magistério, mas é sobretudo o actual Papa, nas suas
catequeses sobre o corpo humano, que faz a explicação
completa.
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