Por uma Igreja Sinodal: Igreja que escuta - Catequese Quaresmal de Dom Virgílio (20 de Março)

CATEQUESES QUARESMAIS DO BISPO DE COIMBRA
IGREJA DE SANTA CRUZ DE COIMBRA

 

III. POR UMA IGREJA SINODAL: IGREJA QUE ESCUTA

 

  1. A escuta segundo os documentos do Sínodo

Uma das atitudes que mais sobressaem da reflexão sobre o modo de ser da Igreja Sinodal é a de escuta. É explicitamente referida e pedida pelos documentos preparatórios do Sínodo em curso e a Igreja Universal está a realizar um processo de escuta dos seus membros mais diretamente envolvidos na sua ação e de todos os que quiserem associar-se a este processo.

O Vademecum (documento orientador) do Sínodo resume numa frase o que se entende por escuta, quando diz” O núcleo da experiência sinodal é a escuta de Deus através da escuta recíproca, inspirada pela Palavra de Deus. Escutamo-nos uns aos outros para melhor ouvirmos a voz do Espírito Santo a falar ao nosso mundo de hoje” (nº 4, 4.1). Trata-se, por isso, de pôr toda a Igreja e todos os seus membros num processo de escuta da voz de Deus, Aquele que tem uma mensagem única de salvação a dirigir a toda a Igreja, pois é a Igreja de Deus; a inspiração pela qual a Sua voz nos chega é a Palavra revelada em Jesus Cristo, a quem justamente a escritura chama o Verbo de Deus; o Espírito Santo é quem atualiza a Voz de Deus em todos os tempos da Igreja, comunidade verdadeiramente inspirada porque cheia do Espírito, é quem nos leva ao discernimento adequado para o nosso tempo.

Por sua vez, o Documento Preparatório, considerando que toda a Igreja, todo o Povo de Deus é chamado a escutar e a ser escutado, pede que “os Pastores, constituídos por Deus «como autênticos guardiões, intérpretes e testemunhas da fé de toda a Igreja», não tenham medo de se colocar à escuta da Grei que lhes foi confiada”. E depois esclarece que “a consulta do Povo de Deus não exige a assunção, no seio da Igreja, dos dinamismos da democracia centrados no princípio da maioria, uma vez que na base da participação em qualquer processo sinodal está a paixão partilhada pela missão comum de evangelização e não a representação de interesses em conflito” (nº 14).

O mesmo princípio relativo ao significado da escuta no momento da realização do Sínodo pode e deve estender-se ao modo de ser e agir da Igreja que quer, toda ela ser sinodal na sua existência quotidiana. Para corresponder à sua identidade, a Igreja entende que é na “fecunda ligação entre o sentido da fé (sensus fidei) do Povo de Deus e a função magisterial dos Pastores que se realiza o consenso unânime de toda a Igreja na mesma fé” (Documento Preparatório, 14).

  1. Povo de Deus à escuta da Palavra revelada segundo o Apocalipse

De entre muitos passos da Escritura, o Livro do Apocalipse é dos que melhor nos ajudam a equacionar as diferentes dimensões do tema da escuta em Igreja. Situa-se cronologicamente no período da Igreja nascente, quando a comunidade, nascida na morte e ressurreição do Senhor e após o dom do Espírito Santo, dá os primeiros passos e descobre o seu caminho, no meio das perseguições a que está sujeita e na busca contínua da fidelidade à fé recebida.

Em tempos de configuração da comunidade cristã, é essencial ouvir a voz de Deus, deixar-se iluminar pelo Espírito Santo e esperar confiante apoiada na vitória de Cristo sobre a morte que vence todas as adversidades da situação presente. Situada no mundo, a comunidade procura conhecer os contornos da sociedade em que vive e procura ler os sinais que lhe abrem o caminho da fé, mas também os que se tornam grandes obstáculos à fidelidade do testemunho.

Todo o Livro do Apocalipse adota um quadro literário e teológico que parte da experiência da celebração litúrgica, a imagem mais real e que melhor define a pertença de todos os participantes à Igreja. O Povo de Deus reunido em assembleia que professa a fé no ressuscitado, é uma comunidade orante, que louva o Senhor, que suplica auxílio e força para as adversidades.  É acima de tudo o Povo que escuta a voz do Cordeiro, a voz de Jesus Cristo, Aquele em quem acredita, e que passou pela morte, mas agora está vivo, está sentado no Seu trono de glória e é a Palavra Viva de Deus.

A assembleia dos cristãos é a comunidade que escuta a Palavra da Salvação e Deus é quem fala e comunica por meio do Seu intermediário, o profeta, o apóstolo, o ministro que assume a missão de a proclamar na pessoa do que preside à reunião litúrgica. Tanto o que proclama como os que escutam estão sujeitos à mesma Palavra, mesmo que assumam na assembleia funções diferentes: um é o que lê e outros são os que escutam. Todos na assembleia eclesial adoram o mesmo Deus e elevam hinos de louvor a ação de graças a Jesus Cristo, o Cordeiro, todos professam a mesma fé e se deixam iluminar pelo Espírito Santo.

O Livro do Apocalipse sugere-nos três momentos fundamentais do processo de acolhimento da mensagem de Deus: o da escuta, o da interpretação e o da ação.

Em primeiro lugar, a escuta. Por sete vezes, ao dirigir-se a cada uma das sete igrejas já presentes na Ásia Menor, João, repete: “quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2, 7...). As sete igrejas simbolizam a totalidade da Igreja, Povo de Deus, que há de estar continuamente numa atitude de escuta, porque não vive da sua palavra, mas da Palavra de Deus.

A frase citada constitui uma fórmula de caráter sapiencial, uma exortação ou um modo forte de chamar a atenção de toda a assembleia eclesial para que escute a mensagem do Espírito de Cristo, mais do que simplesmente para que ouça, pois disso depende a oferta da possibilidade de “comer da árvore da Vida que está no Paraíso de Deus” (Ap 2, 7), a oferta da possibilidade de acolher a salvação de Deus.

A força desta fórmula repetida exprime a certeza de que a vida da assembleia eclesial não está em si mesma, mas na mensagem – entendamos, no Evangelho – que escuta. É claro para a comunidade das origens e para nós, que a Igreja sinodal é a que permanece numa humilde e confiante atitude de escuta da voz de Deus, pois Ele tem palavras de vida eterna a dizer-nos ainda hoje.

Em segundo lugar, a interpretação. Não basta ouvir a Palavra reveladora de Deus, é necessária sabedoria para poder interpretá-la. O Livro do Apocalipse sublinha esta necessidade quando oferece uma grande abundância de símbolos retirados maioritariamente dos textos apocalípticos do Antigo Testamento e refere: “quem tem ouvidos, ouça” (Ap 13, 7). Podemos entender nesta expressão um convite para interpretar e compreender o que se escuta, o que requer, de facto, a inteligência e a sabedoria que vem pela iluminação do Espírito Santo (Ap 13, 18).

É preciso descodificar e discernir o que nos quer dizer a linguagem que vem do alto, o mistério que contemplamos e que nos envolve, o mistério de Deus que se desenrola na história que vivemos e se vai revelando no hoje de cada geração. Deus tem um projeto de amor, de salvação e de condução do seu Povo que acompanha o decorrer do percurso da comunidade cristã e o percurso da humanidade. É preciso fazer o discernimento do seu significado para que seja acolhido aqui e agora pelos que têm a graça de ouvir e para que seja atualizado no concreto das realidades que a mesma comunidade está a viver.

O Documento Preparatório do Sínodo (nº 13) alude a este discernimento do significado da mensagem de Deus ao Seu Povo quando cita a Dei Verbum e diz: “o Povo de Deus cresce na compreensão e na experiência, «tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer graças à contemplação e ao estudo dos crentes, que as meditam no seu coração, quer graças à íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer graças à pregação»” (DV 8).

Acreditamos que a interpretação do significado das Escrituras e de toda a comunicação de Deus só se alcança pela meditação, pela contemplação, pelo estudo, pela oração e por meio de uma experiência de vida de fé que nos abra à sabedoria do Espírito.

Escutar o que o Espírito diz à Igreja e deixar-se iluminar para discernir em cada momento da história, é o caminho que a sinodalidade nos oferece. Não se trata, no entanto, de um exercício solitário, pois quem escuta e quem interpreta amparado pelo Espírito é sempre uma comunidade, a assembleia, ou seja, a ecclesia, a Igreja. O discernimento é, por isso, comunitário, pertence a todo o Povo de Deus, numa atitude verdadeiramente sinodal.

Em terceiro lugar, a ação transformadora da Igreja e do mundo.

O dia da escuta e da interpretação da Palavra de Deus é, especialmente o dia do Senhor, o domingo, o dia do Senhor Ressuscitado, como decorre da visão de João a quem é dirigida a revelação: “No dia do Senhor, o Espírito arrebatou-me e ouvi a trás de mim uma voz potente como de trombeta”, que dizia: «o que vais escrever, escreve-o num livro e envia-o às sete igrejas»” (Ap 1, 10). O domingo é o tempo privilegiado para a reunião da assembleia, para a escuta da Palavra, para a partilha, para fortalecer a todos em ordem à missão que assumem no mundo.

João é, por isso, convidado a entrar na esfera do divino que fala e manifesta a realidade do Senhor Ressuscitado e a comunicar à assembleia eclesial o que vê e ouve, para que ela possa olhar para si e para o mundo iluminada pela revelação. O objetivo não é outro senão levá-la a descortinar como agir concretamente a partir da fé nas realidades que conhece em si e à sua volta.

A Igreja, em contato com Cristo, que fala e mostra sinais, tem, assim, a capacidade de reconhecer as suas luzes e sombras, o bem e o mal que existem em si e no mundo, as suas obras, as suas fadigas e a sua constância (cf Ap 2, 2), a fim de se decidir a agir no sentido de transformar todas as realidades e as tornar verdadeiramente novas.

Condição indispensável para poder realizar esta missão, a Igreja precisa de fazer caminho na conversão e purificação de si mesma, segundo o imperativo forte, que se ouve na carta à Igreja de Pérgamo, “converte-te” (Ap 2, 16), e à Igreja de Laodiceia, “arrepende-te” (Ap 3, 19).

  1. A Igreja em que todos se escutam e que escuta o mundo

Neste contexto podemos situar a importância fundamental da escuta dentro da comunidade cristã como meio indispensável para conhecer melhor a sua realidade e a realidade do mundo em que faz caminho. Ao escutar o Senhor e ao conhecer, pela escuta, a sua situação histórica, a Igreja encontra a clarividência necessária para ver os caminhos que precisa de percorrer para concretizar no tempo presente e por meio da sua ação, “o hoje” da salvação de Deus. A atenção aos sinais de Deus e a atenção aos sinais do mundo fornece o quadro para o discernimento de toda a ação a empreender pela comunidade e por cada um dos seus membros.

Numa Igreja Sinodal, ninguém está a mais e todos têm o seu devido lugar no processo de evangelização. Como diz o Papa no Documento Preparatório (nº 15), “cada um tem algo a aprender. Povo fiel, colégio episcopal, bispo de Roma: cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo, o «Espírito da verdade» (Jo 14, 17)”.

Tornou-se ainda uma evidência que os fiéis leigos, por participarem do tríplice múnus de Cristo, profeta, sacerdote e rei, são protagonistas da missão a toda a Igreja confiada e segundo a sua condição. Além disso, os fiéis leigos “são a imensa maioria do Povo de Deus e temos muito que aprender com a sua participação nas diversas expressões da vida e das comunidades eclesiais, com a piedade popular e a pastoral de conjunto, bem como com a sua competência específica nos vários âmbitos da vida cultural e social” (Comissão Teológica Internacional – Sinodalidade na Igreja, 73).

É, por isso, urgente escutar a todos, de modo especial os que são chamados participar da mesma missão a partir do batismo que receberam. A atenção aos que estão fora da Igreja ou aos que nela têm uma atitude mais passiva ou estão mesmo em crise de pertença e de fé, tem igualmente relevância. Importa conhecer o que pensam, vêm e dizem os que estão nas margens ou mesmo de fora, para que tudo seja ponderado no momento da ação evangelizadora e do testemunho credível, pois todos são chamados à fé e a acolher o evangelho na situação em que se encontram.

Se não conhecer os anseios e gritos do mundo, a Igreja pode ficar desencarnada e fechada na segurança da sua fortaleza, mas sem levar aos homens de hoje com as suas alegrias, dores e esperanças, a mensagem salvadora, que é sempre nova.

  1. Atitudes a tomar numa Igreja sinodal à escuta

A primeira atitude que temos de tomar é a da purificação e da conversão do coração, da mente e da vida, a que nos faz especial apelo este tempo da Quaresma em que nos encontramos.

Quem não se converte fica ensimesmado, não sente a necessidade de escutar a voz de Deus nem de escutar as aspirações dos outros. A purificação do pecado pela confissão e pelo perdão de Deus, é sempre um sinal de que uma pessoa ou toda a comunidade se reconhece frágil e a precisar de auxílio divino e humano.

A segunda atitude que havemos de tomar consiste em nos integrarmos afetivamente na comunidade cristã e em participarmos na sua vida com entusiasmo e alegria. A celebração do domingo, do dia do Senhor, em que se escuta a Palavra, se reparte o Pão da Vida e se partilham as alegrias e dores, é essencial para o fortalecimento pessoal e comunitário.

A terceira atitude que acolhemos é a da disponibilidade para a ação transformadora do mundo, entrando diretamente em todas as suas dinâmicas e estruturas animados pela força do Espírito. Jesus dirige a todos o convite para sermos sal da terra e luz do mundo, o mesmo é dizer, o convite para que sejamos verdadeiros influenciadores da sociedade, tão precisada está de se deixar conduzir pelo Espírito da Verdade de que a Igreja há de ser fiel missionária.

Coimbra, 20 de março de 2022
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra


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