1. Recentemente, vieram a público reacções de um número considerável de pais,
professores e outros cidadãos perante iniciativas no domínio da educação da
sexualidade realizadas em escolas estatais, algumas delas a título experimental
por designação do Ministério da Educação. Em causa está um documento datado do
ano 2000, da responsabilidade conjunta do Ministério da Educação, do Ministério
da Saúde, da Associação para o Planeamento da Família e do Centro de Apoio
Nacional – Rede Nacional de Escolas Promotoras da Saúde, intitulado “Educação
Sexual em Meio Escolar: Linhas Orientadoras”. Os conteúdos e ideias que se
pretendem veicular, as metodologias propostas e a bibliografia sugerida como
base de trabalho, que serviram de suporte àquelas iniciativas, colidem com a
sensibilidade e as convicções do público referido.
Tratando-se de matéria particularmente delicada e controversa e dada a
pertinência de algumas das questões levantadas, a Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP), no seguimento de posições sobre a sexualidade humana já
anteriormente divulgadas em documentos recentes (1), apresenta, agora, uma
palavra que se pretende de iluminação do debate e de orientação e estímulo ao
empenhamento dos cristãos, particularmente as famílias, e dos cidadãos em geral.
2. A sexualidade é um dos núcleos estruturantes e essenciais da personalidade
humana, que não se reduz a alguns momentos e comportamentos, mas é, pelo
contrário, um complexo que se integra no pleno e global desenvolvimento da
pessoa. Tem uma dimensão biológica, evidente na diferenciação sexual, nos
mecanismos de reprodução, no crescimento e nos ciclos de mudança e aparência
física. Tem, também, uma dimensão psicológica, que se exprime no conjunto de
emoções e sentimentos que proporciona, na sua evolução com a maturidade e a
experiência, na influência sobre o auto-estima, na variedade das suas expressões
afectivas e no sentido em que proporciona segurança e comunicabilidade
interpessoal. Nesta relação se situa a dimensão social da sexualidade, uma vez
que os encontros e desencontros de uma relação contribuem para amadurecer, em
cada homem ou mulher, dinamismos de doação, de entrega, de abertura aos outros e
ao mundo.
Na perspectiva da revelação cristã, “o homem é criado à imagem e semelhança
de Deus, e o próprio Deus é amor. Por isso, a vocação ao amor é aquilo que faz
do homem a autêntica imagem de Deus: ele torna-se semelhante a Deus na medida em
que se torna alguém que ama” (2). Entender-se como pessoa humana criada por
amor e com a missão de amar é a premissa essencial para alguém atingir a
plenitude da realização humana. A sexualidade humana, correctamente entendida,
tem uma ligação profunda com o amor e só nele encontra o seu verdadeiro sentido.
Desta ligação resulta o papel central da sexualidade na vida humana, factor
decisivo para o desenvolvimento harmonioso da pessoa que só se atinge no amor.
É, também, um dado da revelação cristã que o ser humano é homem e mulher,
diferenciados sexualmente, e que se complementam numa relação de amor. E é na
referência a Deus, que é comunhão na unidade trinitária, que o homem e a mulher
encontram o modelo da comunhão perene, ideal sempre a atingir a partir da
vivência quotidiana da sua relação.
Estas características da antropologia cristã, porque radicam na revelação divina
e não resultam de uma qualquer elaboração social ou cultural, têm o carácter de
verdade objectiva. Por isso, constituem para os cristãos ideal a atingir, pelo
esforço educativo e pela acção da graça de Deus ao longo de toda a vida, e
critério indispensável para a avaliação das diferentes visões e propostas de
educação da sexualidade.
A educação da sexualidade não se resume a mera informação sobre os mecanismos
corporais e reprodutores, como tantas vezes tem acontecido, reduzindo a
sexualidade à dimensão física possível de controlar com vista à prevenção contra
o contágio de doenças sexualmente transmissíveis e o surgimento de gravidezes
indesejadas. Desta forma, deturpa-se o sentido da sexualidade, isolando-a da
dimensão do amor e dos valores, e abre-se caminho à vivência da liberdade sem
responsabilidade, pela ausência de critérios éticos, e à aceitação, por igual,
de múltiplas manifestações da sexualidade, desde o auto-erotismo, à
homossexualidade e às relações corporais sem dimensão espiritual porque o amor e
o compromisso estão ausentes.
“A sexualidade deve ser orientada, elevada e integrada pelo amor, o único que
a torna verdadeiramente humana. Preparada pelo desenvolvimento biológico e
psíquico, cresce harmonicamente e realiza-se em sentido pleno somente com a
conquista da maturidade afectiva, que se manifesta no amor desinteressado e no
dom total de si” (3) . A educação da sexualidade deve, pois, inserir-se no
processo global e contínuo da formação da pessoa.
3. A família é a primeira comunidade responsável pela educação das crianças, dos
adolescentes e dos jovens. É o lugar privilegiado onde, de forma vivencial e com
o esforço de todos os seus membros, se estabelecem relações interpessoais, cada
um se descobre a si próprio, se desenvolvem e assumem valores como “a
generosidade, a disponibilidade para partilhar, a compreensão, a tolerância, o
perdão, a contínua abertura à reconciliação, a solidariedade na ajuda mútua, a
fidelidade às pessoas e ao projecto comum, o respeito pela vida e pela dignidade
de cada elemento que integra a comunidade familiar, a intimidade construída na
ternura e na doação” (4).
Os pais têm o direito e o dever de educar os filhos, inclusive no referente à
sexualidade. O exercício desse direito-dever é anterior à intervenção de outras
instituições, para além da família, designadamente a escola. Essa
responsabilidade, inalienável e insubstituível, envolve o período da vida dos
filhos desde o nascimento à idade adulta.
Os pais são o primeiro modelo dos filhos, educando-os através do seu
comportamento e atitudes e do clima familiar que existe em suas casas,
nomeadamente na relação existente entre o pai e a mãe, e de cada um destes com
cada filho ou filha. Também educam para a sexualidade no contexto das
orientações e pedidos gerais que, habitualmente fazem aos filhos, desde muito
novos, e das respostas às questões e dúvidas que estes lhes vão apresentando.
Esta tarefa exige dos pais preparação adequada e contínua, de modo a
capacitá-los para o diálogo, em clima de simplicidade e abertura à comunicação,
que permita esclarecimento e orientação dos filhos. Mas, acima de tudo,
espera-se dos pais o testemunho dos valores da sexualidade, o que implica o
esforço permanente por a viverem com equilíbrio e sentido. Reconhecemos e
louvamos a generosidade e a coragem de tantos casais que, perante as pressões do
clima geral de permissividade e de indiferença ou hostilidade perante a
instituição familiar, lutam por manter a fidelidade ao compromisso matrimonial
que um dia firmaram e assumem a educação dos filhos como uma das primeiras
prioridades na organização da vida familiar.
As outras instituições nunca podem substituir os pais, mas devem ajudá-los no
cumprimento da sua missão educativa.
4. A escola tem um papel relevante no processo de socialização da pessoa,
fornecendo experiências e quadros de referência que prolongam e completam a
educação familiar. É insubstituível o seu papel na transmissão de conhecimentos
e no proporcionar variadas experiências culturais.
É sabido que a cooperação da família com a escola potencia a aprendizagem dos
alunos e promove um desenvolvimento mais adequado. No entanto, a escola é
subsidiária da família e, no campo da sexualidade, como noutros, compete à
família decidir as orientações educativas básicas que deseja para os seus
filhos, decorrentes dos seus valores, crenças e quadro cultural.
Do dever de escolher a educação adequada para os seus filhos, decorre, para a
família, o direito de cooperar no planeamento da educação da sexualidade na
escola, contribuir para a definição de objectivos e selecção de estratégias,
acompanhar o processo de tomadas de decisão, incluindo a selecção e a formação
dos professores, e as diversas fases de execução do projecto e a avaliação dos
resultados obtidos.
O facto de a educação da sexualidade constituir uma componente do actual sistema
de ensino básico e secundário, sustentada por legislação própria, não pode
conduzir à subalternização da família, nem impedir o direito de os pais não
aceitarem determinados projectos ou acções por os considerarem desajustados em
relação à perspectiva educativa que desejam para os filhos. Como noutra ocasião
já afirmámos, é tarefa fundamental do Estado “defender os direitos e deveres
educativos dos pais e apoiar as instituições que os completem na
responsabilidade da educação. Segundo o princípio da subsidiariedade, deve
completar a tarefa e missão educativa dos pais, sem, todavia, contrariar os seus
legítimos e justificados desejos, assim como, criar as estruturas
indispensáveis, escolas ou outras instituições, na medida em que o bem comum o
exigir” (5) .
A educação da sexualidade deve basear-se nas necessidades dos alunos. É destas
que derivam as metas e objectivos, que se referem a um quadro de valores
decorrente da noção de pessoa humana. Falhar na identificação dessas
necessidades e alhear-se do referencial ético compromete totalmente o programa.
É igualmente indispensável entender que os interesses dos alunos, tanto na
infância como na adolescência, embora constituam base motivacional adequada para
aprender, não se assimilam, inevitavelmente, às suas necessidades profundas.
5. É imprescindível ter em conta que o desenvolvimento da sexualidade apresenta
notáveis diferenças de ritmo, mesmo em indivíduos da mesma idade ou grupo, e que
estas têm de ser respeitadas. Não devem, por isso, antecipar-se informações, nem
incentivar dúvidas ou dificuldades que o processo desenvolvimental ainda não
proporcionou ou não aconselha.
O respeito pelos alunos não permite a utilização de jogos e de outras
estratégias, como o desempenho de papéis, que excitam a imaginação e exploram
sensações de forma manipulatória, ferindo a sensibilidade e a dignidade dos
alunos e não respeitando a sua intimidade e pudor. Tão pouco se poderão
considerar como padrão, comportamentos evidenciados por minorias, tal como o que
respeita às relações sexuais praticadas por adolescentes.
Se é necessário que as orientações gerais e os programas apresentem um elenco
coerente e bem fundamentado de objectivos e conteúdos, é indispensável, por
outro lado, que os métodos de trabalho e os suportes pedagógicos se harmonizem
com aqueles, de forma a não permitir desvios entre o ideal a atingir e os
resultados alcançados. Se tal harmonia é quebrada, os resultados serão
inevitavelmente negativos e afectarão globalmente a personalidade dos alunos,
comprometendo o seu desenvolvimento.
Quanto aos docentes, cabe-lhes um papel fundamental. Para além das competências
científicas e pedagógicas, requer-se, como formadores, maturidade afectiva e
humana, e fidelidade aos valores que sustentam os projectos propostos pela
escola. Só assim, poderão merecer a indispensável confiança por parte das
famílias.
Quanto à integração da educação da sexualidade na organização curricular,
qualquer que seja a modalidade escolhida (transdisciplinaridade, área específica
de formação, ou outras), há que garantir a qualidade formativa dos docentes, a
possibilidade de abertura da escola à colaboração de organizações exteriores, a
divulgação antecipada dos projectos, a clarificação das perspectivas, o direito
de opção das famílias e o respeito pela dignidade com que matéria tão delicada
merece ser tratada.
6. Contribuir para a educação da sexualidade das crianças, dos adolescentes e
dos jovens é uma responsabilidade de todos os cidadãos. Apelamos à participação
de todos, em especial dos cristãos – famílias, professores e jovens –, a quem
dirigimos o repto recentemente lançado por Bento XVI às famílias cristãs de
Roma:
“Continuai, pois, sem vos deixardes desencorajar pelas dificuldades que
encontrais (…) Hoje, um obstáculo particularmente insidioso na obra educativa é
constituído pela presença massiva na nossa sociedade e cultura, daquele
relativismo que, ao não reconhecer nada como definitivo, tem como última medida
apenas o próprio eu com os seus apetites, e, sob a aparência de liberdade,
torna-se para cada um uma verdadeira prisão. Neste horizonte relativista, não é
possível, portanto, uma verdadeira educação: sem a luz da verdade, mais cedo ou
mais tarde, cada pessoa é condenada a duvidar da bondade da sua própria vida e
das relações que a constituem, da validade do seu empenho em construir com os
outros qualquer coisa em comum” (6).
Lisboa, 23 de Junho de 2005
Notas
(1) Cf., entre outros:
Comunicado do
Conselho Permanente da CEP sobre o Projecto de Lei que “reforça as garantias do
direito à saúde reprodutiva” (1999); Nota Pastoral da CEP “Crise de
Sociedade, Crise de Civilização” (2001); Carta Pastoral da CEP
“Educação, Direito e dever –
missão nobre ao serviço de todos” (2002); Nota do Conselho Permanente da CEP
“sobre o problema da pedofilia” (2002); Carta Pastoral da CEP “A
Família, esperança da Igreja e do Mundo” (2004).
(2) BENTO XVI - Discurso por ocasião do Congresso Diocesano de Roma sobre a
Família (06 de Junho de 2005).
(3) CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA -
Orientações Educativas sobre o Amor Humano. Linhas gerais para a educação sexual
(1983), nº 4, apud CEP - Carta Pastoral Educação, Direito e dever – missão nobre
ao serviço de todos (2002), nº 11.
(4) CEP - Carta Pastoral A Família, esperança da Igreja e do Mundo (2004), nº 9.
(5) Cf. II CONCÍLIO ECUMÉNICO do VATICANO - Declaração Gravissimum Educationis,
nº 3, apud CEP - Carta Pastoral Educação, Direito e dever – missão nobre ao
serviço de todos (2002), nº 21.
(6) BENTO XVI - Discurso por ocasião do Congresso Diocesano de Roma sobre a
Família (06 de Junho de 2005).
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