Homilia do Sagrado Coração de Jesus - Assembleia do Clero - 03-06-2016

SOLENIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
ASSEMBLEIA DIOCESANA DO CLERO DE COIMBRA - TÁBUA

A Solenidade do Sagrado Coração de Jesus oferece-nos a oportunidade de parar um pouco para nos fixarmos no amor de Deus por todo o seu Povo e, portanto, por nós, seja qual for a nossa condição na Igreja. De um modo muito especial, nós, os sacerdotes, precisamos de nos deter na contemplação do coração de Deus que derramou o seu amor nos nossos próprios corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. De fato, se somos cristãos pelo batismo e ministros ordenados pelo sacramento da ordem, é graças a Deus que nos olhou e nos chamou, porque nos ama. Quanta humildade é precisa para aceitarmos o amor de Deus apesar de pecadores e para não nos atribuirmos o mérito de nada, nem do que somos nem do que fazemos!

A presença do Espírito Santo nos nossos corações, segundo a expressão da Epístola aos Romanos, verdadeiro dom de Deus, origina em nós uma realidade nova, qual marca fundamental da nossa identidade de cristãos, na comunhão com Deus, irmãos de todos os homens em Jesus Cristo e membros da Igreja na diversidade dos carismas e ministérios.
Desta presença do Espírito Santo em nós nasce a espiritualidade cristã, realidade que nos precede, que se cultiva e que se manifesta nas suas variadas expressões. Todo o cristão é chamado a incarnar na vida a espiritualidade cristã como a característica mais peculiar da sua existência. De acordo com os dons recebidos, com a vocação pessoal e com o estado de vida a que foi chamado, há de progredir e crescer como uma criatura espiritual e manifestar esse grande mistério da comunhão com Deus à qual foi chamado por meio do Espírito.
A grande debilidade da Igreja, do Povo de Deus em geral, dos consagrados e, em particular, dos ministros ordenados, encontra-se na sua grande pobreza espiritual. Se a humanidade passa por uma grande era do vazio a tantos níveis, como tem sido abundantemente referido por analistas e pensadores de todos os quadrantes, a Igreja e os cristãos sofrem de um imenso vazio espiritual, no sentido teológico do termo.

De algo semelhante nos advertiu o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, quando se referiu ao “mundanismo espiritual”, dizendo: “O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal” (93)... É uma maneira subtil de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2, 21) (94). Concretizando, o Papa refere-se depois ao subjetivismo que deixa a pessoa “enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos” (94), à autorreferencialidade própria de quem “só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros” (94), impede o acesso à graça ficando refém de um humanismo antropocêntrico (94) e cai na vanglória negando a “história da Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso” (96).
A conclusão do Papa é clara: uma Igreja dominada pelo mundanismo espiritual na pessoa dos seus membros, concretamente na pessoa dos seus ministros, “não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica” (95).

 Chegámos a um ponto fulcral da renovação da Igreja, que não poderá realizar-se segundo os desígnios de Deus se não voltamos a centrar-nos no essencial: a renovação espiritual de cada cristão, das comunidades cristãs, dos planos, dos métodos e dos objetivos da ação pastoral, das próprias estruturas eclesiais.
A Lumen Gentium apontou-nos este caminho quando, no capítulo V, declarou que todos temos, na Igreja, uma vocação comum, a vocação à santidade, que “deve manifestar-se, nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis” (39). E nós temos, porventura, descurado esta centralidade da vocação comum de todos os fiéis, perdendo-nos com muitas realidades secundárias e deixando de investir pessoal e comunitariamente na santificação da Igreja pela ação do Espírito Santo.
Não pode haver verdadeira ação da Igreja que não assente na espiritualidade cristã e não conduza a uma maior profundidade espiritual de todos os seus membros. Nomeadamente a liturgia e a oração, a evangelização e a catequese, a caridade, a transformação das realidades seculares, as diferentes formas e metodologias de ação pastoral, não cumprem a sua finalidade se não estão permeadas pela presença do Espírito que santifica e faz crescer os cristãos por dentro no sentido da fé, da esperança e do amor a Cristo e aos irmãos.
Por sua vez, a autêntica espiritualidade cristã não se confunde com o devocionismo, com o sentimentalismo, com o gosto de estarmos uns com os outros, com o conhecimento da totalidade da doutrina, com a aparência religiosa ou com o funcionamento impecável das estruturas da Igreja. Consiste sim em estarmos enraizados em Cristo, deixarmo-nos conduzir pelo Espírito e vivermos em Igreja a esperança da salvação.

A liturgia de hoje, Solenidade do sagrado Coração de Jesus, aponta-nos três dimensões fundamentais da espiritualidade cristã, que nós, os sacerdotes, havemos de acolher com humildade e alegria.
Uma espiritualidade centrada no mistério pascal de Jesus Cristo, que “morreu por nós quando ainda éramos pecadores”.
Na cruz, Jesus revela-nos definitivamente o amor de Deus, que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo. A misericórdia do Pai, eterna como o Pai, deixa de ser um mistério impenetrável para se tornar uma realidade visível e palpável por meio dos gestos, das palavras e da própria pessoa do Filho. Todos nós, que éramos pecadores, pudemos acolhê-la por meio da fé e tivemos acesso aos seus efeitos salvíficos.
Na ressurreição de Jesus manifesta-se definitivamente o poder de Deus, que não é senão amor e misericórdia para com todos os pecadores. Sem esperança e sem futuro, afastados de Deus e separados dos homens, fomos reconciliados e salvos pela sua vida.

Uma espiritualidade centrada no contínuo desejo de conversão, pois “haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrependa, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento”.
A disponibilidade para percorrer o caminho de conversão a Cristo, por meio do encontro pessoal com Ele, da oração interior, da liturgia sentida, da Palavra meditada e contemplada, dos sacramentos celebrados com amor, da caridade sem fingimento, da entrega no serviço, constitui o sinal maior da profundidade da nossa espiritualidade incarnada e assumida.

Uma espiritualidade centrada no amor à Igreja, que se transforma em serviço gratuito, alegre e entusiasta ao Povo de Deus.
“Eu próprio irei em busca das minhas ovelhas... eu apascentarei o meu rebanho... hei de procurar a ovelha que anda perdida... tratarei a que estiver ferida”, dizia o senhor na Profecia de Ezequiel. Se Deus, o Senhor olha para nós com misericórdia e veio ao nosso encontro quando estávamos perdidos, nos apascenta e nos trata as feridas, não pode ser diferente a atitude dos seus servos e amigos.
A especificidade da nossa identidade e da nossa espiritualidade de cristãos, ministros e sacerdotes de Deus e da sua Igreja, exprime-se na nossa condição de pastores do Povo de Deus, unidos a Cristo, Cabeça e Pastor da Igreja, que deu a vida pelas suas ovelhas.

Uma espiritualidade centrada no amor misericordioso de Deus, que acolhe, perdoa, se faz próximo de cada um dos seus filhos, dialoga, compreende, consola, se alegra com aqueles que O procuram e não tem repouso por causa daqueles que saíram da casa do Pai.
Se acreditamos que “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”, que “a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para connosco” e que “a arquitrave que suporta a vida da Igreja”, como nos disse o Papa na Bula do Ano Santo, não podemos viver uma espiritualidade cristã e sacerdotal que não faça da misericórdia o próprio modo de ser e de agir enquanto pastores e irmãos de todos os homens.

Nesta Solenidade do Sagrado Coração de Jesus em que nos reunimos em assembleia constituída pelos ministros ordenados da nossa Diocese de Coimbra, bispo, presbíteros e diáconos, peçamos ao Senhor que nos ajude a ser homens espirituais, que vivem na comunhão com Deus por meio do Espírito e trabalham para que o Povo de Deus cresça na santidade pelo mesmo Espírito.
Peçamos ao Senhor o dom de sonhar com uma Igreja Diocesana mais comunhão e mistério, com uma pastoral profundamente marcada pela espiritualidade e com cada um de nós totalmente inundado do amor de Deus que foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.

Coimbra, 3 de junho de 2016

 

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